Porto
Alegre - Uma conferência sobre a situação das ciências sociais na
América Latina. Essa era a tarefa do sociólogo argentino Atílio Borón, do
Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), no início da noite
de quarta-feira (24), no salão de atos da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Um tema que freqüentou outras atividades do XXV
Congresso da Associação Latino-americana de Sociologia (Alas), na capital
gaúcha. Mas a intervenção de Borón acabou traçando um panorama geral
acerca da situação do pensamento crítico na América Latina. No ambiente
acadêmico, há quem torça o nariz para a expressão “pensamento crítico”,
associando-a a uma espécie de bugiganga ideológica da esquerda, sem grande
utilidade científica. E a fala do sociólogo argentino acabou tratando,
entre outras coisas, justamente de uma tensão existente dentro do próprio
ambiente universitário sobre o papel e a responsabilidade de acadêmicos e
intelectuais.
“Estamos
diante de uma situação extremamente crítica, uma situação que nos coloca
diante de uma série de desafios, não só na América Latina”, diagnosticou
Borón. Entre esses desafios ele destacou um, em especial: “precisamos
repensar as ciências sociais praticamente partindo do zero”. Esse
diagnóstico está longe de ser uma unanimidade entre quem trabalha com a
disciplina. Após a conferência de Borón, alguns sociólogos comentaram que
estão ouvindo essa conversa há anos, demonstrando um certo desconforto com
ela. Mas o desconforto parece fazer parte do problema apontado pelo
sociólogo argentino. A academia, muitas vezes, é refratária a críticas
deste tipo, que partem de um de seus integrantes. Para refletir, com mais
profundidade, sobre a natureza desse desconforto, é preciso levar em
consideração as razões apontadas por Borón para justificar a necessidade
de repensar as ciências sociais partindo praticamente do
zero.
Neoliberalismo e
pós-modernismo
Ele
identificou dois fatores centrais, que seriam responsáveis pelo declínio
do pensamento crítico na América Latina: o neoliberalismo e o
pós-modernismo. O neoliberalismo, observou, é uma corrente de pensamento
de caráter filosófico e não apenas um programa econômico. “Se fosse apenas
isso, seria mais fácil de derrotar. Assim como Marx disse que a economia
política clássica era a ciência da sociedade, hoje podemos dizer que o
neoliberalismo é a ciência para entender o atual estágio de acumulação do
capitalismo. E isso tem influência também nas investigações das ciências
sociais”, assinalou Borón. O segundo fator, o pós-modernismo, foi
caracterizado como ele como sendo “o pensamento da derrota e da
frustração”. “Essa corrente de pensamento reflete o fracasso das
tentativas de superação do capitalismo no período pós-guerra (a Segunda
Guerra Mundial)”, apontou, identificando o fracasso da revolta popular de
maio de 68 como um exemplo disso.
O impacto
do neoliberalismo no tipo de investigação realizado pelas disciplinas das
ciências sociais, segundo Borón, manifestou-se em diferentes frentes: a
barbárie economicista, caracterizada pela exaltação dos fatores econômicos
no estudo da sociedade; o individualismo metodológico, com o fim dos
atores coletivos e das pesquisas feitas coletivamente; o formalismo e a
matematização pseudo-científica, entre outras. “Já não há mais sociedade,
que passou a ser considerada como uma somatória de indivíduos. E essa
mudança teve importantes repercussões teóricas e políticas”, apontou o
sociólogo. Ele lembrou, a título de exemplo, uma famosa frase da
ex-primeira-ministra inglesa, Margareth Tatcher, quando, na década de 80,
ao ser perguntada sobre o impacto da repressão à greve dos mineiros na
sociedade inglesa, respondeu que não havia tal coisa como sociedade,
apenas o John, o Peter, a Mary, etc., ou seja, apenas
indivíduos.
A cultura da resignação
política
Entre as
repercussões teóricas e políticas causadas pelo predomínio dessa corrente
de pensamento, sociólogo destacou ainda a indiferença radical a questões
relacionadas à estrutura da sociedade e aos seus aspectos históricos. O
social, segundo ele, passou a ser considerado como um somatório de
contingências. Além disso, verdade e falsidade passaram a ser questões
terminológicas, submetidas a um intenso processo de relativização. A
partir do influxo dessas duas correntes de pensamento (neoliberalismo e
pós-modernismo), acrescentou Borón, o primeiro impacto mais evidente foi a
anulação do pensamento crítico que, gradualmente, foi sendo substituído
pela cultura da resignação política. A teoria sobre o triunfo definitivo
da capitalismo, explícita na obra de autores como Francis Fukuyama, passou
a contaminar também, de modo implícito, outras formulações teóricas. Tudo
isso em meio a uma ordem social marcada por uma injustiça poucas vezes
vista.
Borón citou
um dado da FAO, órgão da ONU para a agricultura, para justificar a
afirmação. Segundo números da entidade, essa é uma ordem social tal que, a
cada noite, cobra o preço de 100 mil vidas. Ou seja, reforçou o sociólogo,
a cada ano desaparece um país do tamanho da Colômbia ou da Argentina. Pior
ainda. Dada a hegemonia ideológica do pensamento neoliberal, não há lugar
para projetos políticos de emancipação social, considerados hoje como
anacrônicos. Neste contexto, assinalou ainda, os investigadores da área
das ciências sociais tornaram-se, em sua grande maioria, “sociômetras”,
trabalhadores sociais. “Houve um abandono do modelo clássico de
investigação, onde grupos de pesquisadores trabalhavam juntos, tinham uma
formação simultânea, um modelo que produziu ótimos resultados nas décadas
de 50 e 60. Tudo isso baseado numa estrutura de universidades e
instituições públicas, o que foi varrido pelas políticas do Consenso de
Washington”.
O pensamento via
consultoria
Essa
estrutura foi sendo substituída pelo modelo das consultorias. “Não existe
mais espaço hoje para a investigação coletiva de longo prazo. O que é
dominante agora é a investigação breve, pret-a-porter, realizada na
base de diferentes estruturas institucionais, especialmente através de
consultorias, muitas das quais, antigos centros de investigação de caráter
público”, registrou ainda Borón. Segundo ele, essa transformação se deu
mesmo dentro das universidades públicas que foram levadas a recorrer a
fontes externas de financiamento para sustentar o trabalho de pesquisa.
Oficinas e agências ligadas a governos, que sempre lutaram contra a falta
de recursos, também tiveram que se curvar a este cenário, passando a
sobreviver com verbas de organismos internacionais como o Banco Mundial.
Tudo isso com um preço, obviamente. Esses organismos acabaram definindo
parte importante da agenda de investigações na América
Latina.
Esse novo
modelo de financiamento fez com que, por exemplo, temas como a
distribuição de renda e a estrutura tributária na América Latina (uma das
mais desiguais do mundo, onde 10% dos mais ricos pagam menos impostos do
que os 10% mais pobres) deixassem de ter prioridades nas pesquisas. “Os
organismos financiadores passaram a definir o que, como, quando e onde
investigar”, resumiu Borón. Na América Latina, acrescentou, a maioria dos
estudos sobre a pobreza usa modelos teóricos do Banco Mundial, que
consideram que ela deve ser atacada de um modo focalizado, descartando
abordagens universalistas sobre o problema. “O enfoque do Banco Mundial
poderia ser bom para atacar o problema da pobreza na Dinamarca ou na
Suíça, mas não na América Latina, onde a pobreza afeta mais da metade da
população. Esse enfoque também exclui qualquer investigação sobre as
causas da pobreza, o que limita muito o âmbito da investigação”,
concluiu.
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