Asunto: | NoticiasdelCeHu 785/05 - A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO URBANO: UM OLHAR SOBRE A CIDADE | Fecha: | Lunes, 13 de Junio, 2005 17:01:26 (-0300) | Autor: | Centro Humboldt <humboldt @...........ar>
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NCeHu785/05
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO
URBANO: UM OLHAR SOBRE A CIDADE
Ana Paula Rabelo 1
Maria da Penha Vieira Marçal 2
Vânia Rubia Farias Vlach 3
Considerações iniciais
Lançar um olhar critico sobre a cidade, é
apreender uma complexa organização do espaço, que se configura como
possibilidade da realização da vida humana. A estrutura do modo de produção e a
organização espacial são reflexos das concepções de mundo em movimento e que se
transformam constantemente, permeados pelos fatores políticos, sociais,
culturais e econômicos, que, sob a égide do capitalismo, subordinam e restringem
a esfera da vida social ao mercado de trabalho e ao consumo.
Assim, o nosso objetivo é contribuir para que um
maior número de pessoas possa, coletivamente, atuar de maneira mais efetiva, na
dinâmica da sociedade atual, bem como incentivar a participação do individuo por
meio dos vários papeis que desempenha no cotidiano, além das engrenagens
sociais, a constituir e moldar o "mover" humano no mundo baseado na justiça
sócio-ambiental.
O nosso interesse inicial em fomentar atividades
de caráter socioambiental partiu da Organização Não Governamental, Projeto
EmCantar que, em 2001, criou o Núcleo Ambiental Cuitelinho, com o intuito de
promover e desenvolver uma convivência responsável de relacionamento com o meio
ambiente e com as demais formas de vida. O objetivo de sua criação é, portanto,
consolidar as atividades realizadas pelo Projeto EmCantar, proporcionando um
outro olhar sobre a atuação individual e coletiva no espaço urbano, bem como
suas implicações no contexto social. Valorizar o mundo e compartilhá-lo de forma
saudável em todos os níveis de relações tem sido um dos princípios norteadores
do Projeto EmCantar.
A proposta que vem sendo colocada em prática pelo
Núcleo Ambiental Cuitelinho tem proporcionado uma tomada de consciência,
tornando possível repensar o mundo de forma integral, possibilitando às pessoas
se perceberem como parte pensante da natureza, reformulando posturas e
(re)produzindo, no dia-a-dia, uma cultura voltada para o convívio
harmônico com o mundo e com os
outros. Esse Núcleo é coordenado por pessoas ligadas às áreas de conhecimento da
filosofia, geografia, música, história e psicologia, que desenvolvem ações
socioambientais em parceria com dez escolas públicas de Uberlândia-MG e com a
comunidade interessada em participar de oficinas que são oferecidas
semanalmente.
No decorrer desse trabalho, tentaremos
problematizar a dinâmica que rege o movimento da cidade, suas implicações no
cotidiano das pessoas e as alternativas encontradas pelo Projeto Emcantar por
meio do seu Núcleo Ambiental, a implementar pequenas ações consistentes no
sentido de promover um outro olhar sobre o espaço urbano.
A visibilidade do espaço e das pessoas
Para pensar o espaço, é importante percebê-lo
indissociado da produção da cultura e da economia. A palavra
Cultura
carrega em si uma
multiplicidade de significados. Apesar disso, é possível, em um sentido mais
amplo, defina-la como tudo aquilo que o ser humano produz, seja material ou
espiritual, seja pensamento ou ação. Ela exprime as variadas formas pelas quais
homens e mulheres, em diferentes épocas e lugares, estabelecem relações entre si
e com o meio. Podemos dizer, em conformidade com Laraia (2004), que uma das
preocupações dos estudiosos, de modo geral, se refere à origem da cultura, ou
seja, como os homens ao longo do tempo adquiriram este processo extra-somático,
propiciando ao ser humano se diferenciar de todos os demais animais.
