NCeHu
239/07
Os biocombustíveis estão na ordem do dia. De facto,
desde a recente Cimeira da Primavera, que reuniu em Bruxelas os chefes de estado
e de governo europeus, e cuja agenda foi dominada pela questão energética, até à
visita do presidente de Bush ao Brasil realizada em 8 e 9 de Março, cujo
objectivo central anunciado foi o fornecimento de bioetanol brasileiro aos EUA,
passando pelo o anúncio caseiro de que, no âmbito do Quadro de Referência Estratégico
Nacional (QREN), se iria incrementar o uso dos biocombustíveis nas frotas
municipais, pelo menos nos municípios da AML – Área Metropolitana de Lisboa, o
assunto está presente de uma forma central em todas as agendas.
Impõe-se, então, tentar descodificar o que poderá justificar tamanho
fervor e, desde logo, esclarecer o que significam, de facto, os biocombustíveis
de que tanto se fala.
Sob a designação de biocombustível (ou
biocarburante, na expressão dos espanhóis e franceses), acomodam-se diversos
tipos de produtos muito distintos. De facto, poderemos incluir nesta classe os
seguintes produtos: bioetanol, biodiesel, biogás, biometanol, bio-ETBE,
bio-MTBE, biohidrogénio e o óleo vegetal puro (diversos tipos).
Contudo,
numa análise mais abrangente, os biocombustíveis são, no fundo, membros de uma
ampla família, a dos produtos bioenergéticos, que acomoda a biomassa, ou seja,
inclui desde as mais diversas formas de lenha, até aos resíduos da floresta e
das indústrias conexas, passando pelos resíduos da agricultura (vegetais e
animais), às produções agrícolas bioenergéticas sólidas (i.e. cardo), aos óleos
vegetais residuais (recolhidos selectivamente nas zonas urbanas), ao biogás
(biometano), aos subprodutos de diversas actividades agrícolas, designadamente
as que se destinam à produção de óleos vegetais energéticos e/ou alimentares, e,
ainda, às fracções biodegradáveis dos resíduos industriais e urbanos (Directiva
2001/77/EC).
Deve esclarecer-se, porém, que a enorme corrida lançada
desde há poucos anos pela UE e pelos EUA, centra-se quase exclusivamente no
biodiesel e no bioalcool (bioetanol), com o objectivo de os utilizar como
combustíveis alternativos à gasolina e ao gasóleo no sector dos transportes,
particularmente nos veículos automóveis.
Embora quase não seja
perceptível na corrente informativa dominante, até porque se verifica um
estranho silêncio das organizações ecologistas, existe um significativo
movimento de opinião mundial, mobilizando muitos e prestigiados cientistas, que
defendem pontos de vista completamente contrários à propaganda oficial dos
estados europeus e americanos, devido àquilo que eles demonstram serem as
consequências perniciosas para a produção alimentar, para a gestão sustentável
dos solos e da água, para a desflorestação, designadamente nos trópicos, e para
a contaminação dos solos com nutrientes poluentes, resultantes das utilizações
enviesadas de produtos agro-alimentares como matéria-prima energética.
Vejamos, porém, de onde no fundo dimana o interesse dos centros de
decisão económica, em fazerem combustíveis para automóveis a partir de milho,
soja, girassol, palma ou colza.
Hoje em dia nenhum especialista ou
responsável político duvida que o zénite da produção mundial do petróleo bruto
está a ser atingido nos tempos que correm. Portanto, está-se a entrar numa nova
era na qual o fundamental vector energético do mundo actual, embora não acabe
nas próximas três ou quatro décadas, será imediata, perene e gradualmente mais
caro, e de aprovisionamento muitíssimo mais problemático.
Mesmo as
previsões mais optimistas, as do Departamento de Energia dos EUA, apontavam, até
há pouco tempo, o início do declive produtivo do petróleo para 2037. O que não é
minimamente realista, porque não tem em conta que a procura continua a aumentar
em função da actividade económica crescente, designadamente da Índia e China. É
também por isso que diversas vozes conhecedoras e independentes indicam
estimativas muito menos optimistas, como são os casos de Colin Campbell,
geólogo, que aponta para 2010 o turning point, ou, ainda, Kennet Deffeyes
[1]
, que sustenta que o Pico do Petróleo ocorreu já em 2005, ou, como prevê
Bakhtiari, especialista iraniano, que indica 2007 como o ano a partir do qual a
produção mundial de petróleo começará a decair irreversivelmente.
Face a
esta realidade incontornável, e mergulhados que estamos num sistema económico
caracterizado pela intrínseca necessidade de crescer para viver, explorando
sempre mais intensamente a natureza e a humanidade, é compreensível que sintamos
diversos sinais de perturbação e desorientação nos centros de decisão políticos.
