NCeHu
23/19
XXI Encontro Internacional Humboldt
A “Volta” do
Imperialismo
16 a 20 de setembro de 2019
Foz do
Iguaçu (Brasil)
Entrevista
com Atilio Boron
Luta de massas
anti-imperialista e anticapitalista na América
Latina
“Para combater o caos criado pelo imperialismo, liderança honesta e
instituições fortes devem ser acompanhadas por uma mobilização popular intensa e
bem organizada”
https://www.odiario.info/para-combater-o-caos-criado-pelo/
Uma importante entrevista em
que é feito o ponto da situação da ofensiva imperialista em diversas zonas do
mundo – com particular destaque para a América Latina -, da resistência dos
povos, da generalizada ausência de influentes forças políticas revolucionárias
que assumam a vanguarda da luta de massas anti-imperialista e
anticapitalista.
Mohsen Abdelmoumen: Como
explica o recuo da esquerda e a ascensão da extrema-direita na América Latina,
como vimos no Brasil com a eleição do fascista e torcionário Jair Bolsonaro e
com Mauricio Macri na Argentina?
Prof. Atilio Borón: Há
muitas razões, que só posso resumir aqui. Primeiro, foi impressionante a
intensidade da contraofensiva dos EUA para derrotar os governos progressistas.
Macri foi um presente inesperado, mais devido aos erros do kirchnerismo do que a
qualquer outra coisa. Mas a vitória foi muito importante para os Estados Unidos.
Bolsonaro é o produto da desmobilização do PT levada a cabo por Lula desde o
início, da completa corrupção do sistema judicial que colocou Lula na prisão e
permitiu que Bolsonaro não estivesse presente nos debates presidenciais, o apoio
constante dos media hegemónicos e, claro, os graves erros dos governos
Lula/Dilma, que acreditavam que a política social e o retirar de milhões de
pessoas da pobreza extrema seriam suficientes para mudar a consciência popular e
transformá-los em defensores de políticas progressistas. Como na Argentina, era
uma política de redistribuição de renda sem educação de massas ou socialização.
Além disso, o problema da violência dos gangues nas favelas era crucial no
Brasil, e não foi bem combatido pelos governos do PT, dando a impressão de que a
única política que eles tinham para lidar com este problema sério era um
programa de educação cívica de longo prazo que, naturalmente, não conseguiu
impedir o avanço vertiginoso do crime em bairros da lata e favelas. Propaganda
subtil e metadados, mais a Cambridge Analytica e a habilidade de Steve Bannon
fizeram o resto. O Brasil provou, como antes os EUA, que “notícias falsas” são
geralmente consideradas informações confiáveis. Assim, as mentiras e a difamação
da campanha de Bolsonaro foram extremamente eficazes.
No seu muito relevante livro ” Twenty-First Century Socialism : Is There
Life After Neo-Liberalism?” (Socialismo do século XXI:
existe vida após o neoliberalismo?), demonstra que a
América Latina não tem qualquer perspectiva com o capitalismo, e desmente as
teses neoliberais que afirmam que o capitalismo é o remédio para todos os males.
Não pensa que o sistema capitalista simplesmente fracassou, seja no centro
capitalista como se vê com o movimento dos Coletes Amarelos em França, mas
também na periferia? Não acha que o sistema capitalista não oferece perspectiva
em nenhum lugar?
O capitalismo foi um enorme
fracasso. Muitas conquistas tecnológicas e subidas muito modestas no padrão de
vida das maiorias sociais combinaram-se com uma concentração irresistível da
riqueza e dos rendimentos, tanto no centro como na periferia. O livro de Thomas
Piketty e milhares de artigos e livros provaram isso, e a tendência não pode ser
revertida. Hoje, o 1% mais rico da população mundial apropriou-se de mais
riqueza do que os 99% restantes. Esta situação não tem precedentes na história
do mundo! E é política, social e economicamente insustentável. Além disso,
recentes desenvolvimentos capitalistas prejudicaram a Mãe Natureza como nunca
antes. Assim, a “segunda contradição” do capitalismo, como postulado por Jim
O’Connor, tornou-se fatal nos dias de hoje. Basta analisar com suficiente
atenção as catástrofes ambientais da mudança climática para entender a magnitude
desse problema e a total incapacidade das sociedades capitalistas para lidarem
com ele.
Na sua opinião, não traz
consigo o capitalismo a sua própria ruína?
Sim, foi a principal tese de
Marx nos seus escritos, mas também foi estabelecida, embora metafisicamente,
pelas penetrantes reflexões de Hegel sobre a dialética dos mercados e da
sociedade civil no capitalismo. Mas, como Lénine ensinou, o sistema capitalista
não entrará em colapso a menos que as forças sociais e políticas o derrubem.
