O
PROCESSO DE GENTRIFICAÇÃO NA VILA DO AUTÓDROMO
NA
CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Luísa
Mantelli Anklam1
Nat¡lia
Toralles dos Santos Braga2
Universidade Federal de Pelotas. Pelotas,
Brasil.
1Acadêmica do curso
de Arquitetura e Urbanismo FAUrb/UFPel
2Acadêmica do curso
de Arquitetura e Urbanismo FAUrb/UFPel
1.
O
Fenômeno da Gentrificação e as Remoções no Rio de Janeiro
O fenômeno urbano
de gentrificação consiste em processo que inclui uma série de mudanças
materiais e imateriais - econômicas, sociais e culturais - de uma determinada
¡rea (normalmente de interesse imobili¡rio). Segundo Maria Alba Bataller
(2000), é um processo que mostra as consequências espaciais de transformações
sociais.
Dentre suas
consequências, est¡ a mudança de mercado e agentes do solo e, consequentemente,
do perfil dos usu¡rios e habitantes do espaço, passando de população de baixa
renda – que j¡ não têm mais como se manter no local devido ao aumento no custo
de vida - para classes de maior poder aquisitivo.
Vale
ressaltar que a gentrificação não é um processo est¡tico com regras
pré-estabelecidas. Pelo contr¡rio, é um processo amplamente diversificado no
qual somado às características comuns, cada caso tem particularidades de acordo
com o contexto e histórico urbano em que est¡ inserido. Tão amplas são suas
características que é qualificado como “conceito caótico” (VAN WEESEP, 1994).
O
processo tem papel fundamental na reestruturação metropolitana contemporânea e
vem se desenvolvendo em países industrializados basicamente ao longo da etapa
chamada pós-industrial, iniciada com o declínio do modelo socioeconômico
industrial tradicional a partir dos anos de 1970.
A cidade do Rio de
Janeiro, onde est¡ a Vila do Autódromo, possui longo histórico de remoções com
premissa de “melhorar a cidade”. A primeira reforma urbanística expressiva com
características sanitaristas foi a promovida pelo então prefeito Pereira
Passos, no início do século XX que, inspirando-se em Paris, destruiu grande
parte de cortiços que ocupavam ¡rea de interesse imobili¡rio da cidade. O
processo que removeu os moradores dessas ¡reas, os obrigou a procurar abrigo em
periferias e morros, dando origem às atuais favelas cariocas.
O
segundo processo expressivo de remoção foi no período inicial da ditadura
militar quando, sob o governo de Carlos Lacerda, a Zona Sul sofreu com atitudes
remocionistas graças à especulação imobili¡ria na região. As remoções, nesse
caso, foram acompanhadas pela construção de conjuntos habitacionais em parceria
com o recém-criado BNH (Banco Nacional de Habitação).
2.
O
Impacto dos Megaeventos nas Cidades
Os chamados
megaeventos esportivos (Copa do Mundo e Olimpíadas) são alguns dos fatores
causadores de gentrificação nas cidades sede por existir grande incentivo
financeiro - majoritariamente público - em determinadas ¡reas urbanas cujos
recursos são canalizados para a produção dos próprios eventos. Normalmente não
h¡ distribuição desses investimentos de forma adequada para a população que j¡
ocupava a região anteriormente, acarretando assim todas as mudanças em seu
perfil.
Segundo Jennings
(2014), os países em ascensão no cen¡rio econômico mundial usam os megaeventos
esportivos como resultado do "sucesso" econômico, posicionando o país
no capitalismo financeiro global como um bom lugar para serem feitos
investimentos.
Dentre exemplos
icônicos, est¡ o caso de Barcelona e os Jogos Olímpicos de 1992. O governo
municipal foi o principal agente a impulsionar o fenômeno no bairro de Raval,
antigo arrabalde da cidade. O Projeto Cidade Velha (1989) é considerado
satisfatório por ter promovido transformação urbana sobre o chamado eixo
cultural e impulsionar diversas instituições e organismos culturais. Por outro
lado, teve como consequência 200 famílias despejadas para abrir estradas e
aumento de 131% nos preços de imóveis em torno dos Jogos (Jornal Estadão,
2010), causando assim todas as consequências da gentrificação.
