NCeHu
172/08
Acerca do liberalismo
Domenico Losurdo [*] entrevistado
por Laurent Etre
O liberalismo impõe-se à esquerda? O historiador e filósofo
Domenico Losurdo nega a pretensão dos liberais de ontem e de hoje a serem
reconhecidos como depositários de um projecto de emancipação humana. Para
pensar a liberdade e o indivíduo, a esquerda deve recorrer ao seu próprio
corpo teórico.
A relação com o
liberalismo é ou deveria ser efectivamente a clivagem estruturante da
esquerda francesa e europeia?
Domenico Losurdo.
Em 1948, a Declaração dos Direitos do Homem estabelecida pela Organização
das Nações Unidas reconhecia direitos económicos e sociais (direito à
educação, direito à livre escolha do seu trabalho e à protecção contra o
desemprego, etc...)
Isto a que assistimos actualmente,
nomeadamente na Europa, é precisamente o desmantelamento das realizações
concretas correspondentes a estes direitos (Segurança Social, sistema de
aposentadoria, etc...)
Este desmantelamento é acompanhado pela
própria negação, no plano teórico, do valor destes direitos. É este duplo
fenómeno que se pode caracterizar como contra-revolução neoliberal. Para
responder com eficácia, parece-me necessário colocarmo-nos numa
perspectiva histórica.
Esta permite compreender que os direitos do
homem jamais se desenvolveram em virtude de uma dinâmica interna do
liberalismo, que teria sido impedido, por razões conjunturais, de instalar
na esfera económica uma lógica de direita que teria em contrapartida
conseguido impor na esfera política contra os diversos conservadorismos,
nomeadamente religiosos.
Esta visão linear da história é
absolutamente falsa. Na verdade, o liberalismo, para além da diversidade
das suas sensibilidades, tem tido tendência a recuperar para seu crédito
direitos que as burguesias simplesmente tiveram de reconhecer na guerra de
classe, no século passado, no contexto da guerra fria.
Nos anos
70, Friedrich A. Hayek, então inspirador da política económica da
administração Reagan, falava dos direitos económicos e sociais como uma
invenção ruinosa da revolução bolchevique russa. Ele não raciocinava em
termos de compatibilidade ou não destes direitos com os meios financeiros
do Estado. Ele, ao contrário, atacava os direitos em causa nas suas
raízes, sobre a sua própria legitimidade. Hoje, vê-se triunfar a posição
de Hayek, mas num contexto onde não há mais o desafio do mundo socialista.
Isto não significa que seja preciso rever em baixa as ambições sociais. Ao
contrário.
O liberalismo defende a liberdade?
Domenico Losurdo.
Os pais fundadores desta corrente de ideias justificavam a escravidão.
O filósofo inglês Locke estava mesmo implicado pessoalmente como
accionista da sociedade que geria o tráfico de escravos.
Se
tomarmos os dois países mais representativos da tradição liberal, a saber,
a Inglaterra e os Estados Unidos, vemos que estes são igualmente os países
mais implicados no plano histórico na tragédia da escravidão dos negros.
Os Estados Unidos não aboliram a escravidão dos negros senão em 1865. E
mesmo depois, os negros ali não desfrutaram da liberdade. Foi só em meados
do século XX que eles adquiriram direitos políticos.
A
ultrapassagem da discriminação racial, da discriminação contra as
mulheres, ou da discriminação censitária não são portanto os frutos do
liberalismo, são ao contrário as aquisições, ainda que precárias e
incompletas, das grandes lutas populares do movimento socialista e
comunista.
O liberalismo não pode reivindicar nenhuma
contribuição própria para a democracia política?
Domenico Losurdo.
Pode-se reconhecer ao liberalismo, nomeadamente àquele de Montesquieu,
o mérito de ter colocado a questão da limitação e da separação dos
poderes. O marxismo histórico frequentemente escamoteou o problema,
preferindo evocar directamente a desaparecimento total do Estado.
O encerramento nesta perspectiva utópica veio agravar as
dificuldades para a construção de um Estado socialista democrático. Mas
não é a partir de um liberalismo qualquer que se pode verdadeiramente
criticar o marxismo sobre este ponto. Pois o liberalismo é na realidade
muito ambíguo.
