NCeHu
1378/05
A GEOPOLÍTICA DA
ENERGIA NA AMÉRICA DO SUL
Georges D.
Landau
prismax@terra.com.br Artigo para
InterCivitas
O Brasil
detém cerca de um quarto das reservas mundiais de água. Não é de surpreender,
portanto, que mais de 83% da energia elétrica gerada no país se origine da
hidroeletricidade, motor não-poluente de desenvolvimento nacional. Entretanto, a
geração hidroelétrica no Brasil é desigualmente distribuída, e o Nordeste é
deficiente nesse particular, como o ilustra o fenômeno secular da seca e
tentativas heróicas de resolver o problema. O Nordeste semi-árido requer
portanto importar energia de outras regiões do país, e notadamente do Sudeste.
Entretanto, o Brasil inteiro necessita suplementar os seus recursos energéticos
domésticos, apesar de copiosos, com importações de terceiros países, inclusive
vizinhos na América do Sul (Argentina, Bolívia, Paraguai [Itaipu], Peru e
Venezuela.
É bem verdade que ainda neste ano o Brasil deverá
atingir o patamar histórico da auto-suficiência em petróleo, cerca de 1,8
milhões de barris por dia. Na realidade, o país vem há anos exportando parte da
sua produção de petróleo cru pesado e importando certos derivados, como o óleo
diesel, e a nafta (insumo essencial à petroquímica), e isto porque as refinarias
implantadas pela Petrobrás, desde a sua criação pelo governo
Vargas em 1953, eram, até há pouco, inaptas ao refino do óleo pesado
encontradiço ao longo das costas brasileiras, e sim capazes de processar o
petróleo leve, que o Brasil importava sobretudo do Oriente Médio, e que só
recentemente passou a ser descoberto, em quantidades comercialmente viáveis, nos
depósitos off-shore situados nas bacias sedimentares litorâneas.
Descobriram-se também na bacia de Santos vastos depósitos de gás natural, mas
falta-nos ainda a infraestrutura de gasodutos necessária para levar o gás aos
centros de consumo no sudeste do Brasil.
Assim, dependemos ainda das
importações de gás dos nossos vizinhos, e notadamente da Bolívia, onde a
Petrobrás já investiu US$1.5 bilhões e participa ativamente na produção de gás e
seu transporte através do gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol), de 3,150 km
de extensão, que abastece a região Sudeste, e a partir dela o Sul do país.
Entretanto, a instabilidade política recorrente no país andino, e a repentina
elevação da incidência fiscal (para 50%) sobre a produção boliviana, levaram o
Governo brasileiro -- respeitando embora o direito soberano da Bolívia de dispor
dos seus próprios recursos naturais -- a buscar soluções alternativas.
Uma delas seria a participação do Brasil no Anel Energético
Sul-Americano ("El Anillo") , um mega-projeto de gasoduto que, partindo
dos campos de Camisea, em plena Amazônia peruana, levaria o gás ao norte do
Chile, à Argentina, ao Uruguai e ao extremo sul do Brasil. A nossa posição
oficial é que semelhante projeto, implicando investimentos da ordem de US$2.5
bilhões a serem custeados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) e pela Corporação Andina de Fomento (CAF), somente seria
viável se nele participasse também a Bolivia. Entretanto, subsistem dúvidas
quanto à real dimensão das reservas peruanas de gás, sabidamente inferiores às
bolivianas. Por outro lado, a extensão desse gasoduto provavelmente faria com
que no seu trecho final, o brasileiro, o custo do gás fosse excessivamente alto.
Ante essas condições, pareceria que a principal motivação do Brasil ao
interessar-se pelo projeto do Anel seria a de sinalizar à Bolívia que existem
alternativas à sua exportação de gás para o Brasil.
Outra
possibilidade, que está sob análise do Governo e da Petrobrás, consistiria na
construção de um gigantesco gasoduto de mais de 9,000 km que levaria 85M m3/dia
de gás natural da Venezuela, atravessando todo o território brasileiro de norte
a sul e chegando até Buenos Aires, com um ramal até Montevidéu. As reservas
venezuelanas de gás, ainda relativamente inexploradas, atingem o fantástico
volume de 4.25 trilhões de metros cúbicos, ou seja, cerca de dez vezes as do
Brasil, e dados os elevados preços atuais do petróleo, sabe-se que o país dispõe
de recursos financeiros para bancar tal projeto, cujo custo foi preliminarmente
estimado em US$18 bilhões. Independentemente da viabilidade técnico-econômica
desse plano faraônico, que está ainda pendente de avaliação, o que há de real
atrás disso é a iniciativa "bolivariana" do Presidente Hugo Chávez, da
Venezuela (acolhida pelo Presidente Lula), do estabelecimento de um
mecanismo de macro-coordenação energética, a PetroSur, que englobaria o
seu próprio país, o Brasil, a Argentina e o Uruguai, entre cujos regimes
políticos existem afinidades ideológicas. Numa base bilateral, a Petrobrás e a
companhia petroleira estatal venezuelana PDVSA (inteiramente submissa às
controvertidas diretivas presidenciais) têm cinco projetos de cooperação em
andamento, sendo que um deles, o de criação de uma refinaria para o Nordeste
brasileiro (provavelmente em Pernambuco), implicaria na importação de óleo cru
venezuelano, projeto pelo menos paradoxal num momento em que o Brasil se empenha
pela auto-suficiência na produção de petróleo.
