NCeHu 1350/04
Entrevista exclusiva de Gilberto Maringoni
"Chavez mostrou que a democracia pressupõe enfrentamento e
conflito e não adaptação"
19/8/2004
1. Em que o sucesso de Hugo Chavez no
referendo pode influenciar a esquerda brasileira? A vitória de
Chávez no referendo é decisiva para a esquerda em toda a América Latina. O
dirigente venezuelano mostrou que a democracia pressupõe enfrentamento e
conflito e não adaptação. A vitória evidencia também ser possível tentar um rumo
diverso àquele imposto pelo capital financeiro na gestão dos negócios públicos.
Ou seja, de que o Estado pode ter um papel ativo e preponderante na orientação
econômica e social, ao contrário do que apregoam as teses sobre o chamado Estado
mínimo, livre mercado etc. A administração pública investe, com sucesso, na
mudança da correlação de forças na Venezuela, incentivando a organização
popular. Em síntese, ele mostra que a idéia de que "não há alternativas",
adotada por expressivos setores da esquerda brasileira, não se sustenta em
nenhuma hipótese.
2. Qual foi a participação dos brasileiros e do
governo brasileiro no referendo? Foi significativa. Para começar, o
abaixo-assinado "Se fôssemos venezuelanos votaríamos em Chávez", iniciativa de
várias personalidades brasileiras, teve uma repercussão muito grande nos meios
culturais de diversos países, setores que ainda vêem Chávez com certa
desconfiança. Em seguida, o PT manifestou-se oficialmente através de uma nota e
do envio de uma delegação ao país, o que suscitou encarniçados ataques à
agremiação por parte da oposição local. E o governo brasileiro, teve um
comportamento equilibrado nessa questão. Havia dezenas de brasileiros,
representando a CUT, o MST, a CGTB, o PcdoB e outras entidades, no dia 15 de
agosto, em Caracas. Atuaram como observadores e convidados, o que mereceu, por
mais de uma vez, referências especiais por parte do presidente
venezuelano.
3. Que perspectivas novas se abrem para o governo
venezuelano depois do referendo? Para começar, Chávez se fortaleceu
muitíssimo, obtendo, tanto em termos absolutos (4,99 milhões contra 3,7
milhões), quanto em termos proporcionais (59% contra 57%), mais votos do que em
sua primeira eleição, em dezembro de 1998. Apesar de eloqüentes, os números não
explicam tudo. Durante os anos de 1998 a 2000, quando Chávez venceu sete
eleições consecutivas - duas presidenciais, plebiscito, eleição e referendo da
constituinte, parlamentares, de governadores e prefeitos - aconteceu um difuso
voto de protesto com apoio emocional a quem se colocava contra a
institucionalidade vigente. O processo avançou. Agora a escolha é mais racional
e politizada, refletindo uma disputa de hegemonia mais clara na sociedade. A
população não tinha isso de todo claro naquela época. Ou seja, a luta de classes
se agudizou, refletindo comportamentos profundos na sociedade, como intolerância
e racismo por parte das elites. Chávez não é mais apenas um fenômeno eleitoral.
Com isso, sua margem de manobra interna aumenta muito e a oposição se fragmenta
e se isola tanto interna quanto externamente. Mesmo para os chamados mercados,
Chávez hoje, paradoxalmente, representa a estabilidade. E no plano externo, sua
presença também se legitima mais.
4. Pode-se avaliar qual será a
nova tática da oposição depois da derrota no referendo? Os setores
mais duros da oposição, que promoveram o golpe de Estado devem continuar a falar
em fraude por um bom tempo. Estão se isolando e se dividindo. Outros setores,
como Teodoro Petkoff, a Fedecâmaras e alguns governadores ainda não definiram
sua tática. Há ainda a tentativa, por parte do candidato John Kerry, dos Estados
Unidos, de tentar algum tipo de entendimento com Chávez, aceitando sua
liderança, mas pressionando por mudanças de rota.
