Existem várias reflexões teóricas sobre os
traços essenciais da configuração atual do sistema capitalista. Eu não
pretendo apresentar aqui, neste pequeno texto, mais uma. Meu propósito é,
de forma esquemática e sucinta defender a idéia de que há um vetor
principal instalado no coração do processo histórico da produção de
mercadoria que determina e condiciona as características de todo o sistema
de acumulação de capital e, ao mesmo tempo, impõe marcos, exigências e
limites, que o novo socialismo terá que superar.
Marx antevia, em algumas páginas de seus
Borradores, onde descrevia a relação do capital variável (trabalho vivo
ampliado na produção) com o capital constante (trabalho objetivado morto,
capital, tecnologia e equipamentos) constatando o predomínio crescente do
segundo sobre o primeiro, que a evolução desta tendência poderia levar o
sistema capitalista à beira do colapso (voar pelos ares). Isto porque o
processo histórico de consolidação do regime de trabalho assalariado e de
acumulação de capital, desde o surgimento da grande indústria (revolução
industrial) se desenvolveu através de uma sucessão ininterrupta de ciclos
que sempre se concluíam com saltos na elevação da potência efetiva
do sistema produtivo que incorporava na alma da produção mais trabalho
objetivado (conhecimento em forma de técnica tecnologia associada ao
capital). Maior o capital constante empregado na produção, mais máquinas,
mais fábricas, maior o número de trabalhadores empregados, maior a
capacidade produtiva geral do sistema. Este pequeno esquema é na verdade a
figuração de um longo processo histórico de elevação do nível geral do
conhecimento e da técnica desenvolvidos por toda a humanidade e
incorporados ao sistema de produção, ou seja: o trabalho social resulta em
maior riqueza do que aquela necessária pura e simplesmente à reprodução
social para a “subsistência” e a reprodução da força de trabalho. O
excedente do trabalho social, digamos assim, além de sustentar o padrão de
consumo das classes dominantes, superior à média da população e em sua
maior parte realocado para a infra-estrutura, para o estudo e para a
criação científica ou para a ampliação da produção através do aumento do
capital constante investido.
Este processo contínuo na verdade evoluiu
lentamente até possibilitar a passagem do regime de trocas mercantis
simples e de acumulação primitiva para o assalariamento do trabalho, o
advento da máquina a vapor, a revolução industrial, a constituição das
primeiras grandes metrópoles, e daí em diante acelera-se enormemente. À
medida que aumentam o capital constante e a capacidade produtiva geral do
sistema, diminui a participação coletiva do trabalho na
produção.
A percepção desta dinâmica de reprodução do
capitalismo, fez com que Marx (na referida obra) concluísse que seria
inevitável que o trabalho vivo chegasse à condição de vigiar a produção e
conduzi-la, muito mais do que ser seu elemento predominante. Pelo mesmo
motivo observou o elemento de contradição agônica do sistema do capital
que tem no trabalho (valor) a medida de toda riqueza e, ao mesmo tempo, é
obrigado a reduzi-lo a um mínimo.
Em minha opinião esta lógica interna da
reprodução do sistema capitalista presidiu o desenvolvimento do mesmo até
meados da década de 70, quando experimentou um salto de qualidade. Até
então, o mais constante elemento de crise do sistema capitalista era o
descompasso do ritmo de crescimento e da capacidade de produzir muito
maior do que o crescimento da capacidade de consumir (mercado). Isto
provocava freqüentemente crises de superprodução. Estas contradições
impulsionaram permanentemente uma intensa disputa de mercado de fontes de
matérias primas e mão-de-obra barata. Criaram as condições para o
nascimento dos grandes monopólios mundiais e para a concentração e
centralização em nível mundial e consolidaram os pilares do imperialismo
como sistema de dominação mundial. Apesar de todas as crises, guerras e
revoluções o sistema sobreviveu porque o distanciamento contínuo entre o
crescimento geométrico da capacidade de produzir e o crescimento no máximo
linear, muito mais lento, da capacidade de consumir manteve um equilíbrio
instável entre o crescimento da potência efetiva do processo de produção e
a demanda do capital e trabalho. Ou seja, para manter o seu ciclo de
expansão produtiva o sistema incorporava a maior parte do capital
acumulado e da força de trabalho reproduzida.
