NCeHu 821/03
A FUNÇÃO DA
UNIVERSIDADE
NA CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA NACIONAL
E DA CIDADANIA(*)
Leonardo
Boff(**)
(*) Este texto foi
produzido no ano de 1994. Mantém, contudo, o sentido profético de todo texto
clássico. Agradecemos ao nosso irmão Leonardo a oportunidade de poder publicar
esta reflexão.
(**) Professor de Ética da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ), escritor, teólogo, um dos mais importantes teóricos da
Teologia da Libertação, publicou vários livros pela Editora Vozes, sendo o
último "A águia e a galinha" (1997), já traduzido para o alemão.
A atual crise da sociedade
brasileira atingiu um estágio crítico, como nunca antes em nossa história. Agora
não há protelações. Tudo se joga. Ou aproveitamos a oportunidade e garantimos
nosso futuro autônomo e relacionado com a totalidade do mundo ou a desperdiçamos
e viveremos atrelados ao destino decidido por outros, omitindo-nos de dar uma
colaboração singular ao futuro da humanidade.
Observador atento
das transformações da economia mundial e brasileira, Celso Furtado escreveu
recentemente em seu livro Brasil: a construção
interrompida:
"Em meio milênio de história, partindo de
uma constelação de feitorias, de populações indígenas desgarradas, de escravos
transplantados de outro continente, de aventureiros europeus e asiáticos em
busca de um destino melhor, chegamos a um povo de extraordinária polivalência
cultural, um país sem paralelo pela vastidão territorial e homogeneidade
linguística e religiosa. Mas nos falta a experiência de provas cruciais, como as
que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada. E que
nos falta também um verdadeiro conhecimento de nossas possibilidades, e
principalmente de nossas debilidades. Mas não ignoramos que o tempo histórico se
acelera e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se
temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se
prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico
de formação de um Estado-nação" 1.
Esse é o desafio que se
levanta às universidades de forma urgente: Ajudam elas na construção do Brasil
como nação soberana, repensada nos quadros da nova consciência planetária e do
destino comum do sistema-terra ? Poderão elas ser co-parteiras de uma cidadania
nova, a co-cidadania que articula o cidadão com o estado, o cidadão com o outro,
o nacional com o mundial, a cidadania brasileira com a cidadania terrenal
ajudando assim a moldar o devenir humano? Ou elas se farão cúmplices daquelas
forças cujo exercício tem como conseqüência a interrupção de um processo
histórico de construção de nosso futuro?
A resposta depende de
nossa lucidez em captar a urgência do momento, de nossa vontade de produzir a
ruptura necessária para a emergência do novo e de nossa coragem para lançarmos a
pedra fundacional para uma nova história do povo brasileiro. Não se trata de um
apelo moralizante, mas de um grito veemente, pois, como advertia, pesaroso,
Celso Furtado: "Tudo aponta para a inviabilização do país como projeto nacional"
2. Mas não queremos aceitar como definitivo este veredicto da história. Antes de
reconhecer as derrotas não devemos deixar de dar as batalhas.
As
reflexões a serem apresentadas querem ajudar na resposta positiva a este
desafio. Vejamos, em primeiro lugar, o impasse que
atravessamos:
1. As quatro invasões que estigmatizaram a
história do Brasil
Toda nossa história é marcada por uma
herança de exclusão que estruturou nossas matrizes sociais. Criou-se aqui, desde
os nossos primórdios, um sujeito histórico de poder, sempre transnacionalmente,
que se mantém, sem ruptura, até os dias de hoje, onerando poderosamente a
construção de uma nação soberana. Somos vítimas de quatro invasões sucessivas
que até hoje inviabilizaram um projeto nacional.
1. A primeira,
fundacional, ocorreu no século XVI com a colonização. Índios foram subjugados ou
mortos, escravos foram trazidos da África como carvão para a máquina produtiva.
Paralisou-se um processo civilizatório autônomo pela imposição da cultura dos
invasores europeus. Inaugurou-se um tipo de poder que subjaz às mentalidades dos
governantes, do patriciado e nas instituições oficiais: a violência dura como
dominação dos subordinados ou a violência doce do assistencialismo e
paternalismo que produz a dependência e o caráter não sustentado de qualquer
iniciativa dos dominados.
2. A segunda se deu no século XIX.
Milhões de emigrantes europeus (italianos, alemães, espanhóis, poloneses, suíços
e outros), inabsorvidos pelo processo de industrialização de seus países de
origem, para cá foram extrojetados. Foram vistos pelos índios, negros e pobres
como os novos invasores. Seus descendentes, logo incorporados ao projeto das
classes senhoriais, criaram zonas prósperas, muitas vezes com a espoliação das
terras indígenas e com a exploração da força de trabalho barata dos negros e
mestiços.
3. A terceira invasão ocorreu nos anos 30 de nosso
século e consolidada nos anos 60 com a ditadura militar. Introduziu-se a
industrialização moderna. Ela se deu em estreita dependência e associação do
capital transnacional e com tecnologias importadas. Por ela se radicalizou a
lógica de nosso desenvolvimento não auto-sustentado, voltado para fora,
produzindo não para aquilo que o povo precise, mas para aquilo que os outros
querem. De exportadores de matérias-primas, passamos a exportadores de
manufaturados e, por fim, a exportadores de capital líquido. Exportamos nos
últimos anos, diretamente, moedas fortes, configurando, segundo Marx, o mais
alto grau do processo de espoliação de um povo, quando é forçado a exportar
dinheiro dos próprios dominadores. Pois este é o efeito da dívida externa.