Raquel Rolnik
(2014) afirma que a proliferação de empreendimentos imobili¡rios de alto padrão
nas proximidades das obras emergenciais dos eventos provoca duplo processo de
expulsão da população mais pobre, não só pela remoção dos assentamentos, mas
também pela expulsão "natural" decorrente da forte valorização
imobili¡ria consequente.
3.
A
Situação da Vila do Autódromo
A Vila do
Autódromo surgiu como uma comunidade de pescadores nos anos 1960. Consolidou-se
na Baixada de Jacarepagu¡, zona oeste do Rio de Janeiro, região até então
deserta, sem os condomínios de alto padrão e os centros comerciais presentes
atualmente. Nos anos 1970, passou a ser caracterizada como uma oportunidade de
moradia para centenas de oper¡rios e trabalhadores da construção do autódromo
de Jacarepagu¡, além dos novos empreendimentos imobili¡rios que surgiam na
região. Em 1989 foram assentadas na ¡rea
um grande número de famílias oriundas da Comunidade Cardoso Fontes, comunidade
que sofreu processo de remoção.
Composta por
pescadores, oper¡rios, trabalhadores informais, famílias removidas e migrantes,
a comunidade passa a urbanizar e a garantir as condições de vida na região. Os
moradores construíram não só as suas casas, mas também todo o espaço urbano,
incluindo ruas, calçadas, rede de distribuição de ¡gua, sistema sanit¡rio,
creches, escolas e espaços de convívio. Além do campo de futebol, da igreja e
da sede da associação de moradores.
A partir dos anos
1990 - período no qual foram iniciadas construções de grandes condomínios de
alto padrão na zona oeste da capital carioca - a Vila do Autódromo passou a ser
alvo do setor imobili¡rio devido a sua privilegiada localização geogr¡fica. A
Associação de Moradores, Pescadores e Amigos da Vila Autódromo (AMPAVA)
resistiu a sucessivas tentativas de remoção e conquistou o título de Concessão
de Direito Real de Uso do Governo do Estado concedendo o uso da ¡rea por 99
anos e lhes dando o direito à moradia no local. Anos mais tarde, em 2005, a Câmara
de Vereadores aprovou a lei complementar 74/2005, a qual consolidou a
comunidade em Área Especial de Interesse Social, não impedindo, entretanto, que
v¡rias casas sofressem ameaças de remoção durante os preparativos dos Jogos
Pan-americanos de 2007. Processo repetido nos anos anteriores à Copa do Mundo
de 2014.
É v¡lido ressaltar
que, na Constituição de 1988, o direito à moradia est¡ previsto como um direito
social, sendo dever do Estado a execução de políticas públicas das habitações,
com medidas de promoção e de proteção desse direito. Todavia, Harvey (2016)
afirma que o capitalismo busca como solução para uma crise financeira a
transformação das cidades em ativos financeiros, seguindo a lógica de que a
cidade não deve servir às pessoas, mas aos negócios.
Com o objetivo de
evitar que essa lógica atingisse a Vila do Autódromo, a AMPVA elaborou,
juntamente com o Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual
(ETTERN/IPPUR/UFRJ), o “Plano Popular da Vila Autódromo”. Plano esse que expõe
propostas de urbanização para a região, como uma forma democr¡tica e
economicamente mais vantajosa se comparada à remoção de toda a comunidade a ser
apresentada ao governo. O planejamento abrangia projetos nas habitações, na
educação, no saneamento e no meio ambiente da região, buscando favorecer também
a economia local e o acesso ao transporte.
Com isso, é
possível constatar que a Vila Autódromo, tratando-se de uma região
geograficamente favor¡vel, com ruas abertas, casas bem estruturadas e uma
população unida, era o local perfeito para passar por um processo de
urbanização local frente às necessidades da comunidade. Além de que não haviam
registros de tr¡fico nem de milícia, justamente por situar-se em uma ¡rea plana
e de f¡cil acesso. Entretanto, o argumento de que a ¡rea deveria ser desocupada
por exigência do Comitê Olímpico Internacional (COI) pois invadia o perímetro
de segurança da Olimpíada foi bastante utilizado pelo então prefeito Eduardo
Paes (cargo exercido entre os anos de 2009 e 2016).