Por um lado, ele reivindica efectivamente a
limitação dos poderes; mas por outro celebra o poder absoluto sobre os
escravos e os povos coloniais. John Stuart Mill, considerado como um dos
liberais mais progressistas, considerava no seu tempo que certas "raças
menores" – é a expressão que ele emprega – são obrigadas a uma "obediência
absoluta" aos mestres do Ocidente. Não é pois a proclamar-se liberal que a
esquerda em crise pode recomprar uma consciência anti-totalitária, se é
que ela a procura. Ao contrário, isso não faz senão aumentar a confusão.
Um verdadeiro debate deve ao contrário iniciar-se sobre a questão
do Estado e da democracia. Considerando o peso crescente do dinheiro e da
riqueza nas eleições nos Estados Unidos, Arthur Schlesinger Jr., um
ilustre historiador americano, considerava que se assistia de facto à
reintrodução da discriminação censitária.
Como evitar esta
regressão e a perda dos direitos políticos já adquiridos? A questão
decisiva é saber qual conteúdo se pretende dar à democracia: é apenas a
consagração das relações arbitrárias na sociedade e nomeadamente na
empresa, mas igualmente entre as nações? Ou antes trata-se do processo de
reconhecimento político dos direitos conquistados e do seu desenvolvimento
em e por lutas sociais?
Os tenores da esquerda que se
reclamam do liberalismo de facto insistem frequentemente no que parece
sobretudo um liberalismo dos costumes, que se pode com efeito defender em
nome do progresso humano...
Domenico
Losurdo. A vontade de defender as liberdades individuais é
evidentemente legítima. O que apresenta problema é o modo de encarar a
questão. Tem-se a impressão de que a esquerda teria de escavar alhures e
não no seu próprio corpus ideológico para pensar os direitos do indivíduo,
sua emancipação.
Penso ao contrário que se trata de desenvolver
ainda mais este corpus, aprofundá-lo. Quando em geral se fala de Marx e do
marxismo, considera-se, mais ou menos explicitamente, que eles teriam
insistido na igualdade, não na liberdade. Trata-se de um preconceito. O
Manifesto do Partido Comunista, de que festejamos este ano o 160º
aniversário, fala da luta para suprimir "o despotismo na fábrica". A luta
das classes encarada por Marx não é suposta limitar-se a objectivos
materiais. É uma luta pela liberdade.
Dissociar as questões
societais das questões sociais, o plano político e cultural do plano
económico, equivale mesmo a negar o pensamento burguês mais avançado.
Antes de Marx, Hegel explicava num texto célebre de "A filosofia do
direito" que um homem que se arrisca a morrer de fome encontra-se numa
condição de ausência absoluta de direito, ou seja, na condição de um
escravo. Quando a desigualdade material atinge um certo grau, ela se torna
então uma condição de ausência de liberdade. Retorna-se à questão
democrática.
Mas quando a esquerda coloca a questão
democrática em termos de democracia social, ela muitas vezes é acusada de
proteccionismo. Daí a acusá-la de nacionalismo não há senão um passo, por
vezes dado alegremente no debate sobre a Europa...
Domenico Losurdo. Uma coisa é a afirmação, a
defesa da identidade ou da dignidade nacional, uma outra é o chauvinismo.
Tem-se tendência a fazer confusão entre as duas. A distinção parece-me
entretanto muito simples: de um lado temos uma atitude universalizável; do
outro, uma posição exclusivista.
A afirmação da dignidade da nação
francesa, americana ou italiana é perfeitamente compatível com a afirmação
da dignidade de qualquer outra nação, de todos os povos. Em contrapartida,
quando o presidente Bush afirma que os Estados Unidos são a "nação eleita
por Deus" para governar o mundo, esta atitude não é universalizável. Basta
que um outro país tenha a mesma pretensão para que haja afrontamento.
Hoje, o chauvinismo por excelência é o dos Estados Unidos, país
que posa como herói do liberalismo. E a União Europeia, servil em relação
aos Estados Unidos, reproduz a sua atitude de "nação eleita por Deus" nas
suas relações com os países do Terceiro Mundo. Lénine havia explicado
muito bem a ligação entre o imperialismo, o nacionalismo e o racismo.
Uma das suas definições do imperialismo é a seguinte: "o
imperialismo é a pretensão de um pequeno grupo de nações que se dizem
eleitas" de monopolizar para si só o direito de constituir um Estado
nacional e soberano, o que e equivale a dizer de excluir deste direito os
povos considerados como inferiores.
A luta pela igualdade das
nações é sempre actual. E é uma luta progressista, em nome das liberdades
e da democracia, que se conduz contra o sistema capitalista e sua
ideologia liberal.
30/Junho/2008
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