Percebemos que, ao nascer, a criança é inserida em
um sistema de significados e valores já estabelecidos. A maneira de se vestir,
de se alimentar, a língua que lhe é ensinada, o jeito de andar, as brincadeiras
que aprende, as formas de se relacionar com os outros, enfim, tudo se encontra
pré-estabelecido culturalmente e lhe é transmitido por meio da linguagem e
outros símbolos, por meio do processo educativo, o principal agente disseminador
de valores e visões de mundo. Para Laraia (2004, p. 67), "a nossa herança
cultural, desenvolvida por meio de inúmeras gerações, sempre nos condicionou a
reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos
padrões aceitos pela maioria da comunidade".
Percebendo as várias crises – ecológica, social,
política, econômica – pelas quais passa a humanidade, como reflexos de uma crise
do atual modo de vida, faz-se necessário promover uma discussão sobre esse modo
de vida e os valores nos quais está fundado, pois o ritmo desenfreado que marca
a maioria dos espaços urbanos se configura como um reflexo da manutenção de um
modo de vida competitivo, fundamentado no tripé – capital, lucro e mercado.
Nessa perspectiva, as pessoas, para serem inseridas no contexto social, fixam o
olhar em um caminho que as conduza ao centro do sistema, sem se darem conta de
toda a problemática política,
econômica e social que esse modelo impõe. Dessa forma, Verona (2003) afirma que
o espaço urbano se constitui na materialidade das interferências antrópicas das
transformações da natureza. Ela representa o auge das relações sociais,
culturais, possuindo, portanto, a capacidade de interferir em todos os
ecossistemas. Assim, o espaço urbano tornou-se o foco das pressões
populacionais, que sofrem com a decadência da qualidade de vida, resultante da
organização social vigente.
Verificamos que, desde a formação familiar até à
acadêmica, pouco tem se discutido as questões de interesse do cidadão, quase
perdido diante da complexidade do processo de organização do nosso mundo. Em
todas as áreas do conhecimento, percebemos a busca da superação do homem, em sua
interação com o mundo, com ele mesmo e com os outros. O século XXI, com todas as
suas características cientificas e tecnológicas, começa por colocar dois grandes
desafios: conciliar as exigências da vida moderna com a busca por qualidade de
vida para todos e promover desenvolvimento com o mínimo de impacto ambiental
possível. Porém, o que se tem presenciado é um regresso à barbárie, uma vez que
o número de pessoas que habitam as ruas das grandes e médias cidades
brasileiras, bem como a quantidade de resíduos domiciliares gerada e a
proliferação de doenças, associados ao aumento considerável de desempregados,
nos compelem a atuar de forma menos pragmática e mais reflexiva: estamos nos
preparando para atingir o mais alto nível da ciência e da tecnologia, e, ao
mesmo tempo nos vemos como incapazes de solucionar os problemas da saúde, de uma
educação de qualidade, de moradia, de saneamento básico, entre outros.
Dessa forma, compreendemos que se faz necessário
criar espaços de diálogos em que seja permitido ver o mundo tal como ele é. A
questão da violência é um exemplo clássico, pois é um problema que, na verdade,
alimenta uma indústria que se sustenta sob a égide de uma cultura do medo. Os
sistemas de segurança, os carros blindados, as seguradoras e a proteção dos
espaços fechados, como os shoppings Centers, onde não se vê figuras maltrapilhas e indesejáveis, rendem milhões por
ano e se propagam como fontes lucrativas e negócios seguros para se investir.
Souza (2001, p. 271) nos alerta que a solução encontrada pela classe média em
solucionar o problema da violência é
o seu isolamento em condôminos fechados que
possuem todos os serviços indispensáveis para o seu cotidiano e quando se
deslocam para fora, esses lugares também são fechados (escolas, local de
trabalho e shoppings
centers). Regulam os
horários de circulação na cidade, fecham os vidros de sues veículos, isolam-se.
Ora, se esse grupo social se abstém do uso da cidade, se se recusa a pertencer a
ela, a conquista-la em seu cotidiano, a se fazer presente, a mostrar que a
cidade também é dele, alguém, que não será ele, irá conquista-la. A situação da marginalidade
inverte-se. O marginal urbano é o que se isola e o integrado urbano é o que dela
usufrui, vive nela, sobrevive nela e reagirá a quem nela entrar.
