NCeHu 264/04
As origens remotas da ALCA
Augusto C.
Buonicore
Diário
Vermelho
A doutrina Monroe e o destino
manifesto
No dia 4 de julho de 1776 foi proclamada a independência
norte-americana - Declaração de Independência. A guerra que se seguiu durou
cerca de 6 anos. A jovem república, a primeira república moderna, era composta
por treze colônias federadas concentrada ao lado do Atlântico.
Nasceu com
a necessidade de proteger-se das gananciosas potências européias, especialmente
a Inglaterra, e também com pretensões de se expandir para oeste e sul do
continente, dominados por espanhóis e depois por repúblicas independentes, mas
estáveis. Pouco a pouco foi se constituindo uma ideologia da superioridade dos
norte- americanos sobre os outros povos do continente – descendentes de
espanhóis, portugueses e indígenas. Aos norte-americanos caberia conduzi-los ao
caminho da civilização e da modernidade. Este seria o seu "Destino Manifesto" -
termo extraído da Bíblia no qual se procurava relacionar o futuro dos americanos
do norte ao destino do povo eleito por Deus - os judeus.
A ideologia do
"Destino Manifesto" teve como um momento importante de concretização o ano de
1823, quando James Monroe apresentou a sua mensagem presidencial ao congresso
norte- americano - cujo corpo de idéias foi denominado Doutrina Monroe. Neste
famoso texto se afirma: "A América para os americanos".
A princípio ela
foi entendida como uma resposta norte-americana às potências européias que
estavam de olho no continente americano, inclusive nos territórios do norte. Os
norte-americanos ainda disputavam o Oregon com os ingleses, e os russos estavam
de olho na Califórnia. No sul, a independência brasileira ainda não estava
consolidada, nem no restante da América Latina, e a própria Europa era dominada
pela Santa Aliança - uma coligação arqui-reacionária.
No entanto, mais do
que se protegerem das pretensões européias, queriam proteger seus interesses
político e comerciais nas Américas, ainda que acobertando-os com um verniz
democrático e progressista. Prova disso é que os EUA se colocaram contra o
projeto do México e da Colômbia de ocupar as Antilhas e libertá-las do jugo
espanhol - temiam a anexação destas ilhas pelos dois jovens países republicanos
recém-libertados. Os EUA também se opuseram ao projeto bolivariano de união
americana, aprovado no Congresso do Panamá. Ficava claro que quando Monroe disse
"A América para os americanos" quis na verdade dizer para os "norte-
americanos".
Restabelecidos da guerra contra a Inglaterra os EUA partiram
para a realização do seu "Destino Manifesto", através da utilização da força
físico-militar. O primeiro passo foi a conquista do Texas. Desde o final da
década de 20 do século XIX colonos do sul dos Estados Unidos se deslocaram para
a região do Texas, pertencente à República do México. Aproveitando a confusão
política e a corrupção reinantes montaram suas fazendas e introduziram o
trabalho escravo - a Constituição mexicana proibia a escravidão. Em 1835 o
México aprovou uma Constituição centralista - não federalista. Este foi o
pretexto para que os colonos se rebelassem e proclamassem a independência do
Texas em 1836 - fundando a república da estrela solitária - e pedissem
rapidamente a sua integração aos EUA. Os EUA reconheceram imediatamente,
passaram a proteger a nova república e, em 1845, a anexaram sob protesto do
governo e do povo do México.
Os EUA não estavam contentes e queriam mais.
No ano seguinte (1846), aproveitando-se de um conflito militar na fronteira,
declararam guerra ao México. A guerra terminou com a derrota mexicana e a perda
dos territórios de Califórnia, Novo México, Nevada, Arizona e Utah. O México
perdeu cerca de metade do seu território e os EUA ganharam o seu tão desejado
acesso ao oceano Pacífico e aos territórios, nos quais, em poucos anos, seriam
descobertos ouro e petróleo. Não foi sem motivo que alguém um dia falou: "Pobre
México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos". Iniciou-se a corrida
para o Oeste e nesta nova marcha a população indígena foi massacrada.
Em
1855 tentaram fazer a mesma coisa com a Nicarágua. Neste ano o mercenário
William Walker desembarcou com 120 homens fortemente armados e tomou o país.
Apoiado pelos sulistas norte-americanos declarou-se presidente e restabeleceu a
escravidão. Desta vez a tentativa de colocar novas estrelas na bandeira
americana fracassou. Walker foi derrotado e acabou sendo fuzilado pelo governo
de Honduras.
Dois anos depois, em 1857, no seu discurso de posse o
presidente americano James Buchanan afirmou: "a expansão dos Estados Unidos
sobre o continente americano, desde o Ártico até a América do Sul, é o destino
de nossa raça (...) e nada pode detê-la". Falando em nome dos "altos e amplos
objetivos nacionais", o jornalista e político norte-americano John O&#
8217;Sullivan se posicionou contra aqueles que "buscam prejudicar nosso poder,
limitando nossa grandeza e impedindo a realização do nosso Destino Manifesto,
que estendermo-nos sobre o continente que a Providência fixou para o livre
desenvolvimento de nossos milhões de habitantes, que anos após anos se
multiplicam". Tese muito semelhante à do "espaço vital" para a raça germânica
(ariana) apregoada por Hitler cem anos depois.