Segundo Azevedo e
Faulhaber (2016), tanto a construção do Parque Olímpico quando a revitalização
da Zona Portu¡ria do Rio de Janeiro, foram moldados com a finalidade de
viabilizar a retirada de favelas, com trajetos intencionalmente traçados. As
negociações, o descontentamento, os deslocamentos de famílias para o Parque
Carioca ou para residências do Minha Casa Minha Vida, as demolições, os
entulhos das demolições tornaram-se a realidade dos moradores da Vila do
Autódromo no ano de 2015, comunidade essa que, desde de 1970, é considerada por
alguns como “dano ao meio natural, urbano, estético e visual”, ou apenas como
transformação de uma ¡rea em ativo financeiro e imobili¡rio.
Figura 1 – Comparativo entre a situação da
Vila do Autódromo nos anos de 2006 e 2016, respectivamente.
Fonte: ferramenta Google Earth, 2016.
4.
Considerações
finais
A pesquisa buscou
compreender as dinâmicas ocorridas nos processos de gentrificação e de remoções
como consequência de megaeventos, com foco nas características específicas do
recorte espacial da Vila do Autódromo. Revelou-se que a base do processo é devido
à localização geogr¡fica privilegiada ser alvo da especulação imobili¡ria e aos
r¡pidos aumentos do custo do solo, que impossibilitam a permanência dos
moradores no local.
Ressalta-se a
resistência exercida pelos moradores da Vila do Autódromo, importante fator
para que o fenômeno de gentrificação ocorrido no local tomasse maior
visibilidade, expondo a influência do mercado imobili¡rio na região.
A predominância do
interesse no capital no direito à moradia representa a consolidação do processo
de gentrificação. Destaca-se a necessidade de participação popular nos
processos de reurbanização, de maneira a agregar aos moradores e não só ao
mercado.
Conclui-se com um
recorte feito do Plano Popular da Vila do Autódromo: “Não somos uma ameaça ao
meio-ambiente, nem à paisagem nem à segurança de ninguém. Somos uma ameaça
apenas a quem não reconhece a função social da propriedade e a função social da
cidade. Ameaçamos quem quer violar nosso direito constitucional à moradia.
Somos uma ameaça apenas para os que querem especular com a terra urbana e para
os políticos que servem a seus interesses”.
Referências
Bibliogr¡ficas:
AZEVEDO,
L.; FAULHABER, L. SMH 2016: Remoções no
Rio de Janeiro Olímpico, 2016.
HARVEY,
D. “Cidades Rebeldes”, Ed. Martins
Fontes, 2014.
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Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,olimpiada-e-copa-trazem-prejuizo-social,519833
(Acesso em junho/2017)
Jornal El País
(2016). Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/25/politica/1469450857_996933.html
(Acesso em junho/2017)
LEFEBVRE,
H. “A Revolução Urbana”. Ed. UFMG,
1999, p. 15-32.
SMITH,
N. “Gentrificação, a Fronteira e a
Reestruturação do Espaço Urbano” Em GEOUSP - Espaço e Tempo, 2007, nº 21,
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VAN WEESEP, J. “Gentrification
as a research frontier”. In: Progress in Human
Geography, 1994,
vol. 18, nº 1, p. 74-83.
Plano Popular da
Vila do Autódromo, 2012. Disponível em: <http://www.academia.edu/5759022/PLANO_POPULAR_DE_VILA_AUT%C3%93DROMO>
(Acesso: 06/06/2017)
ZEITUNE,
M.; FARIA, L.; MUSSI, G. MARTINS, J. “A
Vila Autódromo, seu Histórico de Luta e Remoções” Em XIII SEGeT, 2016.
JENNINGS,
A.; ROLNIK, R.; FERREIRA, J... [et al.] “Brasil
em Jogo: O que fica da Copa e das Olimpíadas?”, Ed. Boitempo, 2014.
Sites Acessados:
https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/megaevento
http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/137691/A-hist%C3%B3ria-das-remo%C3%A7%C3%B5es-no-Rio-de-Janeiro.htm
http://comunidadevilaautodromo.blogspot.com.br/2012/
Vila Autódromo: remoção e resistência | Heinrich Böll Stiftung - Rio de Janeiro Office
https://comitepopulario.files.wordpress.com/2012/08/planopopularvilaautodromo.pdf