Para fugir desses problemas, são propostas uma
série de soluções paliativas que atingem uma minoria disposta a pagar e, ao
mesmo tempo, abster-se da responsabilidade de pertencimento ao espaço urbano. A
indústria da pseudo-segurança formada por guarda-costas, alarmes e outros, está
muito longe do real debate, pois isenta o cidadão de atuar com responsabilidade
no lugar em que está inserido. Por isso, Sposito (2001, p. 212) afirma que
o espaço urbano mostra-se como lugar de opressão
para os que estão à margem da "urbanidade", com fragmentação da sua vida
quotidiana, expressa pelas rupturas, violência, pobreza, miséria, falta de
habitações, de saneamento básico, de segurança, de transportes coletivos, pela
poluição do ar, da água e dos alimentos. Expressa-se também a fragmentação
vivida pelo contraste de sua quotidianidade com a riqueza que aparece na
publicidade.
Mesmo vivendo em um século (século XXI) que foi
tão esperado, em virtude das promessas de facilidade, rapidez e praticidade na
esfera da vida material, é possível perceber que ainda estamos longe de superar
o estado primitivo em que a sociedade já se encontrou em vários momentos da
história humana. Às vezes, ficamos indignados com a postura de algumas culturas
que não são ocidentais, no entanto, consideramos natural um grupo de
adolescentes incendiarem um ser humano por acharem que não passava de um
mendigo, e o pior, terem o amparo da lei, para que não fossem devidamente
responsabilizados. Acabamos por nos divertir com as mazelas da vida doméstica
representada de forma ridícula e ultrajante pelos Meios de Comunicação Social e
fazemos "vista grossa" para o turismo sexual que assola a maioria de nossas
belas cidades. Como bem exemplificou Tom Zé em sua música, "o PIB da PIB
(prostituir)"
Catorze, catorze anos, doze anos, doze anos. A
prostituição infantil barata é a criança coitadinha do nordeste, colaborando com
o produto interno bruto e esse produto enterra bruto [...] Imagine um gringo
daquele tamanho, em cima da criança pobre nordestina. Sufocada, magricela, seca,
pequenina.
Essa e outras realidades não menos violentas, são
encontradas todos os dias nas esquinas, nos sinais, nas portas das escolas e é
perceptível o esforço para tornar esse cotidiano distante e, se possível,
invisível, pois são vários os ramos de negócio que se beneficiam dessas vítimas
da exclusão social. Alguns políticos populistas sustentam-se com
posturas clientelistas, com a
sub-vida e até mesmo com a degradação humana, o que consideramos um absurdo.
Para se pensar na organização do espaço urbano e
olhá-lo com outras lentes, faz-se necessário dar visibilidade a todos os atores
que compõem esse espaço como os que produzem sua vida material e os que são
impedidos de produzir, os que se abstém da discussão político-social e os que se
beneficiam da ausência dela.
Diante desse estado desanimador que se encontra a
estrutura social, o Projeto EmCantar, por meio de seu Núcleo Ambiental
Cuitelinho (coincidentemente, Cuitelinho é um pequeno e frágil beija- flor,
talvez aquele que, ao ver a floresta em que morava em chamas, carregou em seu
bico, algumas gotas de água para ajudar a apagar o incêndio), reuniu um grupo de
pessoas empenhadas em, de alguma forma, intervir de forma consistente e
responsável, na tentativa de compreenderem a dinâmica do espaço urbano e, ao
mesmo tempo, realizarem alguma ação para promover novas posturas de caráter
socioambiental. Um dos atores mais freqüentes no meio urbano e muito pouco
visível, é o catador de materiais recicláveis, pessoa desconsiderada pela
sociedade em geral e nivelada à condição de l ixo, o mesmo lixo
que coleta.
Desmistificando o conceito de
lixo: a concepção do Projeto EmCantar
Etimologicamente, a palavra lixo significa: o que se varre e, em geral, tudo que não presta,
cisco, imundície, de origem obscura, sujo, manchado. Sobreviver de algo que
carrega em si todas essas denominações, tem sido a única saída para milhares de
brasileiros e brasileiras, de crianças a pessoas da terceira idade, em todo o
Brasil. Para que se possa entender um pouco o que significa isso, é preciso
imaginar uma criança nascida no meio do lixo.