Produzimos, fundamentalmente, para pagar os juros dos empréstimos e menos para
as nossas necessidades.
Apesar desta contradição, esta fase foi
determinante para o país. Pela primeira vez se tentou criar um sistema econômico
nacional e um estado nacional forte que hegemonizasse semelhante processo. Isso
durou entre 1930/1980. Em tensão dialética a este esforço, elaborou-se também um
outro projeto representando as massas emergentes da cidade e do campo, que
visava um outro tipo de democracia social, capaz de liquidar a herança de
exclusão social que caracteriza nossa história. Para derrotar esta proposta que
encontrara ressonância no poder central do estado sob o presidente João Goulart,
as classes proprietárias deram em 1964 um golpe de classe utilizando o braço
armado, dando a aparência de um golpe militar. Como conseqüência, o Brasil
mergulhou decisivamente na lógica excludente do capitalismo transnacionalizado,
enredando por um caminho de alto risco em termos da construção de um processo
auto-sustentado de desenvolvimento nacional e da construção coletiva da
cidadania.
4. A quarta invasão se deu a partir da inovação
tecnológica dos anos 70 (informatização e comunicação) e implosão do socialismo
nos meados dos anos 80 com a conseqüente homogeneização do espaço
político-econômico dentro dos quadros do capitalismo mundialmente integrado.
Fomos invadidos pela política do neoliberalismo, chamada de modernização,
elaborada nos interesses da nova fase de acumulação do capital agora a nível
mundial, política gerenciada pelo FMI, pelo Banco Mundial, pelos
megaconglomerados e pelo Grupo dos 7 (países mais ricos do mundo).
Três são as palavras mágicas que traduzem esta política: ajustes estruturais
(que implicam liberalização, privatização das empresas estatais,
desregulamentação das atividades econômicas), abertura (ao mercado mundial) e
estabilização econômica. Tais medidas implicam em diminuição do estado,
considerado o grande obstáculo à mundialização da economia, incentivo a todo
tipo de privatização e subordinação do projeto nacional à lógica e aos
interesses do projeto-mundo arquitetado pelo capital mundialmente
integrado.
No sentido desta estratégia, procura-se aqui remodelar
a economia de base industrial (com tecnologia convencional) para uma economia
exportadora de produtos primários e importadora de produtos de tecnologia de
ponta. A pressão fortíssima sobre as economias periféricas é no sentido de fazer
com que se tornem espaços abertos para a livre concorrência das megacorporações
mundiais. Todas querem estar em pé de igualdade no mesmo mercado regido apenas
pelas próprias leis de mercado. Ora, a correlação de forças entre o mercado
nacional e o mundial é absolutamente desigual. O estado, encurtado e impedido de
interferir no mercado, vê-se desarmado ao pretender tomar medidas
político-econômicas que visam a construção da autonomia da nação, e criar as
condições para a cidadania. Há um confronto direto entre o projeto-nação
brasileira e o projeto do mercado total. O mercado global vê como um empecilho à
sua expansão a construção e o fortalecimento do estado nacional. Este está fora
do horizonte da política pensada globalmente. Neste projeto global o
Brasil deve contentar-se com uma posição subalterna. Entretanto, um núcleo
pequeno da população será integrado nos estratos mais avançados do consumo
mundial. Por outro lado, cria-se aqui, inevitavelmente, e tolera-se sem maiores
preocupações, um perverso apartheid social, envolvendo praticamente 2/3 da
população.
2. A herança de exclusão na história
brasileira
Todas estas invasões tiveram o mesmo efeito: a
produção, a confirmação e o aprofundamento de nossa dependência, em razão da
natureza colonial e neocolonial de nossa formação histórico-social. Somos
periferia de um centro que desde o século XVI nos mantém a ele atrelados. O
Brasil não se sustenta, automaticamente, de pé. Ele jaz, injustamente, "deitado
eternamente em berço esplêndido". A maioria de população é feita de
sobreviventes de uma grande tribulação histórica de submetimento e de
marginalização. A casa grande e a senzala constituem os gonzos articuladores de
todo o edifício social. Acresce ainda um agravante: a maioria dos da senzala
ainda não descobriu que a opulência da case grande foi construída por ela
mediante uma plusvalia absoluta. Isso leva que as massas empobrecidas não se
rebelam. Esperam a libertação de seus opressores históricos e a cidadania do
estado. Nunca houve uma ruptura libertadora.
Nunca fomos
submetidos à prove, no dizer de Celso Furtado, para garantirmos nossa
sobrevivência como nação que se quer independente. Mas esta prove nos está sendo
exigida no presente momento. Ela é impostergável, pois a história ganhou uma
qualidade nova, nunca antes havida, seu caráter mundial.
A
mundialização se está fazendo mediante a universalização da ordem do capital.
