NCeHu 57/03
NOSTALGIA DO FUTURO
O século XXI nasce com a suspeita de que as coisas podem andar
para trás, que o progresso não é uma fatalidade. Vivemos um processo de
decomposição dos significados do pensamento liberal.
Por Luiz Gonzaga Belluzzo
O ataque ao Iraque é inevitável e seus
resultados, imprevisíveis. As opiniões dos especialistas estão divididas: alguns
defendem a possibilidade de uma vitória rápida e sem perdas importantes de vidas
americanas, outros acham que a invasão por terra não é uma empreitada segura. É
difícil para um leigo julgar, até porque as opiniões técnicas não estão isentas
de desvios políticos. Seja como for, o ataque ao Iraque é apenas um episódio da
trajetória de reafirmação do poder unipolar. Carl Schmitt, o grande
cientista político alemão, em seu livro O Nomos da Terra, publicado em 1950,
demonstra de forma impecável que a dominância dos Estados Unidos consolidaria,
nas relações internacionais, a hegemonia do econômico. Isto significa
necessariamente o surgimento de uma forte tendência a ultrapassar e negar as
barreiras territoriais e políticas impostas pela existência dos Estados
Nacionais. Ele diz: "A soberania territorial se transforma num espaço vazio,
aberto aos processos socioeconômicos. O espaço da potência econômica determina o
campo de ação do direito das gentes..."
Schmitt vira pelo avesso a
ideologia da globalização: o predomínio do econômico, ou seja, a predominância
da lógica da expansão mercantil-capitalista exige uma enorme concentração e
centralização do poder e, por isso, políticas permanentemente agressivas em
relação às pretensões de autodeterminação dos povos, às suas formas de vida e
aos seus costumes. Esse processo de transformação das relações internacionais,
isto é, entre Estados Nacionais, desmascara a separação entre o político e o
econômico no capitalismo e revela a natureza essencialmente política do mercado.
O território global deve, portanto, ser "liberado" para o movimento de
mercadorias e de capitais, para o livre acesso aos recursos naturais. Isso impõe
a eliminação dos obstáculos humanos, culturais e políticos. O movimento da
riqueza abstrata, da geração do maior valor econômico possível, se apresenta sob
a forma das missões humanitárias e da defesa dos valores da democracia e da boa
vida. O pensamento econômico dominante é um ardil da razão. Uma forma
refinada de ocultar a trágica realidade de nosso tempo, a crescente separação
entre o poder real e a política democrática. O verdadeiro poder, aquele capaz de
determinar o alcance das opções práticas dos países e dos cidadãos, graças à sua
mobilidade cada vez mais desembaraçada, tornou-se virtualmente global, ou
melhor, extraterritorial. Domínio. O inevitável ataque ao Iraque
reforça a tendência americana de ignorar as barreiras territoriais e políticas
dos Estados NacionaisA "mão invisível" celebrada pelos liberais está, mais do
que nunca, encarnada no capital financeiro globalizado. Os critérios da política
democrática e libertadora não se aplicam à agenda criada pelas forças desse
poder que circula entre as nações e circunscreve a capacidade de ação dos
governos escolhidos pela vontade popular. Tais forças não são racionais nem
irracionais, simplesmente cumprem os desígnios de sua natureza, dilacerada entre
a "ganância infecciosa" e o súbito colapso da histamina.
Nessa
configuração do poder global, a esfera pública foi acuada: não pode buscar
abrigo nos palácios de governantes impotentes, sempre temerosos, ademais, das
vociferações que desabam sobre suas cabeças, emitidas pelas fortalezas
inacessíveis que formam a "nova opinião", as grandes empresas de mídia. Para a
vida privada sobraram os consolos do narcisismo e do voyeurismo dos reality
shows. Esses processos visíveis e simultâneos de crescente inacessibilidade
do público e de espetacularização do privado decorrem de uma sociabilidade
"esvaziada", construída pelos movimentos da mão que guia o curso dos mercados.
Em sua ciclotimia ela nos condena a flutuar entre a euforia e o horror, a
ganância e o desespero. "Não há alternativa", proclamam os adeptos do
neoliberalismo. Sobre esse pano de fundo Margaret Thatcher foi capaz de anunciar
a morte da sociedade e o triunfo do indivíduo. É duvidoso que o indivíduo
projetado pelo Iluminismo tenha, de fato, triunfado. Triunfaram, sim, a
insegurança e a impotência. Tal sensação de insegurança é o resultado da
invasão, em todas as esferas da vida, das normas da mercantilização e da
concorrência, como critérios dominantes da integração e do reconhecimento
social. Nos países em que os sistemas de proteção contra os freqüentes
"acidentes" ou falhas do mercado são parciais ou estão em franca regressão, a
insegurança assume formas ameaçadoras para o convívio social. Podem fazer
pouco os funcionários de qualquer nível quando a empresa que os empregava decide
sem aviso mudar o negócio para outra região ou iniciar uma nova rodada de
"racionalização" através do enxugamento de despesas, redução da força de
trabalho, corte de gastos administrativos, venda ou fechamento de unidades não
lucrativas. Menos ainda podem fazer os indivíduos para evitar a desvalorização
de suas qualificações arduamente conquistadas ou para enfrentar o
desaparecimento de suas funções.