Segundo Abreu (2001,
p.13),
desde os primeiros dias de vida, são expostas aos
perigos dos movimentos de caminhões e de maquinas, à poeira, ao fogo, aos
objetos cortantes e contaminados, aos alimentos podres.Ajudam seus pais a catar
embalagens velhas, a separar jornais e papelões, a carregar pesados fardos, a
alimentar porcos. Muitos desses meninos e meninas são desnutridos e doentes
[...]. Nos lixões, ficam sujeitos ainda a acidentes e a outros problemas como
abuso sexual, gravidez precoce e uso de drogas.
Essa é a rotina de pessoas que, marginalizadas no
espaço produtivo das cidades, são submetidas a essas condições para garantir a
sua sub-sobrevivência. Todos os dias, máquinas e caminhões de inúmeras empresas
descem aos lixões para comprar materiais que podem ser reaproveitados pela
industria do reciclável. Tanto esses empresários do lixo, como os motoristas que fazem esse trabalho e a
sociedade de um modo geral, se mostram impassíveis diante dessa cruel realidade.
A visão do reciclável como lucrativa fonte de renda, sob o falso manto da
preocupação com as questões ambientais, acaba por furtar o direito de essas
pessoas viverem dignamente, pois são vítimas do "donos" do
lixo
e obrigadas a trabalhar em
condições de extrema humilhação.
Antes de se pensar em realizar alguma ação no
sentido de promover ações práticas, os integrantes do Núcleo Ambiental
Cuitelinho, desenvolveram uma pesquisa e um ciclo de debates na perspectiva de
desmistificar o conceito de lixo na produção dos resíduos sólidos urbanos,
principalmente os domiciliares, a partir da questão: o que é realmente o lixo?
A primeira parte da pesquisa constituiu em
discutir nas oficinas, que são realizadas semanalmente, nas escolas parceiras do
Projeto Emcantar, o que crianças e educadores entendem por
lixo.
Várias pessoas o definiram
semanticamente, como sendo algo que não serve pra nada e pode ser jogado fora.
Outras pessoas, levadas pela onda da reciclagem, o definiram como sendo algo que
pode servir para ser reutilizado. Partindo dessas premissas, a equipe
responsável pelo trabalho realizou uma série de debates, cujo principal objetivo
foi colocar em pauta a discussão sobre o meio ambiente, a partir do individuo,
em que cada pessoa é convidada a refletir sobre as implicações de seus atos no
espaço que ocupa. Sabemos que, para tanto, faz-se necessário rever a postura de
mero consumidor, programado para fazer girar a engrenagem do mercado e pensar um
pouco mais como cidadão responsável pelo descarte daquilo que consome. A partir
de então, foi criado um sistema de coleta que proporcionou e ainda proporciona
aos alunos, educadores e integrantes do Projeto EmCantar, a possibilidade de
agir de forma responsável, separando em suas casas, embalagens dos produtos da
cesta básica, como produtos de limpeza, higiene pessoal, entre outros, os quais
são constituídos de plásticos, papelões etc e não são percebidos como materiais
que, quando encaminhados corretamente, podem ser reutilizados.
Na perspectiva do Projeto Emcantar, antes de
iniciar qualquer trabalho que envolve a coleta de recicláveis, mostramos a
necessidade de se refletir sobre o tipo de sociedade em que estamos inseridos.