Com a derrocada do socialismo do estadopartido, a ordem capitalista se encontra
absolutamente hegemônica no cenário da história, sem oposição ou alternativa
imediata a ela. Mantém sob sua hegemonia também aquelas partes da terra que se
inscrevem ainda dentro do ideário socialista, como a China, que, para se
adequarem à nova ordem, tiveram que introduzir transformações internas como o
mercado, as várias formas de propriedade e a incorporação de altas tecnologias
que produzem desigualdades sociais. Agora a ordem do capital mostra
inequivocamente o seu rosto, revela a lógica que a domina internamente e que
antes podia ser escamoteada a pretexto do confronto com o socialismo: cria, por
um lado, grande riqueza e concentração de poder à custa da devastação da
natureza, da exaustão da força de trabalho e de uma estarrecedora pobreza. A
utilização crescente da informatização e da robotização dispensa o
trabalho humano e fez com que suas vítimas nem sequer ingressem no
exército de reserve do capital. Os desempregados estruturais hoje são totalmente
dispensáveis. E somam-se a milhões só nos países do Primeiro
Mundo.
A lógica do mercado mundial, caracterizado por uma
concorrência feroz, é profundamente vitimatória. Quem está e se sustenta no
mercado, existe. Quem não resiste, desiste, inexiste e desaparece. Os países
pobres passam da dependência para a prescindência. São excluídos da nova
ordem-desordem mundial e entregues à sua própria miséria, como a África, ou
então incorporados de forma absolutamente subalterna, como os países
latino-americanos, notadamente o Brasil.
Os incluídos de forma
subalterna e marginal (utilizando tecnologias clássicas e geralmente sujas)
assistem a um drama terrível. Vêem criar-se dentro deles ilhas de bem-estar
material com todas as vantagens dos países centrais, atendendo a 10/15% da
população ao lado de um mar de miséria e de exclusão das grandes maiorias que no
Brasil alcançam entre 70 a 80 milhões, dos quais uma boa parcela vive na mais
completa indigência. É esta a perversidade do sistema do capital, um sistema de
antivida. Não devemos poupar-lhe a dureza das palavras, pois a taxa de
iniqüidade social tanto para os próprios países do assim chamado Primeiro Mundo
(pelo desemprego estrutural, pelo crescimento da pobreza interna, pela
xenofobia, pelo alto nível de infelicidade social revelada pelos suicídios, pela
utilização da droga e da violência sem objeto), quanto para os mantidos no
subdesenvolvimento é avassaladora e insustentável para um senso de humanidade e
de ética mínimos.
3. A cultura dividida: da dominação à
libertação
Esse quadro histórico conflitivo produziu no
Brasil uma cultura a ele adequada, dividida, contraditória e também esperançada.
As várias expressões culturais convivem sincronicamente:
Há a
cultura da dominação que se descortina por valores, hábitos, gostos, saberes,
tecnologias e criação de subjetividades coletivas que nada têm a ver com o nosso
meio eco-social. É pura reprodução, quase sempre tardia, do que ocorre nos
centros metropolitanos dos quais dependemos.
Há a cultura de
mimetismo: ao invés de criação, existe imitação e adaptação subtropical da
cultura dos outros. Não pensamos com nossa própria cabeça, mas pensamos o que os
outros pensaram. Não buscamos nossas próprias raízes, mas sugamos
parasitariamente das fontes dos outros, com vergonha de nossa história e de
nosso povo. Tanto a cultura da dominação quanto do mimetismo é hegemônica nos
setores dominantes da sociedade. Eles conseguem introjetá-las na cultura
popular. Esta se apresenta cindida entre os elementos antipopulares presentes no
popular e os elementos autênticos que traduzem a vida e a luta do povo, o que
demanda permanentemente um discernimento crítico.
Há a cultura da
resistência dos oprimidos que expressa o esforço dos excluídos, dos
trabalhadores explorados, dos negros; dos índios, das mulheres, dos movimentos
sociais populares para resistir à dominação interna e externa. Mesmo tendo que
incorporar elementos da cultura dominante, a cultura da resistência se constrói
a partir da identidade destes atores sociais que guardam a experiência
originária fundamental para a gestação de um povo independente.
Há a cultura da libertação. É própria dos setores dominados que romperam com o
paradigma do ajustamento e da resistência e avançam na criação de uma nova
consciência de libertação, com a convicção de serem um sujeito histórico com
projeto alternativo e com práticas inovadoras. Nos movimentos sociais que se
contam às centenas no Brasil, desde as lavadeiras, quebradores de coco,
movimentos negros, povos da floresta, até sindicatos militantes e em partidos ou
segmentos de partidos de extração popular e democrática, se nota a irrupção de
uma cultura de libertação. Ela cunhou uma linguagem própria, criou seus
símbolos, possui suas referências históricas e especialmente sua força de
organização e de pressão sobre toda a sociedade e sobre o estado. É aqui que
ganha centralidade o projeto do Brasil como nação autônoma e aberta com um
desenvolvimento que dá sustentabilidade a uma sociedade auto-sustentada e
democrática.
