São Paulo – Qual a
atualidade do pensamento de Marx para a investigação da forma
contemporânea do capitalismo globalizado e de suas diferentes
manifestações na sociedade? Ao abordar essa questão, no II Seminário da
revista Margem Esquerda, promovido pela Editora Boitempo, o sociólogo
Francisco de Oliveira apontou, não uma resposta, mas um caminho de
investigação e uma tarefa urgente. O marxismo precisa voltar a um tema que
está em aberto: qual é a economia política do atual estágio de acumulação
capitalista? A fragilidade teórica da esquerda para enfrentar esse tema
foi tratada, com diferentes ênfases, por vários conferencistas do
seminário realizado no anfiteatro da História, da Universidade de São
Paulo (USP), que esteve sempre lotado.
Reconhecendo o desafio como uma
tarefa ciclópica, o sociólogo delimitou o quadro geral do problema. “O
pensamento de Marx mostrou sua capacidade de expandir-se e dar conta de
territórios que lhe pareciam hostis ou aos quais ele parecia hostil, como
a religião e a psicanálise. Mas agora, há algo para o qual o marxismo
precisa voltar com urgência: a economia política do capitalismo.
Precisamos de uma nova interpretação nesta área que os outros territórios
não esmoreçam”.
Para Francisco de Oliveira, a
experiência mundial está pedindo isso, sobretudo após a queda da União
Soviética. E essa urgência é redobrada, enfatizou, na periferia do sistema
capitalista, onde a esquerda está desarmada teoricamente para enfrentar os
dilemas e problemas postos por esse sistema. “Temos hoje uma esquerda que
volta a tentar se refugiar em Keynes”. Isso é curioso, notou, pois no
período mais fértil do economista inglês essa mesma esquerda recusava-o. O
problema central aqui, assinalou, é que a esquerda quer voltar a Keynes,
como se a teoria keynesiana tivesse sido criada para superar o capitalismo
e não para defendê-lo. Uma das coisas que esse movimento mostra, segundo
ele, é a derrota teórica que a esquerda sofreu, uma derrota da qual até
hoje não se recuperou.
Falando no caso específico do
Brasil, Francisco de Oliveira observou que, surpreendentemente, uma das
principais referências da esquerda brasileira hoje é Juscelino Kubitschek,
numa óbvia referência ao governo Lula. “A esquerda tenta fazer a roda da
história andar para trás e retornar, assim, a um suposto paraíso a que a
classe operária teria chegado com JK. O máximo a que se chega hoje é a um
retorno a JK”, resumiu. Os problemas teóricos não acabam por aí, segundo o
sociólogo. “Mesmo a teorização mais criativa, que resultou nos trabalhos
da Cepal e de Celso Furtado,, é um marco que está hoje claramente
superado, em um mundo de capital globalizado. O pensamento de Celso
Furtado segue sendo importante, é claro, mas deve ser visto hoje como um
ponto de partida e não como um ponto de chegada. E a teoria keynesiana é
claramente impotente para entender as peculiaridades do capital,
principalmente na sua periferia. Ela não tem poder heurístico para essa
tarefa”.
Ele detalhou um pouco mais a
natureza dessa insuficiência. “O essencial do capitalismo sempre foi o
controle da moeda. Ora, uma das coisas que define o mundo da periferia é
que ele não tem moeda própria. Assim, uma das lacunas mais importantes
hoje é o entendimento teórico do que quer dizer capitalismo na periferia e
como ele funciona. Basta abrir os jornais para constatar isso. Então, o
marxismo está desafiado a tentar entender de novo essa economia política
do capital. Sem isso, não teremos nenhuma luta de emancipação que possa
travar o combate necessário para enfrentar o capitalismo”.
O tema da exceção O
seminário da Margem Esquerda foi dedicado à obra de
Michael Löwy. Francisco de Oliveira recorreu a um dos estudos de Löwy,
sobre a obra de Walter Benjamin, para sugerir uma pista capaz de orientar
essa investigação sobre a economia política do capital globalizado.