Por meio do trabalho realizado pela equipe do Núcleo Ambiental Cuitelinho, as
escolas estaduais Mário Porto e Enéias Vasconcelos e a Escola Municipal, Hilda
Leão Carneiro, localizadas na cidade de Uberlândia-MG, parceiras do projeto
EmCantar, estão se dedicando a pensar o espaço cooperativamente, analisando,
discutindo e propondo alternativas para minimizar os impactos socioambientais
causados por um modo de vida fundamentado no consumo desenfreado. Para Fonseca
(2004), "é o consumo que dá as respostas hoje, não mais às famílias, nem os
líderes políticos. As pessoas estão se deixando adotar pela sociedade de consumo
e adotando os seus valores". Daí, compreendemos que um dos principais desafios
desse trabalho é o de promover uma prática de coleta que não se caracterize por meio de competição ou
premiação, mas pela responsabilidade de cada pessoa em destinar corretamente os
resíduos domiciliares que gera. Atualmente, as três escolas, juntas, são
responsáveis pela coleta de 150 Kg de materiais que são levados de casa para a
escola, limpos, organizados e acondicionados em latões, em um sistema de coleta
simples, em que todos os recicláveis são colocados no mesmo latão (a coleta
proposta pelo Projeto EmCantar não segue o modelo europeu de coleta
multi-seletiva, por entender que a separação por tipo de material é um fator
cultural, não disseminado corretamente no Brasil e por isso com poucas chances
de obter êxito).
Por meio de atividades que envolvem toda a
comunidade escolar, tem sido possível refletir e praticar a coleta em uma
perspectiva de cooperação e não de competição. Alunos, professores e demais
funcionários, juntamente com os integrantes do Projeto EmCantar coletam,
monitoram, avaliam e repassam, semanalmente cerca de 150 kg de recicláveis.
Dessa forma, alunos e professores afirmam, veementemente, que não fazem coleta
seletiva de lixo, mas coletam
recicláveis, destinando-os a um catador, parceiro dessa iniciativa.
Catadores de recicláveis: de miseráveis a agentes
ambientais
A coleta dos recicláveis, bem como vários
programas governamentais (bolsa-escola, bolsa-família) e outros tipos de
iniciativas de caráter filantrópico, estão longe do caminho que promove a vida
com dignidade e qualidade para todas as pessoas. Essas iniciativas, embora sejam
fruto da indignação de grupos e/ou pessoas dispostas a ajudar o próximo, servem
apenas como paliativos, pois o cerne da questão é bem mais complexo. Há quinze
anos, as campanhas de cigarro fervilhavam nos Meios de Comunicação Social e,
pela vontade e empenho de vários segmentos sociais, hoje não se veicula mais tal
tipo de propaganda. Pela vontade em não propagar o uso do tabaco, conseguiu-se
(pelo menos no Brasil) o impedimento desse produto nos considerados "horários
nobre" nos Meios de Comunicação de Massa. Sposito (2001, p. 226) diz que
amplia o sistema de comunicação das imagens e do
levantamento do mundo através de satélites. O mundo todo pode ser visto pelas
imagens da televisão e do cinema. Nem por isso a natureza deixou de ser
dilapidada, embora passe a ser compreendida como sem fronteiras, mas com limites
para exploração
A vontade se configura como um motor para
realizações, no caso do objeto desse trabalho, a vontade política (se existisse)
seria capaz de resolver grande parte dos problemas urbanos. Mesmo tendo grande
importância no cenário urbano, a questão política no Brasil ainda se encontra
enraizada em posturas "coronelistas", mas não é nosso foco discuti-la nesse
momento. Pensando na vontade, como motor de realizações, os catadores de
materiais recicláveis, têm dado um grande passo no sentido de romper com as
estruturas sociais que os
excluem, e por meio da organização em classe, vem mostrando o seu valor em uma
sociedade cada vez mais consumista e descartável. Podemos citar como exemplos
dessas iniciativas, a Cooperativa de Recicladores de São Paulo, que, construindo
sua sede debaixo de um viaduto, tem mudado o olhar de muita gente com o trabalho
prestado ao município e a ASMARE (Associação dos Catadores de Papel, Papelão e
Material Reaproveitável), que atua em Belo Horizonte-MG.
Percebemos que não só nas grandes capitais, mas em
pequenas cidades como Araguari-MG, onde a ASCAMARA (Associação dos Catadores de
Materiais recicláveis de Araguari) também tem mostrado que o papel do catador é
do agente ambiental, pois seu trabalho está diretamente ligado à preservação
ambiental. Posturas como estas colocam em pauta questões que não podem mais ser
vista quando convém (campanhas filantrópicas de fim de ano, entre outras). As
pessoas devem ter garantido os seus direitos como cidadãos inseridos no espaço e
no tempo, produzindo cultura, modificando seu meio e sendo por ele modificados.