4. Três projetos políticos em conflito e seu
modelo de cidadania
Neste momento o Brasil se encontra
face a uma situação dramática: por um lado, é fortemente pressionado pelas
forças que mundializaram a economia capitalista e o mercado, forçando nossa
economia a inserir-se a' de forma subordinada. Por outro lado, é igualmente
pressionado pelos milhões de empobrecidos e pela própria classe média ameaçada
de empobrecimento, todos vítimas das contradições internas dos vários planos
econômicos, exigindo mudanças estruturais que garantam desenvolvimento social e
relativa estabilidade.
Agora confrontamo-nos com este dilema: ou
vamos continuer a construção da nação brasileira a partir de outras bases, vale
dizer, das grandes maiorias, das classes populares e seus aliados, criando um
novo tipo de desenvolvimento social. Ou então prolongaremos a história das
dependências, atrelando o Brasil às vicissitudes do mercado mundial, colocando
no limbo da discussão política a construção de um projeto nacional autônomo e
aberto com a democratização da cidadania para os seus habitantes.
Este dilema subjaz ao jogo politico em curve que visa criar um novo pacto de
poder para afar viabilidade a uma ou outra das alternativas. Neste momento, como
assinala um documento muito lúcido da CNBB acerca das próximas eleições
("Eleições em 1994: voto responsável. Contribuição dos cristãos para o processo
eleitoral", Brasília, 10 de maio de 1994), podemos discernir três projetos de
Brasil: 1. o projeto neoliberal, 2. o projeto do capitalismo organizativo e 3. o
projeto da democracia social e popular. Cada um entende a seu joito a soberania
nacional e se propõe construir a cidadania dentro de uma determinada
lógica.
Antes de detalharmos os três projetos, queremos emitir
alguns conceitos sobre cidadania.
Entendemos por cidadania o
processo histórico-social mediante o qual a masse humane consegue forjar
condições de consciência, de organização e da elaboração de um projeto que Ihe
permitem deixar de ser masse e passer a ser povo, como sujeitos históricos
capazes de implementer o projeto elaborado. O grande desafio histórico é
certamente esse: como fazer das massas anônimas e manipuláveis um povo
brasileiro consciente e organizado.
Vejo quatro dimensões
de uma soberania plena:
1. A dimensão
politico-participativa: na questão da cidadania, a sociedade é fundante, não o
estado. Só os interessados se fazem cidadãos; podem e devem contar com apoios
públicos e do estado, mas se as pessoas não lutarem para sua autonomia e por sua
participação social nunca serão cidadãos plenos.
2. A dimensão
econômico-produtiva: a condição de masse é imposta e a pobreza material e
politica das grandes maiorias é produzida e cultivada, por isso é injusta; a
cidadania política é esvaziada ou reduzida à menoridade se não vier acompanhada
pela econômica; o pobre que não descobriu ainda por que é pobre não tem
condições de comportar-se como sujeito social e realizer sua
emancipação.
3. A dimensão popular: o tipo de cidadania vigente é
de corte liberal-burguês; por isso, inclui somente os que têm uma inserção no
sistema produtivo e exclui os outros; com isso, não se reconhecem ainda os
direitos incondicionais (independente se têm posses ou não, se está no mercado
ou não); assim a construção da cidadania deve começar na base social e deve ter
um cunho popular como se realize no sem-número de movimentos socials e nas
associações comunitárias once os excluídos constroem um novo tipo de cidadania e
de democracia participative.
4. A dimensão de con-cidadania: a
cidadania não define apenas a posição do cidadão face ao estado, como sujeito de
direitos e não como um pedinte (não se deve pedir ao estado, mas reivindicar; os
cidadãos devem organizer-se não para substituir o estado, mas para fazê-lo
funcionar); define também o cidadão diante de outro cidadão mediante a
solidariedade e a cooperação, como demonstrou a campanha de Herbert de Souza (o
Betinho) contra a fome e em favor da con-cidadania e a vida; contra as political
pabres do estado para com os pobres, surgem as organizações dos pobres para
fazerem valer seus direitos; esta con-cidadania se abre a uma dimensão
planetária, no sentido da corresponsabilidade comum na salvaguarda do patrimônio
da terra e se expressa pela consciência de uma con-cidadania terrenal. Vejamos
como cada um dos projetos em curve contemplam a cidadania.
1. Projeto neoliberal de mundialização do mercado: negação da
cidadania
Este projeto considera o processo de
mundialização do mercado como irreversível, no qual importa se inserir, mesmo
que seja de forma subalterna. Acolhe o receituário do FMI e do Banco Mundial que
exige os reajustes estruturais que visam adequar as economies periféricas à
lógica do mercado mundial. Prevê a abertura das fronteiras econômicas, livre
circulação de produtos estrangeiros no mercado inferno, economia voltada para a
exportação especialmente de matérias-primas. Para isso é imperativo a diminuição
do estado, a privatização e a desregulamentação. O destino do Brasil estará mais
pendente das megaforças que controlam o mercado mundial do que das decisões
políticas dos brasileiros. A autonomia do Brasil com um projeto próprio não
ocupa centralidade. O projeto neoliberal magnifica o neoliberalismo com sua
proposta política, econômica, cultural e mundial. Tem como portadores os setores
ligados à exportação, os representantes das multinacionais sediadas em nosso
país e as forças políticas que encamparam o discurso da modernização.