Tornou-se vulgar depararmos com decisões políticas que encerram claras
contradições entre os objectivos anunciados e os conteúdos deliberados. Ora isto
não acontece por incompetência dos governos, mas sim devido à pressão dos
todo-poderosos chefes económicos e financeiros, que, com grande capacidade de
influenciar os governantes, e mestres que são na arte de sobreviver, vão ditando
as suas receitas para a crise, com as quais conseguem o ouro sobre azul, ou
seja, continuarem com o aumento dos seus lucros.
Além da evidência
irrecusável que a época do petróleo barato tem os dias contados, e, portanto,
que um dos pilares do sistema económico ainda dominante está a desmoronar-se, a
questão ambiental planetária, particularmente relacionada com o incremento da
poluição atmosférica, vem ganhando contornos preocupantes nos discursos das
entidades políticas e na programação dos media. Porém, também neste caso, se
verifica a existência de muita especulação e pouco cuidado na fundamentação
científica, designadamente em torno da questão do aumento da temperatura da
Terra.
Um dos principais destinos finais dos combustíveis líquidos
derivados do petróleo é os transportes, sejam eles terrestres, aéreos e
marítimos.
Grande parte dos sistemas de transportes das grandes
metrópoles mundiais vive da utilização massiva de veículos automóveis de
transporte de passageiros e de cargas, locomovidos por motores de combustão,
alimentados preponderantemente com gasolina e gasóleo.
O sistema
económico e o estilo de vida dominantes são viciados no veículo automóvel,
designadamente no transporte individual. Não será, então, de estranhar que se
venha instalando alguma apreensão e, até mesmo alguma ansiedade, entre as
comunidades urbanas dos países ocidentais, tornando-as progressivamente mais
disponíveis para a utilização de novas formas de locomoção mais amigáveis, desde
que, de preferência, não impliquem grandes rupturas com os hábitos instalados e
com os circuitos comerciais vigentes. Os sinais dados através dos políticos e
dos líderes de opinião, tanto através das políticas anunciadas, como através do
sistema fiscal e de preços, vão nesse sentido.
É neste contexto que se
vêm insinuando os biocombustíveis, com grande apoio expresso pela UE e pelos
EUA, seguidos de perto por alguns outros estados e organizações da América do
Sul, e da Ásia. Os biocombustíveis aparecem, assim, apontados como alternativa
aos derivados do petróleo, ou, pelo menos, como complemento para utilização nos
veículos automóveis, permitindo um certo amortecimento do choque petrolífero a
nível dos preços, e, simultaneamente, como um contributo para o combate ao,
omnipresente "aquecimento global". Este tipo de combustíveis, são apresentados
como limpos, biodegradáveis, renováveis, não poluentes, "verdes", e
"sustentáveis", e visam sobretudo o mercado automóvel.
Os biodieseis
obtêm-se a partir de óleos vegetais, fundamentalmente de soja, colza, girassol,
palma, e a mamona (designação brasileira, ou higuerilla, termo hispânico, para a
planta de rícino), por reacção química de transesterificação, que envolve a
utilização de álcoois (fundamentalmente metanol sintético), e tem na glicerina
um sobreproduto. Implica a existência de unidades industriais que, para além da
extracção do óleo contido nas sementes (comum à industria alimentar), promovem a
transformação química referida, e que podem custar muitas dezenas de milhões
euros.
No caso dos bioalcoois (bioetanol), são obtidos a partir da
fermentação dos açúcares contida em certas espécies vegetais, principalmente a
cana-de-açúcar e a beterraba sacarina, embora também já se utilize muito milho,
trigo e a cevada em certos países, seguida por uma destilação para separar o
etanol.
Ambas as linhas de produtos envolvem plantações extensas e
intensas das respectivas espécies vegetais de base, implicando a necessidade de
fortes afluxos energéticos devidos ao emprego intenso de máquinas agrícolas,
adubos, pesticidas, sistemas de rega, máquinas industriais diversas, aporte de
calor para os processos de destilação e reacção química, transporte, armazenagem
e embalagem. Vários estudos científicos certificados apontam no sentido de que,
mesmo nas situações de boa produtividade agrícola, o balanço energético final
(ERoEI), entre a energia dispendida ao longo de toda a cadeia produtiva, e a
energia calorífica disponível no combustível final (PCI), aponta geralmente para
valores inferiores à unidade [3] .
Isto é, gasta-se mais energia durante todo o processo, do que a que se
obtém no líquido combustível finalmente posto nos veículos automóveis!
E, acrescente-se, a energia gasta é, em grande parte, de proveniência
fóssil (petróleo), já que só muito parcialmente as necessidades energéticas ao
longo do processo são garantidas com a queima dos subprodutos agrícolas (palhas,
cascas, bagaços etc).