Nesse contexto, a educação formal tem um papel
importante a desempenhar, utilizando seu espaço para promover reflexão e ação,
tomada de consciência e cidadania responsável visando a garantia de um mundo
mais justo e ambientalmente equilibrado. Trata-se de um desafio, como diz
Sposito (2001), o desafio de reencantar não apenas a natureza, a técnica, a
ciência, mas principalmente a sociedade, por meio da educação, tornando-a meta
para pensar o espaço ocupado.
Compreendemos, portanto, que discutir os problemas
da cidade e do meio ambiente, hoje, parece ser um tema indissociável. Para Souza
(2001), grande parte das questões ambientais ocorre nas cidades, daí a nossa
preocupação em lançar um olhar crítico sobre o espaço urbano.
O processo educacional e sua contribuição na
percepção e transformação do espaço urbano
A formação educacional é um fator importante na
constituição e manutenção de uma sociedade. Gonçalves (1999) afirma que é sabido
que nossa espécie é considerada como uma das mais frágeis entre todas as outras.
Para esse autor,
vivemos um tempo enorme engatinhando; outro tempo
enorme aprendendo a falar; outro tempo, maior ainda, até que sejamos capazes de
dominar um conjunto de saberes que nos possibilite viver em sociedade. Essas
informações banais são, no entanto, plenas de conseqüências. Em primeiro lugar
porque necessitamos de um conjunto de conhecimentos sem os quais não estamos
habilitados a nos inserir no
mundo. Esses conhecimentos nos são transmitidos de diversos modos, em parte por
meio de sistemas informais, como a família, os mais velhos, os sindicatos, as
organizações comunitárias; e, em parte através de instituições especializadas em
transmissão de conhecimentos, como as escolas, as universidades. Em suma, o ser
humano precisa se apropriar da experiência acumulada de conhecimentos para poder
existir enquanto tal. A educação pressupõe, sempre, apropriar-se, de um modo ou
de outro, da tradição. (p. 68)
Encarregada de formar cidadãos aptos para se
movimentarem na esfera social e atuarem individualmente no seio da coletividade,
a educação formal vem desempenhando seu papel e se esforçando para cumprir com
sua responsabilidade. No entanto, o espaço do saber formal não se encontra
isolado do que acontece no cotidiano do espaço urbano; as outras dimensões da
vida humana, como a econômica e política, acabam por eclodir no espaço da sala
de aula. Em sua raiz etimológica, a palavra educação significa: processo de
desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança. Em suma, o
processo educacional sempre teve um caráter formativo.
Infelizmente não é o que temos visto em nosso
país, tendo em vista a dificuldade em erradicar o analfabetismo e a carência do
ensino, desde a parte física até o quadro de educadores, mal remunerados e
extremamente desvalorizados. Nossa estrutura de educação, também, é vítima de
uma indústria que, interessada apenas no aspecto lucrativo e nas necessidades do
mercado de trabalho, ignora a crise educacional e se organiza para oferecer a
quem pode pagar outras vias de acesso ao saber formal. Podemos constatar essa
questão pela proliferação de escolas particulares que, a preços exorbitantes,
prometem um futuro garantido, pela "farra" das faculdades particulares que se
configuram mais como um ramo de negócio do que espaço para aquisição de
conhecimento e possibilidade de transformações sociais, dentre outros.
Diante desse quadro, faz-se necessário encontrar
brechas para propor mudanças que sejam significativas e que possam interferir
verdadeiramente, na dinâmica social. Para se ter uma idéia da fragilidade do
ensino no Brasil, de um modo geral, desde a Eco 92, tem se falado muito na
preservação do meio ambiente, mas, de 1992 a 2004, o índice de lixões cresceu
consideravelmente em todo o país e ainda são poucos os municípios que tem se
preocupado em resolver, de fato, o problema. Vimos que as escolas lançam
campanhas de preservação que, raramente, se transformam em posturas e práticas
responsáveis. A nosso ver, em conformidade com Brugger (1994), admitimos e/ou
praticamos um adestramento educacional. Para a autora, "a educação adestramento
é uma forma de adequação dos indivíduos ao sistema social vigente".