Todos eles pressionam a revisão constitucional para que se revoguem os
dispositivos que distinguem empresas nacionais e estrangeiras e que se acabe com
o monopólio estatal do petróleo, das comunicações e da exploração de minérios
somente por empresas estatais. Curiosamente, aquelas forças que ajudaram por 50
anos (de 1930/1980) a construir um estado forte, para capitanear o
desenvolvimento nacional, agora se empenham em debilitá-lo para permitir mais
atuação do capital privado nacional e mundial. Este modelo reforça uma cidadania
seletiva para aqueles setores beneficiados pela modernização. Para outros
setores populares, só cabe uma cidadania menor, de quem é reduzido a esmoler que
espera do estado e dos políticos como concessão sua cidadania. Outros, os
exclurdos, serão simplesmente mantidos como massa de manobra, sem qualquer
cidadania, usando para eles o arsenal já ensaiado há séculos de desarmar seu
potencial de rebelião com compensações, assistencialismos e muitas
promessas.
2. Projeto do capitalismo organizativo:
cidadania menor
Este projeto quer prolongar o ensaio de
criação de uma economia nacional, mas agora de forma muito mais organizada
técnica e politicamente (da' o caráter organizativo). Postula um capitalismo
nacional forte, base para uma industrialização moderna que utiliza tecnologias
avançadas de produção e administração. Por isso, procura sócios internacionais,
mas sem submeter-se ao seu faraonismo. Quer um estado também forte para
articular o capital estatal com o privado nacional e mundial no sentido de
conferir dinamismo e competitividade internacional à economia brasileira. Os
modelos referenciais são os tigres asiáticos. Representantes deste projeto são
setores importantes das classes proprietárias (por exemplo, as grandes
empreiteiras) e os que são inseridos no sistema produtivo como segmentos dos
sindicatos e dos movimentos sociais que se inscrevem no arco da democracia
liberal delegatícia ou representativa e que lutam mais por melhoria de salários
do que pela mudança estrutural, das relações de
produção.
Neste projeto se salvaguarda a soberania nacional, mas
será fraca, porque sustentada pelos interesses do capital que hoje é
mundialmente integrado e não pelo interesse popular e genuinamente nacional.
Como no modelo anterior, a cidadania será também restrita para os setores
beneficiários, cidadania política para os segmentos incorporados na produção,
mas sem expressão econômica, pois continuarão duramente explorados. Portanto,
terão uma cidadania de segunda classe, esporádica, às vezes expressa em grandes
manifestações públicas, mas sem conseqüências reais. As políticas sociais do
estado continuam assistencialistas. Assim, mantém a população pobre dependente
dos benefícios públicos, desmobilizando, cooptando e controlando os movimentos
sociais. Nada mais trágico em termos de libertação popular do que a situação
daqueles que, iludidos, acreditam que sua libertação depende dos portadores de
poder e não deles mesmos. Estas massas são injustamente condenadas a serem zeros
econômicos e verem negada, pela exclusão, sua
cidadania.
3. Projeto da democracia social e popular:
cidadania plena
Fste projeto distancia-se dos outros
porque quer se construir sobre outra base social. São todos aqueles que foram
excluídos da história brasileira, mas que foram lentamente se organizando na
sociedade civil nos mais diferentes movimentos sociais, acumularam força,
conseguiram expressar-se em condutos políticopartidários já agora em condições
de disputar a conquista e o controle do poder de estado. Fundamental é construir
uma nação autônoma, capaz de democratizar a cidadania, mobilizar a sociedade
inteira para erradicar, em curto prazo, a pobreza absoluta, projetar um tipo de
desenvolvimento que se faça com a natureza e não contra a natureza, visando o
suficiente e decente para todos antes que a acumulação para poucos. O estado, em
parceria com os movimentos sociais, o capital privado e os setores do capital
mundial que aceitam o caminho brasileiro, promoveria uma retomada diferente do
desenvolvimento de cunho social, com prioridades para a educação e a saúde do
povo, para a criação de empregos e de um mercado interno que atenda as
carências básicas da população.
Este projeto é sustentado pelo
vasto leque do movimento social organizado pelo operariado industrial, por
setores importantes da classe média que se convenceram que não há salvação para
eles e para as maiorias dentro da ordem do capital e por partidos ou segmentos
de partidos progressistas que querem uma ruptura na história brasileira com a
introdução de um novo sujeito de poder no cenário politico, capaz de iniciar um
processo de uma democracia participativa e de cunho popular.
Neste
projeto fica clara a vontade de soberania nacional e o tipo diferente de
cidadania política, econômica, participativa, solidária e popular. Será uma
cidadania quotidiana plantada no funcionamento dos movimentos sociais e, por
isso, em continuo exercício. O Estado não é dispensado em nome da cidadania
popular, mas entra como "instancia delegada de serviço público", criando
políticas de interesse comum, equalizando oportunidades, agindo preventivamente
ao atacar as causas e não apresentando apenas propostas curativas dos efeitos 3.
Aí ele fica libertado do cativeiro que a classe dominante o manteve há séculos.