É necessário esclarecer que o output energético é
obtido a partir da energia contida no produto final e nos subprodutos ou
resíduos do processo produtivo, sendo calculado de formas diferentes consoante o
uso final (Alimentação, Adubo, Combustível). Como alimento, o cálculo é baseado
na Energia Metabólica disponibilizável ao animal ou homem que a desfruta; como
adubo, tem em conta o consumo de Energia Fóssil utilizada na cadeia de produção;
como combustível, tem-se em consideração o PCI. Alguns estudos publicados,
embora normalmente patrocinados por empresas directamente associadas a este
mercado, admitem que, em certas condições de bom rendimento, se atinja ERoEI da
ordem dos 1,5 [4] em
biodiseis (ésteres etílicos) elaborados a partir de certas variedades vegetais.
Sem grande margem para dúvidas, a utilização energética mais racional, e
a que permite melhores índices de aproveitamento destes produtos agrícolas,
passa pela sua utilização como alimento directo ou indirecto (rações) para o ser
humano.
Assim, não podemos deixar de qualificar como um monumental erro,
produzir combustíveis a partir de produtos agro-alimentares, gastando mais
energia fóssil (petróleo) na sua produção do que aquela que é disponibilizada no
produto final!
Aliás, os defensores dos biocombustíveis, isto é, do
biodiesel e bioetanol [5] ,
dizem, muitas vezes de uma forma meramente panfletária, que o CO 2
libertado na sua combustão não é "mau", porque não aumenta as emissões
líquidas deste contaminante atmosférico, dado que as plantas de onde provém o
tinham previamente absorvido da atmosfera ao longo do tempo de crescimento
vegetal. Bom, mas parece esquecerem-se de todo o CO 2 directa e
indirectamente produzido no processo de cultivo e produção industrial do
respectivo biocombustível, proveniente dos combustíveis fósseis utilizados em
todo o processo! Isto, para além de carecer de confirmação cientifica a premissa
simplista de que normalmente partem, porque obviamente que não é a mesma coisa
termos floresta ou soja em cem hectares de terra! E se já era complicada a
devastação florestal galopante com a finalidade de implantar monoculturas
agro-alimentares, o que dizer de passar às culturas agro-energéticas!
Por exemplo, o Cerrado, com os seus 200 milhões de hectares, representa
23% do Brasil e é responsável por metade da produção brasileira de soja. Esta
região está pegada, ao norte, com a selva do Amazonas, que, em cada dia, perde
7000 ha devido à pressão da desflorestação com vistas às monoculturas
designadamente as energéticas!
A expansão das culturas energéticas
requereria a reconversão, até 2020, de 16 milhões de ha de savanas e 6 milhões
de florestas tropicais nos países sul-americanos! [6]
Meditemos no que isto significaria para a biodiversidade, para o incremento das
monoculturas, para a expulsão das suas terras de milhares de pequenos
camponeses, e, até, para a delapidação de sugadouros vegetais do dióxido de
carbono!
A utilização de milho na produção de bioalcool nos EUA, com a
consequente corrida especulativa a este produto, até aqui utilizado
fundamentalmente na alimentação, está a provocar a carestia dos tortilhas, o que
é dramático para muitos milhares de mexicanos.
A produção mundial de
bioalcool (etanol) situou-se, em 2003, em cerca de 19 milhões de toneladas (62%
Brasil; 43% EUA) [7, 8]
muito superior, portanto à produção dos biodiseis (EMVH), que se cifrou nas 1,9
milhões de toneladas (44% Alemanha; 22% França; 17% Itália). Isto transformado
em toneladas equivalentes de petróleo (tep) é, por enquanto, uma ninharia para o
mundo energético, salvo no caso brasileiro, mas é um grande negócio para algumas
grandes empresas.
Em Portugal, se quiséssemos substituir 5,75% do
gasóleo agora consumido nos veículos por biodiesel, a fim de cumprir a Directiva
2003/30/UE, entretanto adaptada pelo Decreto-Lei 62/2006, de 21 de Março, com a
actual produtividade do girassol, teríamos que plantar cerca de 500 mil ha. No
que diz respeito à eventual substituição da mesma proporção de gasolina por
etanol elaborado a partir de cereais, teríamos que afectar mais de 50 mil há a
esta produção. Os números esclarecem por si mesmos a dimensão da impossibilidade
de tal desígnio. Mesmo que se afectassem solos de regadio na área de Alqueva, e
optássemos por culturas mais eficazes, afigura-se completamente desaconselhável
tal opção, porque a quantidade relativa e absoluta de solos produtivos no nosso
país é escassa. Ou seja, a aventura europeia na área dos biocombustíveis,
significará para Portugal, muito provavelmente, mais importações, maior
dependência, e uns tantos negócios energéticos, subsidiados com dinheiro
público.