Em meio a uma ofensiva
expansionista, em 1898, os EUA declararam guerra à Espanha e ocuparam seus
territórios no Caribe e no Pacífico. Entre estes estava a pequena Cuba que
travava uma guerra sangrenta pela sua independência (1868-1878 e de 1895-1898),
dirigida por Martí. O pretexto da guerra havia sido justamente o apoio ao povo
cubano escravizado pelos espanhóis e a explosão do "Maine" em porto cubano -
possivelmente um acidente.
O objetivo real, porém, não era libertar Cuba,
mas defender os interesses americanos na ilha que era a maior produtora de
açúcar do mundo. A ilha permaneceu ocupada militarmente até 1902 e só se
retiraram quando os constituintes cubanos aprovaram a emenda Platt - uma lei
americana - que dava direito aos norte-americanos de intervirem na ilha. Cuba
tornou-se assim um protetorado americano no Caribe. Somente em 1933 foi revogada
a emenda Platt.
Entre 1889-1890 ocorreu a primeira Conferência
Pan-americana em Washington. Dezoito países americanos compareceram. Os EUA
propuseram uma união aduaneira em todo o continente e um conselho de arbitragem
dos conflitos econômicos e militares e, inclusive, uma moeda comum, o dólar. O
projeto fracassou pela resistência imposta por Argentina e do Brasil. Foi
formada, então, a efêmera União Pan-Americana (avó da OEA).
O Theodore
Roosevelt e o Big Stick
Em 1890 a marinha americana era a sexta do
mundo e em 1907 já era a segunda. Em 1901 assumiu o presidente Theodore
Roosevelt, antigo chefe de polícia de Nova Iorque, inaugurando a política do
"Big Stick" - como ele mesmo dizia: "Fale suave, mas tenha nas mãos um grande
porrete que será bastante útil".
O "grande porrete" norte-americano foi
bastante utilizado, mais do que a fala suave. Cuba foi ocupada novamente entre
1906-1909, em 1912 e 1917-1922. Os marines ocuparam também o Haiti (1915-1934),
a República Republicana (1916-1924) e a Nicarágua (1909-1910,
1912-1933).
A extensão dos EUA de uma costa a outra criou problemas ao
comércio e à defesa militar. Era preciso construir um canal entre os dois
oceanos. O lugar ideal era a região do Panamá, pertencente à Colômbia. O governo
colombiano opôs obstáculos aos planos norte-americanos de constituir um enclave
militar e comercial em seu território. O governo norte-americano passou, então,
a apoiar os rebeldes separatistas do Panamá e foi o primeiro a reconhecer a sua
independência (1903) e enviar soldados para protegê-la - nascia, assim, a
República do Panamá. O seu primeiro governo, agradecido pelo apoio decisivo do
tio Sam, entregou a área onde seria construído o canal para os americanos e o
direito de explorá-lo eternamente. Somente na metade da década de 1970 foi se
renegociando o acordo, sendo definido que o canal passaria ao Panamá em
1999.
Em 1927 os norte-americanos interviriam militarmente na guerra
civil da Nicarágua e ali permaneceram até 1934. No ano da retirada dos
americanos foram assassinados, com seu aval, vários dos principais líderes
populares e antiimperialistas nicaragüenses - entre eles o comandante Augusto
César Sandino.
A Política da Boa Vizinhança - Franklin D. Roosevelt
(1933-1945)
A política do Big Stick entrou em crise juntamente com o
capitalismo norte-americano em 1929. Com a crise econômica tendeu a crescer a
animosidade das autoridades e dos povos latino-americanos contra a política
externa agressiva dos norte-americanos. Em 1930 Vargas assumiu a presidência do
Brasil com uma política mais nacionalista e Lázaro Cárdenas se elegeu no México
em 1934.
Em 1933 Roosevelt assumiu a presidência dos EUA, Hitler tomou o
poder na Alemanha e o Japão consolidou sua posição na Manchúria. Existia, assim,
o perigo de uma nova guerra mundial iminente. Na 7ª Conferência Pan-americana
foi aprovado um documento que afirmava: "Nenhum estado tem o direito de intervir
nos assuntos internos ou externos de outro estado". Era o início da Política de
Boa Vizinhança, visando a diminuir a desconfiança dos latino- americanos em
relação ao "grande irmão do norte". Os americanos, a contragosto, romperam com
sua política antiindustrialista para a América Latina e, em 1939, liberaram o
financiamento público para a constituição da CSN e Cia. Vale do Rio Doce,
inauguradas em 1941 e 1942, e para a modernização das Forças Armadas
brasileiras. Ocorreu também uma ofensiva no campo cultural, com o aumento do
intercâmbio - nesta guerra foi mobilizada Hollywood, inclusive os estúdios
Disney.
Doutrina Truman e a guerra fria
Imediatamente após
a 2ª Guerra Mundial os americanos reduziram sua atenção sobre a América Latina e
concentraram o seu apoio financeiro aos esforços de reconstrução da Europa,
contra a expansão da URSS, através do Plano Marshall. Os latino-americanos
protestaram contra tal descaso e exigiam um Plano Marshall para América Latina.