Transforma-se, realmente, no gestor da coisa pública.
As próximas
eleições serão importantes na definição do projeto dominante que configurará o
caminho brasileiro. Oxalá haja lucidez para discernir o melhor caminho que nos
faça participantes e construtores do futuro comum.
Desenvolvimento social, democracia integral e educação
libertadora
Independentemente do triunfo ou não dos
projetos nacionais referidos, importa trabalhar numa perspectiva de médio e
longo prazo sobre três eixos que sempre vêm dialeticamente imbricados: a
educação libertadora, a democracia integral e o desenvolvimento social. Mister
se faz desenvolver uma educação libertadora que nos abre para uma democracia
integral, capaz de produzir um tipo de desenvolvimento socialmente justo e
ecologicamente equilibrado.
Partimos do pressuposto de que a
civilização industrial e a culture do capital estão numa profunda crise e
apontam para imensas calamidades. A terra não tem condições de agüentar a
depredação produzida pela voracidade produtivista e consumista do ethos
capitalista. Esta ordem na desordem somente se mantém porque se utilize a força
doce e aura para manter as grandes maiorias da humanidade em estado de penúria
crônica. 18% da população mundial consome irresponsavelmente 80% dos recursos
não-renováveis sem sentido de solidariedade generacional.
Com acerto assinalava Celso Furtado:
"O desafio que se
coloca no umbral do século XXI é ainda menor do que mudar o curve da
civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da acumulação,
num curto horizonte de tempo, para uma lógica dos fins em função do bem-estar
social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos"
4.
Aqui se postula uma mudança no paradigma do desenvolvimento. A
Declaração sobre o Direito dos Povos ao Desenvolvimento da ONU, de 18 de outubro
de 1993, assimila já esta necessidade ao definir que o desenvolvimento é "um
processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa o constante
melhoramento do bem-estar de toda a população e de cada indivíduo na base de sua
participação ativa, livre e significativa e na justa distribuição dos beneficios
resultantes dele" 5. Acrescentaríamos ainda, no sentido da integralidade, a
dimensão psicológica e espiritual.
Portanto, postula-se que a
economia, como produção dos teens materials, é apenas meio para possibilitar o
desenvolvimento cultural, social e espiritual do ser humano. Errônea e com
funestas conseqüências é a visão que entende o ser humano apenas como um ser de
necessidades e de desejo de acumulação ilimitada e, por isso, da economia como
crescimento ilimitado, como se ele tivesse apenas fome de pão que é limitada e
não também fome de beleza que é ilimitada.
Faz-se mister produzir
e consumir o que é necessário e não produzir e consumir o que é supérfluo
excessivo e abusivo. Precisamos passar de uma economia da produção ilimitada
para uma economia multidimensional da produção do suficiente para todos os
humanos e também para os demais seres que conosco compartem a aventura
cósmica.
O sujeito central do desenvolvimento, portanto, não é a
mercadoria, o mercado, o capital, o setor privado e o estado, mas o ser humano e
os demais seres vivos nas suas múltiplas dimensões, segundo a diretiva da
Declaração da ONU e do ensino de todos os Papas. Cada um e todos os cidadãos são
convocados a participar do desenvolvimento, enquanto sujeitos ao mesmo tempo
singulares e plurais. Cada um é chamado a ajudar na produção do suficiente e até
do decente para todos.
É neste contexto que emerge a democracia
integral. Seria o sistema político que garante a cada um e a todos os cidadãos a
participação ativa e criativa em todas as esferas de poder e de saber da
sociedade. Essa democracia seria por definição popular (mais ampla que a
democracia burguesa e liberal), solidária (não excluiria ninguém, nem gênero,
nem raça, nem os elementos cósmicos), respeitadora das diferenças (pluralista e
ecumênica) numa palavra, integral. Esta democracia é feita de cidadãos-sujeitos
e não de massas de destituídos, sem consciência, sem memória, sem projeto e
incapaz de assumir sua autodeterminação.
Para ser cidadão-sujeito
são exigidos três processos: o primeiro, de conquista de poder para ser sujeito
pessoal e coletivo de todos os processos relacionados com o seu desenvolvimento
pessoal e coletivo; o segundo é a cooperação para além da competição e da
concorrência, razão por que as formas comunitárias e cooperativas de organização
da economia deverão ter crescente preferência às formas privadas e excludentes;
o terceiro é o de auto-educar-se continuamente para exercer sua cidadania e
concidadania como sujeito.
É aqui que o desenvolvimento centrado
no ser humano e a democracia integral se articulam com a educação integral. A
educação integral é um processo pedagógico permanente que abrange a todos os
cidadãos em suas várias dimensões e que visa educá-los no exercício sempre mais
pleno do poder, tanto na esfera de sua subjetividade quanto na de suas relações
sociais. Sem esse exercício de poder solidário e cooperativo não surgirá uma
democracia integral nem um desenvolvimento centrado na pessoa e, por isso, o
único verdadeiramente sustentado.
O pedagogo popular e competente
economista Marcos Arruda chama a esta pedagogia de Educação da Práxis 6.