O preço dos biocombustíveis, em quase todas as circunstâncias,
não consegue competir economicamente com os combustíveis derivados do petróleo,
apesar dos aumentos recentes do crude. Aliás, a produção do bioalcool e do
biodiesel será sempre afectada pela previsível escalada de preços petrolíferos,
porque, como vimos, incorpora na sua produção muita energia fóssil! É por este
motivo que a UE e os EUA estão a estimular, através de variadas medidas,
designadamente fiscais, os consumos e as produções destes combustíveis.
Afigura-se errada esta política, tanto do ponto de vista energético,
como ambiental (no sentido amplo do termo, onde se deverá incluir também o
ordenamento do território), como, ainda, no plano essencial da economia
alimentar mundial. De facto, reservar partes crescentes das produções mundiais
de milho, trigo, cevada, sorgo e soja, para o aprovisionamento energético das
frotas automóveis, e, por outro lado, estender as áreas agrícolas férteis para a
produção de girassol, beterraba, cana-de-açúcar com fins igualmente energéticos,
não vai contribuir significativamente para a resolução do grave problema
energético em que estamos metidos, e vai seguramente trazer mais desequilíbrio,
fome e injustiça aos povos mundiais. Esta política demonstra, em nossa opinião,
o desnorte dos países europeus, dos EUA, e outros que, por arrastamento, estão a
acatar esta orientação.
Este facto está bem patente no Livro Verde -
Estratégia europeia para uma Energia Sustentável, Competitiva e Segura,
publicado em 08-03-2006 pela Comissão das Comunidades [9] ,
com o objectivo de descrever as novas realidades energéticas que preocupam a
Europa e sugerir possíveis acções concretas para uma resposta integrada da União
Europeia.
As energias renováveis e alternativas são, no fundamental,
vistas nos países líder da economia de mercado, como grandes oportunidades de
negócio, cada vez mais duro, aliás. O mercado comunitário das energias
renováveis tem um volume de negócios anual de 15 mil milhões de euros (metade do
mercado mundial), emprega cerca de 300 mil pessoas e é um grande exportador. Em
grande parte, isto é conseguido à custa de subsídios cruzados, pagos pelos
contribuintes e consumidores. Assim, os grandes grupos energéticos e financeiros
abocanham, num grande frenesim, esta nova janela de mercado.
O mundo,
assim, nem pula, nem avança, como dizia o poeta. Limita-se a andar aos
solavancos, incoerentemente, enquanto os líderes mundiais insistem no erro e no
vício.
10/Março/2007
Notas 1-O Prof. Kenneth S.
Deffeyes, da Universidade de Princenton, um dos mais eminentes geólogos dos EUA,
autor de Beyond Oil , diz (pg. 98) o que se segue: "(...) Em resumo,
o carvão é barato, o carvão é versátil, e as principais economias industriais
têm vastos depósitos de carvão. Face à iminente escassez de petróleo, um plano
de jogo possível é: 1) substituir o gás natural por carvão para a geração de
energia eléctrica; 2) substituir o combustível dos automóveis e camiões por gás
natural; e 3) preservar o petróleo remanescente para a aviação. (...)". Mais
adiante o Prof. Deffeyes acrescenta: "Fantasiar acerca de uma frota de
automóveis não poluentes a pilha de combustível (fuel cell) para daqui a
vinte anos não compensará o declínio da produção petrolífera nesta década"
(sic). 2- 58 Milhões de euros para produzir 112 mil m3/ano; revista
Exame, Setembro 2005 3- Pimentel,D. e Patzek,T.; Ethanol Production
Using Corn, Switchgrass and Wood; Biodiesel production Using Soybean and
Sunflower, Natural Resources Research, Vol. 14, March 2005 4- Neto, José et
alli; I Congresso Brasileiro da Mamona; Novembro 2004 5- Nada temos a
objectar à utilização de outros biocombustíveis, como, por exemplo, os resíduos
ou subprodutos da floresta, ou o biogás (que pode ser transformado em biometano)
proveniente de explorações agropecuárias, ETARs, aterros sanitários e lixo
florestal. 6- WWF 7- Na Europa produziram-se apenas 446 mil t de etanol
em 2003, mas produziram-se 828 mil t de ETBE (derivado químico do etanol) 8-
Em 2004 a produção mundial teria sido, segundo F. O. Lichts, cerca 40 milhões de
m3,ou seja, 32 milhões de toneladas (15 milhões Brasil; 13,4 EUA) 9- COM
(2006) 105 final
* Engenheiro (IST),
Pós-graduado em Planeamento Energético (ISEG) e Ordenamento do Território (UNL),
deca50@netcabo.pt
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