Uma das piores heranças do capitalismo se mostra
na forma depredatória de lidar com os recursos naturais, praticada pelas
gerações ávidas do progresso a qualquer custo. A crise ambiental ultrapassa os
limites naturais e explode em crescimento desordenado da população, alto índice
de pobreza, escassez de recursos não renováveis (como é o caso da água potável),
sérios problemas urbanos, redução da biodiversidade e da diversidade cultural,
dentre outros. Esses problemas são latentes, afetam o nosso cotidiano,
comprometem a qualidade de vida na Terra e, o pior, estamos conscientes deles.
Mas, parece que no interior da vida acadêmica, esses assuntos não conseguem
tomar a dimensão que realmente possuem. Para Gonçalves (1999, p. 71)
não podemos nos furtar à constatação óbvia, mas
freqüentemente ocultada, de que, por nos encontrarmos numa sociedade
contraditoriamente estruturada por meio de interesses de classes sociais
antagônicas, as propostas de reformas no mundo da educação, reformas do mundo
que são, trazem em seu bojo diferentes mundos possíveis.
É preciso que a escola, em geral, subsidie e
incentive um olhar crítico e consciente. Tomar consciência implica em ter condições de entender as
verdadeiras razões responsáveis pela crise, compreendendo quem se beneficia
dela, e quais os mecanismos fabricados para neutralizar qualquer tentativa de
reverter esse quadro. Uma revolta dos índios da América Central é muito mais que
o simples desejo de proteger terras, bem como a violência instaurada nos campos
do Brasil, reflete mais do que nos mostram os Meios de Comunicação Social. É
preciso ir além dos fatos. Conscientizar-se vai além do fato dado, transcende o
empírico e faz uso das relações que possibilitam conhecer em profundidade a
dinâmica social. Para Freire (1983, p.39), "a consciência se reflete e vai para
o mundo que conhece: é o processo de adaptação. A consciência é temporalizada. O
homem é consciente e, na medida em que conhece, tende a se comprometer com a
própria realidade".
Uma das formas muito utilizadas por aqueles que
usufruem primeiro e pensam nas conseqüências depois, é a medida da compensação.
Compensar por um estrago ambiental realizado deveria ser a última instância,
porém, o que se vê, são conjuntos de medidas sendo legalizadas na tentativa de
minimizar os problemas, não os resolvendo e tranqüilizando
consciências.
.Precisamos tomar
consciência de que "a consciência do mundo e a consciência de si crescem juntas
e em razão direta; uma é a luz interior da outra, uma comprometida com a outra"
(FIORI, 1993, p.15).
O papel da Educação formal é importante quando
assume uma postura de não aceitação, e não se acomoda diante do colapso em que
se encontra a atual conjuntura. Por isso, concordamos com Freire (2003, p. 99) quando afirma que "a educação
é uma forma de intervenção no mundo". As Universidades públicas, embora ainda
sejam muito superiores, em se tratando de algumas indústrias de diplomas,
precisam buscar o caminho que as leve ao encontro das necessidades sociais.
Percebemos que, a cada dia, formam-se médicos, e a saúde pública continua sendo
um problema; formam-se profissionais na área das ciências humanas, e os
problemas sociais se agravam a cada ano. As pessoas da comunidade não conseguem
visualizar a relação existente entre o ensino superior e a sociedade em geral.
Isso porque não são dadas a elas oportunidades de conhecer profundamente a
sociedade em que vivem, e acabam por rotular as Instituições de Ensino Superior
como algo feito para quem pode usufruir de um bom curso pré-vestibular,
inacessível à maioria da população. É preciso lutar contra a visão mítica do
vestibular como se ele fosse o fim último do processo educativo. Eis um desafio!