Parte-se daquilo que já S. Francisco ensinava: aprende-se fazendo. A prática,
portanto, é a fonte originária do aprendizado e do conhecimento humano, pois o
ser humano é, por natureza constitutiva, um ser prático. Ele não tem a
existência como um dado, mas como um feito, como uma tarefa. Não tendo nenhum
órgão especializado, ele tem que se construir a si mesmo, continuamente, pela
prática da vida.
Conhecer aqui é um procedimento concreto,
presente na etimologia da palavra "conceito" ou "connaitre" em francês
(conhecer): que significa nascer junto com a realidade, entrar em comunhão com a
realidade e desta comunhão resultar uma concepção, vale dizer, o conceito
(conceptum), síntese entre a experiência subjetiva e o objeto experimentado.
Conhecer implica, pois, fazer uma experiência e a partir da' conceptualizar e
ganhar consciência. Disso resulta que o ato de conhecer é um caminho
privilegiado para a compreensão da realidade. Conhecer, em si, não transforma a
realidade. Transforma a realidade somente a conversão do conhecimento em
ação.
Entendemos por práxis exatamente esse movimento dialético
entre a conversão do conhecimento em ação transformadora e a conversão da ação
transformadora em conhecimento. Essa conversão não apenas muda a realidade, mas
muda também o sujeito. Práxis, portanto, é o caminho de todos na construção da
consciência humana e universal. Esse conhecimento não é monopólio dos que
passaram pelas escolas e se entregam aos livros. É acessível a todos os humanos
que têm uma prática. O trabalhador manual, portanto, não precisa para aprender
memorizar uma quantidade ilimitada de conteúdos. O essencial é que aprenda a
pensar a sua prática individual e social, articulando o local com o global,
tirando dos vários conhecimentos um direcionamento estratégico e tático de sua
ação transformadora.
A educação da práxis visa atingir
esses três objetivos principais:
1. A apropriação por cada
cidadão e comunidade dos instrumentos adequados para pensar a sua prática
individual e social e para ganhar uma visão globalizante da realidade que o
possa orientar em sua vida.
2. Apropriação de cada cidadão e
comunidade do conhecimento científico, político, cultural acumulado pela
humanidade ao longo da história para garantir-lhe a satisfação de suas
necessidades e realizar suas aspirações.
3. Apropriação por parse
do cidadão e da comunidade dos instrumentos de avaliação crítica do conhecimento
acumulado, reciclá-lo e acrescentar-lhe novos através de sodas as faculdades
cognitivas humanas que, além da razão, incluem a afetividade, a intuição, a
memória biológica e histórica contida no próprio corpo e na psique, os sentidos
imateriais, como o da unidade, da beleza, da transcendência e do amor. Tal
educação integral capacita e forma o ser humano para gestar uma democracia
aberta, sócio-cósmica e um desenvolvimento que garante uma sociedade
sustentável.
Desafio da Universidade atual: articular a
inteligência com a miséria
A partir deste quadro geral
podemos avaliar os desafios que se colocam às Universidades. Tal como o Estado,
as Universidades possuem uma enorme dívida social para com o povo brasileiro,
especialmente pobre e marginalizado. Chegou o momento de começarmos a pagar esta
dívida. Mais do que nunca, as Universidades não podem ser reduzidas a
macroaparelhos de reprodução da sociedade discricionária e a fábricas formadoras
de quadros para o funcionamento do sistema imperante. Na nossa história pátria
foram sempre também um laboratório do pensamento contestatório e libertário.
Isso constitui sua missão histórica permanente que deve ser atualizada hoje de
forma urgente, dada a urgência da situação.
Detenho-me
sucintamente em alguns pontos de reflexão. Parece-me que a nova centralidade é a
construção da sociedade civil. Ela constituirá a base para um projeto de
democracia social e popular e de uma cidadania quotidiana plantada e abrangente.
Isso implica:
1. Em primeiro luger, a criação de uma aliança entre
a inteligência acadêmica com a miséria popular. Em seu leito de morte em
Petrópolis, Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athaide, me soprou este legado que
será o desafio de toda a nossa geração. Dizia que sua geração, dos anos 30,
fizera a aliança da inteligência com o poder público e com o pensamento
universitário. A nossa geração, referindo-se aos intelectuais comprometidos com
a sorte dos oprimidos e aos teólogos da libertação, havia inaugurado uma nova
aliança, entre o pensamento mais crítico e atualizado com a miséria mais atroz
do povo brasileiro. Desta aliança nascia a perspectiva da libertação necessária,
o pagamento da dívida social da inteligência para com o povo brasileiro.
Enfatizava como quem ditava um testamento: Não abandonem este caminho, manfenham
unidas as duas pontas que reconstruirão o Brasil e a Igreja dentro dele. Creio
que as Universidades devem assumir este desafio: as várias Faculdades e
Institutos são urgidos na busca de um enraizamento organico com a
periferia, com as bases populares e com os setores ligados diretamente à
produção dos meios da vida. Aqui pode se estabelecer uma fecunda troca de
saberes - o saber popular e o saber acadêmico - a definição de novas temáticas
teóricas nascidas do confronto com a anti-realidade popular e a redescoberta da
riqueza incomensurável de nosso povo e de seu meio eco-social.
2.
