NCeHu
1346/04
Racismo pode levar Bolívia à
secessão territorial
Região de Santa Cruz alega ter
superioridade racial e econômica
Juan
Forero
The New York
Times 27/8/04
Em Santa Cruz, Bolívia A cidade de Santa Cruz, nos
limites da Amazônia, há muito nutre certo complexo de superioridade. Essa
tendência foi exposta embaraçosamente em junho, no concurso para Miss Universo.
A concorrente boliviana, Gabriela Oviedo, nativa de Santa Cruz, disse aos juizes
que nem todos os bolivianos eram "pobres, baixinhos ou índios". "Sou do outro
lado do país, do leste, onde não é tão frio", acrescentou. "É muito quente e
somos altos, brancos e sabemos falar inglês." Os comentários incendiaram o
governo em La Paz, capital a 3.900 metros de altitude, nos Andes. O governo vem
tendo problemas com grupos indígenas irrequietos, cujos levantes paralisaram o
país nos últimos anos. Os habitantes de Santa Cruz, entretanto, decididamente
expressam suas diferenças culturais, étnicas e sociais com os bolivianos das
altitudes. Os problemas das terras altas parecem tão remotos para os crucenos,
como são chamados os nativos de Santa Cruz, que eles começaram a falar em
autonomia e até em secessão. Apesar de a região ser rica em gás natural, o povo
se sente economicamente prejudicado. A rixa entre as altitudes e esta cidade e
Estado, também chamado de Santa Cruz, é emblemática de um país dividido pelo
regionalismo e ressentimentos de séculos entre os índios das altitudes e suas
classes governantes tradicionais. Santa Cruz se vê como um mundo diferente das
planícies frias e cheias de vento das altitudes. Esta cidade, de 1,4 milhões de
habitantes, é salpicada de arranha-céus, tem ruas movimentadas e cafés e amplas
avenidas com empresas multinacionais, desde Goodyear e Petrobrás até Kia Motors.
A cidade --sozinha-- gera um terço do Produto Interno Bruto da Bolívia, mais da
metade de suas exportações e a maior parte de sua arrecadação. Os afluentes, que
falam português além do espanhol, olham menos para La Paz do que para oeste,
para o Brasil, 160 km mais perto. "Existem pessoas aqui que não reconhecem a
Bolívia. São uma nação separada, como uma nação sem Estado", disse Sergio
Antelo, ex-prefeito e líder do grupo Nação Camba, cujos membros são
particularmente estridentes. O movimento de secessão ainda é marginal, movido em
grande parte pela emoção e, segundo alguns críticos, por racismo. Alguns de seus
promotores ressaltam que a maior parte dos habitantes de Santa Cruz são
miscigenados, e não índios Aymara ou Quéchua puros, como a grande maioria do
resto do país, de 8 milhões de habitantes. A situação, entretanto, sublinha a
sensação cada vez mais clara dos crucenos de que o presidente fez decisões
economicamente ruinosas às suas custas, ao tentar agradar os grupos indígenas
fortemente opostos à globalização sem desagradar empresários que defendem
reformas de mercado e laços econômicos com países vizinhos. Há quarenta anos,
Santa Cruz era uma espelunca quente e poeirenta, de ruas de terra, estruturas
coloniais decadentes e velhos homens da fronteira. Ilhada e pobre, tinha 50.000
habitantes, muitos trabalhando em uma indústria açucareira nascente. No entanto,
com a chegada de migrantes trabalhadores do resto do país, a percentagem da
população total da Bolívia na região cresceu de 15% em 1976 para 25%. O
investimento estrangeiro em Santa Cruz saltou nos últimos anos, enquanto que no
país, em geral, caiu. Hoje, esta cidade é o motor do crescimento econômico da
Bolívia. Ainda assim, muitos crucenos acreditam que seu futuro é incerto,
particularmente depois que o presidente Carlos Mesa fez um referendo em julho
perguntando aos bolivianos se o país devia exportar gás natural e aumentar os
impostos e outras restrições sobre empresas de energia privadas. A medida foi
aprovada, mas as pessoas de Santa Cruz viram no referendo o maior indicador da
fragilidade do governo diante da pressão de grupos radicais índios. "Questões
econômicas não deviam ser debatidas em referendos. Estamos agora na calmaria que
vem antes da tempestade", disse Oscar Ortiz, gerente do grupo industrial Cainco.
Lorgio Balcazar, gerente geral do Comitê Cívico Pro Santa Cruz, que defende a
autonomia, acrescentou: "Estamos nos dirigindo ao abismo. Ninguém quer investir.
Não há segurança." Os empresários de Santa Cruz, desde a indústria petroleira
até os barões do açúcar e da soja, temem que os movimentos indígenas da Bolívia
conquistem tanto poder que, em breve, assumirão o comando e ditarão as regras,
indesejáveis para Santa Cruz. Essa realidade política exacerbou o ressentimento
dos crucenos pela falta de controle regional sobre as finanças e o governo. A
região é sub-representada no Congresso, paga mais impostos do que recebe do
governo e quer o direito de eleger seu governador, que atualmente é nomeado pelo
governo central. A solução mais palatável, disseram vários líderes comunitários,
é La Paz descentralizar a Bolívia e dar a esta região uma espécie de autonomia.
"Se não, pode haver outros distúrbios como os de 2003, não em El Alto, mas em
Santa Cruz. Estamos chegando ao fim da tolerância. Não há mais tolerância em
Santa Cruz", disse Carlos Dabdoub, neurocirurgião e ex-ministro da saúde que
ajuda a liderar o movimento pela autonomia. Cada vez mais crucenos unem-se ao
movimento. Dezenas de milhares marcharam em junho, acenando com bandeiras verdes
e brancas de Santa Cruz e cartazes dizendo: "Autonomia, caralho!" Algumas
camisetas diziam: "Este é meu país", mostrando apenas as províncias em forma de
meia lua do leste da Bolívia. Os argumentos em defesa da autonomia muitas vezes
têm um tom de superioridade racial, dizem os opositores. Alguns dos separatistas
mais radicais argumentam que o país deve reconhecer o povo da região --chamado
de Cambas-- como um grupo étnico separado e independente, como os índios são
reconhecidos na Constituição. "É um discurso que semeia a idéia de 'nós e mais
ninguém'", ridicularizou Tuffi Are, colunista do jornal "El Deber". Mesmo assim,
em uma reunião em noite recente da Nação Camba, um grupo que inclui separatistas
e defensores da autonomia, cerca de 20 pessoas sentadas em cadeiras de bar,
debaixo de luzes fluorescentes, reclamaram de invasões de terras por migrantes
das altitudes e pessoas de fora trazendo tuberculose. Elas temiam a cultura das
terras altas e o poder do governo central. "Não podemos conviver com um Estado
que é tão ferozmente centralizador. Tudo que você vê aqui em Santa Cruz é
produto da iniciativa privada. O Estado não fez nada", disse Angel Sandoval,
escritor e membro da Nação Camba.
Tradução: Deborah Weinberg
Fuente: Edlene Aparecida Monteiro Garcon -
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