Apesar das ondas de desemprego, das queimas
de capitais e das grandes recessões, o equilíbrio mínimo se reinstalava e
o padrão geral de reprodução do capital se restabelecia mesmo após
verdadeiras revoluções. É claro que ao longo do tempo, especialmente
durante o século 20 acumularam-se, dentro desta contradição geral,
elementos quantitativos que tenderiam inevitavelmente a levar o sistema ao
limite e ao esgotamento. E isto de fato ocorreu no último quarto do século
passado.
Era óbvio que o sistema chegaria ao dia que
seria possível aumentar a produção e a produtividade sem ter que,
necessariamente, ampliar a incorporação de trabalho, do mesmo modo, os
limites objetivos para a ampliação dos mercados diante de uma potência
produtiva tão elevada provocaria enorme excedente de capitais. Em 1974, os
relatórios da OCDE mostraram um fenômeno até então desconhecido, os
índices constataram crescimento econômico e ao mesmo tempo crescimento do
desemprego. Este fenômeno está se universalizando rapidamente porque,
apesar do desenvolvimento desigual do capitalismo mundial, o grau de
monopolização da economia é tão elevado que impõe um parâmetro de
produtividade em todo o mundo.
Esta realidade nos contempla com uma crise
estrutural, de novo tipo no sistema capitalista mundializado, e, até
agora, nenhum receituário eficiente para debelá-la se
apresentou.
Ao contrário, as medidas de cunho
neo-liberal, tendem a agravá-la de modo intenso e rápido porque agudiza
seus elementos principais:
a) intensifica a guerra intermonopolista, a
concentração e a centralização de capital forçando também a guerra pela
produtividade e acelerando a incorporação de mais tecnologia e
racionalização da produção, isto é, mais e mais trabalho morto (capital
constante) e menos e menos trabalho vivo; b) Aumenta o desemprego
estrutural nos países dominantes, torna ineficiente o antigo atrativo da
mão-de-obra e matéria prima baratos dos países dominados, gerando legiões
de excluídos, miseráveis, atraso insuperável dentro dessa ordem e
conseqüentemente, barbárie; c) Aumenta o volume de capitais
especulativo que não podem ser investidos na produção sob pena de
explodirem a economia mundial com uma inimaginável crise de super-produção
que transformou-se numa ameaça constante para o sistema; d) O padrão de
produção e consumo atingem a insustentabilidade total.
A simples manutenção dos atuais padrões de
consumo podem levar à destruição da biosfera terrestre em poucos anos. O
que dizer então da ilusão irracional de que seria possível elevar o padrão
de produção e consumo dos países pobres e dominados ao nível dos países
“desenvolvidos” dominantes.
O meu intuito, e de muitos companheiros que
hoje militam no MTL, quando insistimos nesta abordagem, não é obviamente
acadêmico. Consideramos que a esquerda revolucionária, em geral, não
dedicou ainda o esforço necessário para atualizar a crítica ao capitalismo
e ao mesmo tempo para referendar o projeto socialista.
Conforme as condições atuais não há nenhuma
possibilidade de sucesso para o nosso projeto se não compreendermos que,
apesar da miséria e das contradições atuais, a superação do capitalismo e
inauguração do socialismo não poderão fundamentar-se conseqüentemente na
velha figura do Estado ditatorial fordista (ditadura + emprego) e sim no
semi-estado libertário (liberdade + tempo livre).
Os fenômenos que atingem o mundo do trabalho
não são passageiros e não representam apenas um pouco mais de diversidade.
Representam sim, menos trabalho e isso é uma lógica histórica inevitável.
Por isso, sem-terra, sem-teto, perueiros, precarizados e trabalhadores
formais devem incorporar em sua vivência a luta pelo controle do processo
produtivo sob a organização coletiva para o usufruto e para a qualificação
de todos.
A nova estratégia socialista terá que
nivelar, no primeiro plano, a luta contra a exploração econômica, a luta
ecológica e o humanismo, apontando para a reorganização do mundo em
direção à sustentabilidade da produção e do consumo, ao mínimo tempo de
trabalho, à plena democracia e ao usufruto e enriquecimento cultural da
humanidade.
Isto quem diz são as condições a que chegou
o sistema capitalista que, se por um lado nos avizinha da barbárie, por
outro, nos abre as portas para um socialismo muito menos “transitório” e
muito mais avançado. |