No Brasil, o líder industrial Roberto Simonsen foi um dos principais porta-vozes
dessa solicitação.
Em 1947 foi aprovado o Tratado Interamericano de
Assistência Recíproca (TIAR) que impõe obrigações de ajuda mútua e de defesa
comum das Repúblicas americanas. Em 1948 realizou- se a 9ª Conferência
Pan-americana que decidiu pela formação da Organização dos Estados Americanos
(OEA). Estes tratados tinham mais objetivos políticos e militares do que
econômicos, não traziam nenhuma vantagem material para o sul do
continente.
Em 1952 foi eleito o republicano General Eisenhower, ligado
aos grandes trustes. É de seu secretário de defesa, antigo diretor da GM, a
famosa frase: "O que é bom para a GM é bom para os EUA". Foi por isso denominado
"o governo de três generais" - General Eisenhower, General Eletric e General
Motors.
A OEA passou a ser o principal instrumento na manutenção da
hegemonia política e militar norte- americana na América Latina. Em março de
1954 diante do crescimento do movimento nacionalista de esquerda fez aprovar
Declaração de Solidariedade para a Preservação da Integridade Política dos
Estados Americanos Contra a Intervenção do Comunismo Internacional.
Neste
documento declara-se "que o domínio ou controle das instituições políticas de
qualquer Estado americano por parte do movimento internacional comunista, que
tenha por resultado a extensão até o continente americano do sistema político de
uma potência extracontinental, constituiria uma ameaça à soberania e à
independência política dos Estados americanos, o que poria em perigo a paz da
América!". Vários delegados se posicionaram contra o teor dessa declaração que
era uma ameaça à soberania de cada país.
A preocupação se mostrou
correta. Poucos meses depois golpes militares derrubariam governos
nacionalistas: de Jacobo Arbens, na Guatemala, e de Vargas, no Brasil. Em 1962 a
OEA aprovou a exclusão de Cuba, com a abstenção de Brasil, Argentina, Chile,
México, Bolívia e Equador. Em 1965 aprovou a intervenção militar na República
Dominicana para impedir a posse do nacionalista Juan Bosch.
Kennedy e
a Aliança para o Progresso
No início dos anos 60 ocorre uma nova
mudança de tom na política externa americana. Em março de 1961 o presidente
Kennedy anuncia a sua Aliança para o Progresso. Afirma ele: "Convoquei toda a
população do hemisfério para que se una em uma nova Aliança para o Progresso, um
vasto esforço cooperativo (...) para satisfazer as necessidades básicas do povo
americano de habitação, trabalho e terra, saúde e escola". A Conferência
Econômica e Social de Punta del Este, convocada por ele, ocorreu em agosto do
mesmo ano. Os EUA prometeram investir 20 bilhões de dólares em 10 anos.
O
plano tinha o objetivo de impedir o avanço dos movimentos revolucionários na
América Latina e isolar Cuba. Neste mesmo ano Cuba foi excluída da OEA e os
americanos apoiaram a fracassada tentativa de invasão na Baía dos Porcos. A
derrota destes mercenários fortaleceu o governo revolucionário cubano e o seu
prestígio entre as forças democráticas e nacionalistas do continente. Mais
tarde, ocorreria uma nova ameaça de ocupação durante a chamada crise dos
mísseis. Os Kennedy sempre foram furibundos inimigos do regime socialista de
Cuba e de seu líder Fidel Casto.
O assassinato de Kennedy, a posse de
Lindon Johnson, em 1963 e depois a vitória dos republicanos em 1968 levou a um
maior endurecimento da política externa norte-americana para o continente -
ocupação da República Dominicana e apoio aberto aos golpes e ditaduras
militares. Cai por terra a Aliança para o Progresso e seu discurso
desenvolvimentista e social. Temos um novo intervalo da presidência democrática
de Carter, que diante do desgaste das ditaduras pregou uma política de direitos
humanos, abrindo os primeiros conflitos entre o governo norte-americano e os
governos militares que passam a usar tonalidades nacionalistas.
Em 1979
temos uma nova vitória dos republicanos conservadores, levando ao poder o
direitista Ronald Reagan - que articula uma radicalização do receituário liberal
para os EUA e para a América Latina com uma política belicista e agressiva
contra os governos e movimentos nacionalistas e de esquerda.
No início da
década de 1990, a débâcle da União Soviética e do campo socialista, a
consolidação dos EUA como potência militar hegemônica, sem concorrência, o amplo
predomínio da ideologia neoliberal no continente, criaram as condições para a
ofensiva norte- americana no sentido de anexar as economias do sul do Rio
Grande, sob o manto sagrado (ou espúrio) da defesa da liberdade de empresa e do
livre comércio. Mas esta já é a outra parte de uma mesma história.
*
Augusto César Buonicore,
Historiador, doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp, membro do Comitê
Central do PCdoB e do Conselho de Redação da revista Debate Sindical
Fuente: www.rebelión.org , 29 de febrero de
2004.