Segundo ele, a abordagem que Löwy faz sobre a obra de Benjamin – no livro
“Walter Benjamin: aviso de incêndio – Uma leitura das teses ‘Sobre o
conceito de história’”, publicado pela Boitempo – pode ajudar a desafiar o
enigma da economia política, especialmente ao tratar do tema da “exceção”,
tão presente em Benjamin. A “exceção”, neste contexto, é tratada no
sentido de suspensão dos direitos, da legalidade e das normas; ou seja, no
sentido da instituição de um Estado de anomia, de ausência de regras. A
inspiração, aqui, vem da oitava tese do conceito de história, formulada do
seguinte modo por Benjamin:
“A tradição dos oprimidos nos
ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. Precisamos
chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante
de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a
isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance
deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome
do progresso como se este fosse uma norma história. – O espanto em
constatar que os acontecimentos que vivemos ‘ainda’ sejam possíveis no
século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um
conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação da
história donde provém aquele espanto é
insustentável”.
Löwy observa que, para Benjamin, a
esquerda deveria tomar como tarefa urgente “uma teoria da história a
partir da qual o fascismo possa ser desvendado. “Somente uma concepção sem
ilusões progressistas pode dar conta de um fenômeno como o fascismo,
profundamente enraizado no ‘progresso’ industrial e técnico moderno que,
em última análise, não era possível senão no século XX”, acrescenta. Essa
compreensão seria uma condição necessária para melhorar a posição da
esquerda na luta antifascista, “uma luta cujo objetivo final é o de
produzir ‘o verdadeiro estado de exceção’, ou seja, a abolição da
dominação, a sociedade sem classes”.
Francisco de Oliveira
tomou essa reflexão para sugerir uma pista de investigação. Lembrou
inicialmente que, para os oprimidos, o capitalismo sempre significou
exceção. Em um determinado momento da história, os trabalhadores europeus
conseguiram deter um pouco a exceção e a suspensão de direitos,
conquistando leis trabalhistas e direitos sociais. Mas essa luta política
foi derrotada, apontou o sociólogo. “Se, nos países desenvolvidos, ela
ainda consegue resistir, de algum modo, entre nós, que habitamos a
periferia do capitalismo, a exceção nunca deixou de existir. Ele citou o
caso da economia brasileira que teve a segunda maior taxa de crescimento
do mundo no século XX, sem que isso resultasse em redução das
desigualdades sociais. Pelo contrário, esse crescimento resultou na sexta
sociedade mais desigual do planeta”.
A suspensão aqui,
acrescentou, aparece com toda sua ferocidade. Cerca de 60% da força de
trabalho, no Brasil, vive fora do Estado mercantil, sem direitos. E aqui
aparece a pista indicada por Francisco de Oliveira: “tratar o estatuto do
capitalismo na periferia como um estado de exceção” (sugestão inspirada
também na obra do filósofo italiano Giorgio Agamben, “Estado de Exceção”,
também publicada pela Boitempo). “Se, para os trabalhadores, o capital
sempre foi a exceção, onde o contrato mercantil é feito entre forças
assimétricas, no capitalismo de periferia isso é bem mais forte”,
enfatizou. “Qualquer tentativa de regular esse processo tem ido por água
abaixo nos últimos vinte anos. O processo de desregulamentação só vem
crescente. Aqui na USP, por exemplo, todos os faxineiros são
terceirizados. Quem vai a bancos, vê um número cada vez maior de
estagiários trabalhando. A maior parte dos trabalhadores deste país não
tem qualquer estatuto reconhecido. Temos uma massa de trabalhadores
estagnados, aquilo que Marx chamou de exército industrial de reserva, que,
no entanto, seguem produzindo. Essa é uma novidade que precisa ser
entendida. Para Marx, a força estagnada não produz”.
Este
país parou, diagnosticou Francisco de Oliveira. “É um gigante caminhando
sobre duas pernas anêmicas. O ornitorrinco (figura já famosa na obra do
sociólogo que concentra as contradições políticas e econômicas da
sociedade brasileira) é isso: pessoas comuns que vão ao Paraguai e trazem
peças de computador em sacolas de plástico, para vender e poder
sobreviver”. O crescimento do trabalho informal joga para fora do Estado
de Direito milhões de trabalhadores que passam a criar as suas próprias
estratégias de sobrevivência em uma esfera de economia marginal. Entender
esse processo, concluiu, é o desafio que exige um retorno do marxismo ao
seu território privilegiado, a economia política. “Precisamos descobrir
que mentira é esta. O que é o capitalismo em seu estágio
atual?”.
Fuente:
Agencia Carta Maior, 1 de octubre de
2005. |