5. Mantém-se
uma politica econômica neoliberal? Por que? Eu não diria que a
política econômica de Chávez é neoliberal. Ela é pragmática e cautelosa, bem
diferente de sua incontinência verbal. O governo sabe que pisa em terreno minado
na arena internacional. Até agora nenhum direito de propriedade ou os interesses
mais estruturais do capital financeiro foram tocados. Os compromissos assumidos
anteriormente e as empresas estatais privatizadas seguem como estavam. Há toda
uma diretriz voltada para a atração de mais investimentos externos. A Venezuela
segue pagando britanicamente seus compromissos financeiros, até porque seu
endividamento externo (10% do PIB) e interno (28% do PIB) não são impeditivos
para uma conduta econômica autônoma. As reservas cambiais são altas - US$ 24
bilhões - e não há problemas de solvência no longo prazo. A Venezuela é o único
país do mundo, de acordo com Edgardo Lander, que poderia fazer um cheque e
quitar a dívida externa com as reservas que possui. Não há acordo algum com o
FMI e nem a necessidade de se gerarem superávits primários. Isso faz uma brutal
diferença para a gestão soberana da política econômica. Existe uma diretriz
evidente para se colocar o Estado como indutor do desenvolvimento, diversificar
a planta produtiva e tornar a riqueza petroleira de fato um bem público. Isso já
vem acontecendo, através do aumento dos orçamentos das áreas sociais. Agora, é
bom frisar que os excedentes que possibilitam a série de programas sociais que
vêm sendo desenvolvidos são viabilizados pela alta dos preços do petróleo. Se
caírem muito, o governo pode enfrentar dificuldades.
6. Qual o
estado atual dos movimentos sociais na Venezuela? A Venezuela viveu
décadas de uma democracia de fachada, entre 1958 e 1998, quando dois partidos -
a Ação Democrática e a Copei - revezaram-se na gestão do Estado. Por trás de
eleições regulares e poderes republicanos que teoricamente funcionavam de modo
independente, havia uma duríssima repressão contra a esquerda e os movimentos
populares. A Central de Trabalhadores da Venezuela integrava esse condomínio de
poder, dirigindo com mão de ferro o sindicalismo. O resultado foi a
desorganização quase crônica do movimento popular. Somente agora, com a ajuda do
Estado, começa a haver uma organização ainda débil, porém em franco crescimento.
É preciso frisar que Chávez não é fruto de uma construção coletiva do movimento
popular, mas irrompe na cena política de forma surpreendente, a partir de 1992,
por fora das organizações de esquerda tradicionais. Mas a grande novidade é que
os setores mais identificados com os velhos partidos, no meio sindical e
popular, perderam a hegemonia. A mais importante entidade de trabalhadores, a
Fedepetrol, dos petroleiros, não está mais nas mãos da CTV. Foi criada há mais
de um ano uma nova central, a União Nacional dos Trabalhadores, que tem vencido
grande parte das disputas com a velha central. Mas estas questões todas chamam
uma outra: qual a relação de Chávez com a população, se o movimento é
desorganizado e os partidos políticos - inclusive os apoiadores do governo - são
pouco mais do que legendas eleitorais? A relação é direta e Chávez é, de fato um
líder populista. Não há problema algum nisso. Confunde-se muitas vezes populismo
com demagogia. O que foi, em síntese, o populismo na América Latina, na primeira
metade do século XX, especialmente nos casos de Perón (Argentina), Vargas
(Brasil) e Cárdenas (México)? Foram casos de dirigentes que governaram
sociedades agrárias em rápido processo de urbanização e industrialização, sem
que existissem instituições representativas dessa nova conformação social. A
relação entre os líderes e o povo se dava, assim, sem mediações, pois estas não
existiam. Na Venezuela atual, por outros caminhos, temos uma sociedade com
canais de representação destroçados, tentando se organizar em novas bases. Por
isso, mesmo Teodoro Petkoff, por exemplo, julga que Chávez era historicamente
uma possibilidade quase inevitável, pela necessidade objetiva de uma liderança
acima da ruína de instituições e partidos que acometeu a Venezuela nos anos
1990. A vantagem é que Chávez tenta reconstruir o Estado e as instituições - a
partir do alto, é verdade - sob bases mais democráticas, das quais o referendo
revogatório é apenas mais um capítulo.
Fuente: www.outroBrasil.net
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