Em segundo luger, desta aliança reforça-se o que ainda não acabou de nascer no
Brasil, o povo brasileiro. O que herdamos foi uma elite e um Estado altamente
seletivos e uma imensa masse de destituidos e dependentes. Mas, no meio desta
masse, nasceram lideranças e movimentos que propiciaram o surgimento de todo
tipo de comunidades, associações, grupos de ação e de reflexão que vão das
quebradeiras de coco do Maranhão, aos povos da floresta do Acre, dos sem-terra
do sul e aos clubes de mães solteiras da Bahia, até aos Sindicatos combativos do
ABC paulista. Do exercício democrático no interior destes movimentos nascem
cidadãos e da articulação do conjunto destas comunidades com os demais poderes e
instâncias de todo o país está nascendo o povo brasileiro, que, lentamente,
chega à consciência de sua história e projeta um futuro diferente e melhor para
si e para os seus. Nenhuma revolução deste porte se faz sem aliados, sem a
ligação organica daqueles que manejam o saber específico com os
movimentos sociais emergentes. É aqui que a Universidade deve se abrir e se
inserir. Tanto os mestres e alunos devem freqüentar a escola viva do povo como
permitir que gente do povo possa entrar na Universidade igual a quem visita a
casa de seus amigos e aliados, e a participar da discussão daquilo que interessa
a todos e construir coletivamente uma perspectiva de Brasil feito por todos.
Sejamos co-parteiros históricos do povo brasileiro, solidário, alegre e aberto a
todos os horizontes do mundo.
3. Em terceiro lugar, este processo
de gênese de um povo permite um novo tipo de cidadania, baseada na concidadania
dos representantes da sociedade civil e das bases populares que tomam
iniciativas por si mesmos e submetem o Estado a um controle democrático,
cobrando-lhe os serviços ao bem comum. Nestas iniciativas populares, seja na
construção de casas, seja na preocupação pela saúde, seja na forma de produção
de alimentos, seja na contenção das encostas contra desabamentos, seja na defesa
de seus direitos e na proteção contra a violência generalizada e em mil outras
frentes, os movimentos sociais sentem necessidade de um saber profissional. É
onde a Universidade pode e deve entrar socializando o saber de seus
profissionais, oferecendo encaminhamentos para soluções e abrindo perspectivas
às vezes insuspeitas por quem é condenado a lutar para sobreviver. Deste
ir-e-vir fecundo entre pensamento universitário e saber popular pode surgir um
novo tipo de desenvolvimento adequado à cultura local e ao eco-sistema
regional. A partir desta prática, a Universidade pública resgatará seu caráter
público, será servidora da sociedade e não apenas daqueles privilegiados que
conseguem se inscrever nela.
4. Por fim, cabe à Universidade
reforçar e garantir o horizonte utópico de toda a sociedade. O antropólogo
Roberto da Matta sublinhou o fato de o povo brasileiro ter criado um patrimônio
realmente invejável, "toda essa nossa capacidade de sintetizar, relacionar,
reconciliar, criando com isso zonas e valores ligados à alegria, ao futuro e à
esperança". Apesar de todas tribulações históricas, apesar de ter sido
considerado, tantas vezes, como jeca-tatu, carvão para nosso processo produtivo,
joão-ninguém, o povo brasileiro nunca perdeu sua auto-estima e o encantamento do
mundo. É um povo religioso e místico - é o mesmo que dizer que é um povo de
grandes sonhos, esperanças inarredáveis. Há nele uma plusvalia de sentido e de
alegria de viver que surpreende o mais exigente analista. Talvez seja esta visão
encantada do mundo uma das maiores contribuições que a cultura brasileira pode
dar à cultura mundial emergente, tão pouco mágica e sensível ao jogo, ao humor e
à harmonia dos contrários. Certamente é isso que permitiu a
continuação da nossa história com suas perversas contradições e que pode gestar
uma convivência mais solidária. Um povo que canta, que dança, que reza, que joga
futebol, que festeja carnavais e chora seus ídolos como faz o povo brasileiro,
tem as condições para ser um povo livre e liberto. A Universidade deve
constituir-se num laboratório onde esta alquimia social se reforça e se
universaliza, alimentando o horizonte utópico aberto de que ainda temos tempo e
que temos todas as condições para encontrarmos nosso caminho de realização na
solidariedade com todos os demais povos, testemunhando que tudo, finalmente,
pode fazer sentido e que viver neste mundo não significa sentir-se prisioneiro
das necessidades, mas sentir-se filhos e filhas da
ALEGRIA!
Leonardo Boff
1- Brasil, a construção interrompida, Paz e Terra,
Rio, 1993, 35.
2- Op. cit., 35.
3- Cf. Demo, P.
Cidadania menor. Algumas indicações quantitativas de nossa pobreza política.
Vozes, Petrópolis, 1992, 20s.
4- Brasil, a construção
interrompida, Paz e Terra, op. cit., p. 76.
5- Declaration on the
Right to Development, ECOSOC, United Nations, Commission on Human Rights,
18.10.1993.
6- Cf. o texto coletivo, dele e meu, Educação e
desenvolvimento na perspectiva da democracia integral. Será publicado na Suíça
em 1994.
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