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Asunto: | NoticiasdelCeHu 344/06Gramsci e a sociedade civil (Carlos Nelson Coutinho | Fecha: | Miercoles, 3 de Mayo, 2006 21:33:08 (-0300) | Autor: | Centro Humboldt <humboldt @...........ar>
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NCeHu 344/06
Brasil y
Argentina, una misma geografía
Gramsci e a sociedade civil
Carlos Nelson Coutinho
Curioso destino teve o conceito de "sociedade civil"
no Brasil. Seu uso entre nós, tanto na Universidade quanto no jornalismo
político, data da segunda metade dos anos 70, quando se acentuam os processos de
corrosão da ditadura militar, causados em grande parte pela irrupção de novos
movimentos sociais, entre os quais se destaca o novo sindicalismo do ABC. Não é
casual que tenha sido nesse mesmo momento que Antonio Gramsci se transformou num
dos mais importantes interlocutores do pensamento social brasileiro.
Compreende-se assim que o termo "sociedade civil", que então entrava em moda,
terminasse por ser identificado - em muitos casos equivocadamente - com o
conceito análogo de Gramsci, conceito que ocupa uma posição central na filosofia
política do pensador marxista italiano.
No contexto da luta contra a ditadura, "sociedade
civil" tornou-se sinônimo de tudo aquilo que se contrapunha ao Estado
ditatorial, o que era facilitado pelo fato de "civil" significar também, no
Brasil, o contrário de "militar". Disso resultou uma primeira leitura
problemática do conceito: o par conceitual sociedade civil / Estado, que forma
em Gramsci uma unidade na diversidade, assumiu os traços de uma dicotomia
radical, marcada ademais por uma ênfase maniqueísta. Nessa nova leitura, ao
contrário do que é dito por Gramsci, tudo o que provinha da "sociedade civil"
era visto de modo positivo, enquanto tudo o que dizia respeito ao Estado
aparecia marcado com sinal fortemente negativo.
Esse deslizamento conceitual, muitas vezes
apresentado como a verdadeira teoria gramsciana, não provocou, no momento da
transição, maiores estragos, embora tenha contribuído para obscurecer o caráter
contraditório das forças sociais que formavam a sociedade civil brasileira, as
quais, apesar dessa contraditoriedade, convergiam objetivamente na comum
oposição à ditadura; esse obscurecimento, decerto, facilitou a hegemonia das
forças liberais no processo de transição, que Florestan Fernandes não hesitou em
chamar de "transação conservadora". Mas as coisas se complicaram decisivamente
quando, a partir de final dos anos 80, a ideologia neoliberal em ascensão
apropriou-se daquela dicotomia maniqueísta para demonizar de vez tudo o que
provém do Estado (mesmo que se trate agora de um Estado de direito) e para fazer
a apologia acrítica de uma "sociedade civil" despolitizada, ou seja, convertida
num mítico "terceiro setor" falsamente situado para além do Estado e do mercado.
Embora o belo livro que o leitor tem em mãos não
assuma essa problemática como tema central, ela constitui certamente o pano de
fundo e o motivo inspirador da instigante pesquisa que nele desenvolve Giovanni
Semeraro [Gramsci e a sociedade civil.
Petrópolis, Vozes, 1999]. O objetivo central deste livro consiste precisamente
no resgate do verdadeiro conceito gramsciano de "sociedade civil", revelado aqui
em toda a sua densidade política. Com efeito, na visão de Gramsci, "sociedade
civil" é uma arena privilegiada da luta de classe, uma esfera do ser social onde
se dá uma intensa luta pela hegemonia; e, precisamente por isso, ela não é o
"outro" do Estado, mas - juntamente com a "sociedade política" ou o
"Estado-coerção" - um dos seus inelimináveis momentos constitutivos. Para
Gramsci, como Semeraro nos mostra muito bem, nem tudo o que faz parte da
sociedade civil é "bom" (ela pode, por exemplo, ser hegemonizada pela direita) e
nem tudo o que provém do Estado é "mau" (ele pode expressar demandas
universalistas que se originam nas lutas das classes subalternas). Somente uma
concreta análise histórica da correlação de forças presente em cada momento pode
definir, do ângulo das classes subalternas, a função e as potencialidades
positivas ou negativas tanto da sociedade civil como do Estado.
Para promover esse resgate do verdadeiro conceito
gramsciano de "sociedade civil", Semeraro empreende não apenas uma leitura
atenta e cuidadosa dos Cadernos do cárcere, através da qual reconstrói
com rigor filológico e acuidade teórica a rica e complexa trama categorial
elaborada pelo pensador italiano, mas busca também investigar a obra de dois
importantíssimos interlocutores de Gramsci, Hegel e Croce. Semeraro nos mostra,
por exemplo, que, sem levar em conta esse diálogo com Croce e, sobretudo, com
Hegel, não se pode compreender adequadamente o específico conceito gramsciano de
"sociedade civil"; mas nos mostra também, ao mesmo tempo, que Gramsci é Gramsci
precisamente porque supera dialeticamente os conceitos de seus interlocutores e
constrói uma originalíssima noção de "sociedade civil", que aparece como eixo
articulador de uma nova teoria política marxista. Por outro lado, para
demonstrar como essa originalidade nem sempre foi devidamente percebida pelos
intérpretes, mesmo quando tais intérpretes são brilhantes e honestos pensadores,
Semeraro nos propõe ainda uma análise da interlocução de Norberto Bobbio com
Gramsci, tanto mais importante quando se sabe que, no Brasil, Bobbio foi e
continua a ser uma das principais vias de acesso à leitura do autor dos
Cadernos do cárcere.
Portanto, Gramsci e a sociedade civil não é
apenas uma brilhante tese acadêmica sobre o pensamento de um dos autores mais
lidos e discutidos hoje no âmbito das ciências sociais. Trata-se também de uma
intervenção polêmica num dos mais importantes debates políticos da atualidade,
aquele que envolve a correta definição do estatuto teórico-prático da sociedade
civil e do Estado. Resgatando o conceito gramsciano de "sociedade civil" em sua
dimensão nitidamente política, mostrando a sua articulação dialética com a luta
pela hegemonia e pela conquista do poder político por parte das classes
subalternas, o livro de Giovanni Semeraro constitui doravante uma imprescindível
contribuição não só ao estudo da obra de Gramsci, mas também à luta pela
desconstrução de uma das mais insidiosas vertentes da ideologia neoliberal,
precisamente aquela que – valendo-se de uma terminologia supostamente "de
esquerda", herdada dos combates contra a ditadura – tem como base um conceito
apolítico e asséptico de "sociedade civil". Um conceito que, como Semeraro nos
demonstra convincentemente, nada tem a ver com o pensamento revolucionário de
Antonio Gramsci.
Carlos Nelson Coutinho é professor da UFRJ e co-editor de *Gramsci e o
Brasil*.
Extraído
de ListaGeografia/Brasil. |
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