Existem ainda outras
implicações geopolíticas no quadro energético brasileiro, como a projetada
construção do Gasoduto Sudeste-Nordeste (Gasene), que a Petrobrás vem
negociando com interesses rivais, tanto da China como do Japão. A própria
empresa estatal brasileira opera hoje em 15 países da América Latina e o Caribe,
na porção norte-americana do Golfo do México, na África Ocidental e no Oriente
Médio, e aspira a uma produção de 500.000 barris por dia em 2010, a partir de
fones externas. O problema imediato para o Brasil será o de evitar, a partir de
2008, a repetição do "apagão" de 2001, que tanto dano fez ao crescimento da
nossa economia. O Governo, que no ano passado implantou um novo modelo para o
setor elétrico, deseja fazer o mesmo para o do gás, que carece ainda de uma
regulamentação específica. Entretanto, os ambiciosos planos do governo federal
para a ampliação da oferta de hidroeletricidade -- 17 novas usinas deveriam ser
leiloadas até o fim de 2005 -- vêm-se ameaçados por agudas dificuldades para o
seu licenciamento ambiental. Daí que a Petrobrás busque intensificar, com vista
à geração termo-elétrica, o abastecimento de gás à base das fontes nacionais,
até 2008. Até lá, porém o Brasil ficará dependente do gás boliviano,
praticamente a qualquer preço.
O quadro é ainda mais complexo.
Embora a Bolívia tenha tido em anos recentes convulsões políticas internas,
jamais deixou de cumprir o pactuado com o Brasil seu maior mercado, quanto às
entregas de gás natural. Entretanto, quando a Argentina no ano passado sofreu
uma crise de abastecimento de gás devido à escassez de investimentos no setor,
suspendeu abruptamente os seus fornecimentos de gás ao Chile, e a Bolivia
somente consentiu em manter (e aumentar) as suas exportações de gás à Argentina
sob a condição de não haver re-exportações ao Chile, país com o qual a Bolívia
tem um litígio histórico desde que perdeu a soberania sobre uma faixa costeira,
como corolário da Guerra do Pacífico (1879-83). Não podendo confiar no
suprimento regular de gás por seus países vizinhos, o Chile cogita importar gás
liquefeito de petróleo (GLP) da Indonésia e da Rússia. Com isso, o Chile, que já
deu as costas ao Pacto Andino e ao Mercosul, e firmou um tratado bilateral de
livre comércio com os EE.UU., afasta-se cada vez mais do restante da América
Latina, e cultiva as suas relações com a Ásia. Tanto a Bolívia como o Peru
esperam poder exportar GLP aos Estados Unidos, mas esse ambicioso plano, que já
gorou uma vez no caso da Bolívia devido à sua instabilidade política doméstica,
está sujeito à estabilização do seu regime democrático em função das eleições
presidenciais previstas para 4 de dezembro próximo.
Uma peça importante
no tabuleiro de xadrez geopolítico da região é a Venezuela, cujo presidente
Chávez usa a diplomacia do petróleo para angariar adeptos em toda a América
Central, do Sul e o Caribe, privilegiando a relação com Cuba e buscando
introduzir cunhas nas relações entre os países da área, importadores de petróleo
(que a PDVSA lhes fornece mediante altos subsídios) e os Estados Unidos, ao
mesmo tempo que a Venezuela fornece cerca de 15% do óleo importado pelos EE.UU.
A relação entre a Venezuela e aquele país é portanto esquizofrênica. Um novo
elemento desperta no horizonte geopolítico, a saber o apetite aparentemente
insaciável da China por combustíveis, demonstrado por investimentos chineses
para a aquisição de empresas petroleiras na região (p. ex. no Equador) e em
contratos a longo prazo para o fornecimento de óleo bruto (Venezuela). Não é de
se esperar uma confrontação a curto prazo entre a China e os EE.UU. pelo acesso
à produção de petróleo, mas as perspectivas a longo prazo são menos promissoras.
O fato é que o presidente Chávez, cuja inegável popularidade em seu país
advém em boa parte de programas sociais mantidos graças aos recursos da PDVSA e
aos altos preços atuais do "ouro negro" -- e que podem sofrer quedas no
médio prazo -- busca em todo o mundo, e em particular na América do Sul,
alternativas ao mercado norte-americano, que sem embargo assegura a prosperidade
atual da Venezuela. Outro fator a considerar é que o imprevisível líder
"bolivariano" vem adotando restrições crescentes à atividade das empresas
multinacionais em seu país, inclusive as do setor petroleiro, o que as poderia
levar a abandonar o país, apesar da atratividade das suas reservas. O Governo
brasileiro vem monitorando com muita atenção o que se passa na Venezuela, e tem
até agora reagido com prudência e comedimento às atitudes teatrais do coronel
Chávez.
Gentileza de Marie-Christine LACOSTE, CNRS, "RUMBOS".
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