Nos países em desenvolvimento, as
políticas de liberalização financeira, ademais de agravarem as condições de vida
dos mais pobres, afetaram negativamente o crescimento econômico. Mobilidade
do capital financeiro e, ao mesmo tempo, centralização do capital produtivo à
escala mundial, esta convergência tem suscitado surtos intensos de demissões de
trabalhadores, a eliminação dos melhores postos de trabalho, enfim, a maníaca
obsessão com a redução de custos. A forma financeira é a mais geral e abstrata
de existência da riqueza capitalista. Ao mesmo tempo que fala a linguagem da
liberdade de movimentos, impulsiona a centralização do capital, promove o
endurecimento do controle sobre os assalariados e dependentes "terceirizados",
impõe a intensificação da concorrência sem quartel entre as empresas
gigantescas. Há quem se irrite com a menção do Consenso de Washington como
origem e destino das políticas liberais na América Latina. Mas basta olhar em
volta e observar que as novas estratégias de "integração" à economia mundial e
de "modernização" das relações entre Estado e mercado foram iguais em quase
todos os países da região e produziram os mesmos resultados econômicos e sociais
desapontadores. Insegurança. A mobilidade do capital financeiro tem
suscitado surtos de demissõesFoi grande a decepção causada pela descoberta de
que a vitória contra a inflação e as reformas pró-mercado não produzem
necessariamente mais empregos, melhores condições de vida e um futuro melhor
para os filhos. A sensação dos brasileiros é de profunda insegurança. E a
insegurança produz o mal-estar de forma ampliada numa sociedade desigual e com
perspectivas de baixo crescimento e lenta mobilidade vertical para a maioria.
Para o cidadão afetado pelas conseqüências devastadoras das crises
financeiras, parece inteiramente fantástica a idéia de controlar as causas
desses golpes do destino. As erráticas e aparentemente inexplicáveis convulsões
das bolsas de valores ou as misteriosas evoluções dos preços dos ativos e das
moedas são capazes de destruir suas condições de vida. O consenso dominante
trata de explicar que, se não for assim, sua vida pode piorar ainda mais. A
formação desse consenso é, em si mesmo, um método eficaz de bloquear o
imaginário social, numa comprovação dolorosa de que as criaturas da ação humana
coletiva - as instituições produzidas pelo devir histórico - adquirem dinâmicas
próprias e passam a constranger a liberdade de homens e mulheres.
O
século XXI nasce com a suspeita de que as coisas podem andar para trás, que o
progresso individual e coletivo não é uma fatalidade. Esse sentimento é cada vez
mais intenso, sobretudo entre os países e as classes que se sonharam algum dia
com a afluência prometida no curto período do pós-guerra, quando o capitalismo
parecia civilizado. A maioria da humanidade vive um clima de nostalgia do
futuro, sentimento que reflete a crise profunda de um valor constitutivo da
modernidade: a idéia de progresso, ou melhor, a idéia de que o progresso
material levaria quase que automaticamente ao bem-estar individual e coletivo.
Essa convicção ganhou força nos anos dourados do capitalismo, quando os
controles do Estado e da sociedade foram capazes de subjugar e disciplinar o
dinamismo cego e anárquico da finança. É possível que os fanáticos dos
mercados não sejam capazes de avaliar o alcance da crise da idéia de progresso.
Estamos diante de um processo de decomposição dos significados do pensamento
liberal. O sonho ocidental de construir o hábitat humano somente à base da
razão, repudiando a tradição e rejeitando toda a transcendência, chegou a um
impasse. O Ocidente fracassou na realização de seus próprios valores. Na
prática, foi incapaz de conjugar o universalismo da razão, o progresso da
técnica e a democratização do bem-estar. A boa sociedade deve tornar livres
os seus integrantes, não apenas livres de um ponto de vista negativo - no
sentido de não serem coagidos a fazer o que não fariam por espontânea vontade -,
mas positivamente livres, no sentido de serem capazes de fazer algo da própria
liberdade. Isso significa, primordialmente, o poder de influenciar as condições
da própria existência, dar um sentido para o bem comum e fazer as instituições
sociais funcionarem adequadamente.
Fuente: http://br.groups.yahoo.com/group/geohistoriaviva
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