Pois "toda proposta de reforma da educação visa construir um determinado mundo;
é, assim, uma visão do mundo que está sendo posposta" (GONÇALVES,1999, p. 71)
Para que seja possível encarar, de frente, os
problemas socioambientais, principalmente os problemas urbanos, faz-se
necessário conhecer seus atores, e integrá-los, pois os catadores de
recicláveis, as crianças que se profissionalizam como pedintes em semáforos, os
representantes dos poderes públicos e do empresariado precisam aprender a
conversar entre si e, coletivamente, estabelecer formas de colocar em pauta a
segurança, a inclusão social e o desenvolvimento sócio-ambiental.
Considerando as diferenças sociais,
desmistificando o papel do processo político- econômico e social, e propor uma
estrutura que privilegie o bem comum, são tentativas que podem levar à
construção de uma gestão urbana integrada e participativa. Freire (2001, p. 90)
nos convida a inferir de que "não há educação para a libertação, cujos sujeitos
atuem coerentemente, que não seja imbuída de forte senso de responsabilidade".
Considerações finais
Atuar de forma responsável no espaço ocupado e
contribuir para uma visão de cultura como modo de vida fundado na cooperação e
não na competição, tem sido alguns dos princípios defendidos pelo Projeto
Emcantar por meio do seu Núcleo Ambiental. A possibilidade de reunir pessoas
interessadas em, de alguma forma, colaborar na construção de outra estrutura
social, tem sido uma experiência gratificante pois, foi, e está sendo, possível
integrar várias concepções de mundo em prol do bem comum.
A forma de olhar o movimento da cidade, com seus
ritmos, contradições e suas engrenagens, proporciona aos envolvidos no trabalho,
uma nova idéia de ética, estética e produção de cultura. Até então, não se
percebia o quanto o cidadão transeunte participa como espectador, e de forma
passiva, do lugar em que se encontra inserido, o quanto as decisões que implicam diretamente na vida de cada
pessoa no espaço urbano estão distante delas. Vários são os exemplos que podemos
citar, desde a demolição de um prédio antigo, que representa a memória do lugar,
à construção de uma colônia penal, que gera debates pelo fato de a população
querer bem longe de si pessoas que representam uma ameaça à harmonia social. Na
verdade, o que deveria estar em pauta, é a eficácia do sistema penitenciário
atual, seu custo-benefício e razão de ser. No entanto, muitas vezes, nada disso
passa pelo crivo crítico do cidadão. Primeiro, porque não é convenientes esse
debate, e segundo, porque falta à comunidade em geral, o manejo das ferramentas
cognitivas necessárias a esse tipo de discussão. Daí, preserverarmos no intuito
de ampliarmos o trabalho, realizando oficinas socioambientais e, gradativamente,
estender a coleta de recicláveis e a parceria com catadores a outras escolas.
Mesmo sabendo que o espaço do saber formal ainda
tenha um longo caminho a percorrer, no sentido de promover uma real integração
entre as várias dimensões do contexto social urbano e os vários papeis
desempenhados pelas pessoas que nele se movimentam, o que temos que fazer é
colocar o ser humano que atua, que pensa, que fala, que sonha, que ama, que
odeia, que cria e recria, que sabe e ignora, que se afirma e que se nega, que
constrói e destrói, que é tanto o que herda quanto o que adquire, no centro de
nossas preocupações, como afirma Freire (2001). Por isso, nos dedicamos à
educação informal. E muitas pessoas têm contribuído com nossa proposta, pois
acreditam que, por meio da educação, formal ou informal, os seres humanos se
movimentam, lutam e podem construir um espaço mais inclusivo e menos
fragmentado, como é o caso dos diferentes espaços urbanos. Dessa forma,
terminamos nossa reflexão afirmando que colocar em pauta a segurança, a inclusão
social e o desenvolvimento sócio-ambiental, considerando as diferenças sociais,
é uma tentativa que pode nos levar à construção de uma gestão urbana integrada e
participativa.
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2003. p. 2002-2011.
1 Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Geografia
IG/UFU
e-mail: anapaula@projetoemcantar.org.br
2 Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Geografia IG/UFU-
e-mail: penhavm@terra.com.br
3 Doutora Profª.Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia
IG/UFU
e-mail: vaniarubia@nanet.com.br
Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina
– 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo |

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