Bernstein estava errado a este respeito e Marx e quase todos os seus seguidores
estavam certos em apontar a necessidade de uma força revolucionária, seja um
partido, um movimento ou qualquer outra organização popular. Por si mesmo, o
capitalismo perdurará apesar das suas contradições e, nesse processo, a barbárie
tornar-se-á o seu sinal distintivo.
Na sua opinião, o
movimento dos Coletes Amarelos que surgiu na França e que está a espalhar-se na
Europa não será um movimento revolucionário e fundamentalmente
anticapitalista?
É uma revolta popular,
anti-neoliberal, mas não inteiramente anticapitalista. Além disso, é uma
colecção extremamente heterogénea de actores sociais e não tenho a certeza de
que no final todos estariam prontos a atacar a cidadela ou o poder capitalista.
Não ficaria surpreso se uma parte significativa deles concluísse o seu activismo
juntando-se às forças da direita. O “poujadismo” foi uma experiência muito
importante na França do pós segunda guerra mundial.
Não acha que há
necessidade de refundar a esquerda na América Latina e no mundo? A classe
trabalhadora não terá a necessidade imperiosa de uma estrutura revolucionária
que corresponda às exigências do momento?
Sim, é absolutamente
necessário. Mas somos confrontados com um problema crítico: a divisão das
condições objectivas da revolução, já suficientemente maduras, e o atraso na
constituição de uma consciência revolucionária, o atraso no amadurecimento das
condições subjetivas. Apesar do passado, a perspectiva revolucionária é
completamente invisível para as massas, na América Latina e no resto do mundo. A
formidável eficácia dos aparelhos ideológicos do Estado capitalista apagou
completamente a revolução da paisagem. Portanto, a enorme importância da batalha
ideológica é de convencer as massas de que a revolução não é apenas possível,
mas necessária. Em segundo lugar, uma vez que a primeira tenha sido alcançada,
deveríamos encontrar a forma política apropriada para canalizar o renovado
impulso revolucionário das massas. Os partidos leninistas ou gramscianos
tradicionais são a resposta certa para um novo proletariado mundial, imenso e
muito heterogéneo, fragmentado em milhares de pequenos pedaços, como um espelho
quebrado? Eu duvido disso. O dito de Mariátegui de que “a revolução não pode ser
nem uma “cópia verdadeira” (calco,”traço”), nem uma réplica mas uma criação
heroica das massas” é mais válida do que nunca.
O ex-assessor de Trump,
Steve Bannon, está em vias de federar toda a extrema-direita na Europa. Sabendo
que na América Latina, os EUA apoiaram fascistas como Bolsonaro e Macri, não
pensa que existe um plano liderado pelo governo dos EUA para unir toda a
extrema-direita no mundo?
Sim, de facto. E isso foi
explicitamente declarado por Bannon e muitas outras pessoas. É uma aspiração de
longa data do governo dos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial,
e a rápida mudança no clima político (numa direcção reacionária, começando na
Europa por causa dos refugiados e a crescente presença de população muçulmana)
forneceu a Trump uma oportunidade de ouro. No entanto, o resultado está longe de
ser o que eles esperam e numerosos factores intervêm na evolução da situação
política. Os resultados podem ser muito decepcionantes para o governo dos
EUA.
Segundo a sua opinião, em
alguns países susceptíveis de sofrer intervenções imperialistas visando as
riquezas do seu subsolo e por interesse geopolítico, como por exemplo a Argélia,
não haverá necessidade de ter dirigentes legítimos e honestos e instituições
fortes para evitar o caos? Ibn Khaldun profetizou que os tiranos atrairão os
invasores; os verdadeiros aliados do imperialismo não serão os dirigentes
corruptos e ilegítimos?
Para combater o caos criado
pelo imperialismo, uma liderança honesta e instituições fortes devem ser
acompanhadas por uma mobilização popular intensa e bem organizada. Há muitas
histórias na América Latina em que governos honestos foram expulsos por golpes
de estado promovidos pelo governo dos EUA e seus aliados oligárquicos no
terreno. Tomemos o caso de Salvador Allende no Chile em 1973 ou de Arturo U.
Illía na Argentina em 1966, dois exemplos eloquentes do que digo. Em
contrapartida, a sabotagem, a corrupção e o despotismo foram as marcas de todos
os regimes estabelecidos após a intervenção imperialista na América Latina ou no
Caribe. Casos como Alfred Stroessner no Paraguai, François Duvalier no Haiti,
Rafael L. Trujillo na República Dominicana e Anastasio Somoza na Nicarágua, para
não mencionar ditaduras mais recentes na Argentina, Brasil e Chile, mostram
conclusivamente que os Estados Unidos e os interesses burgueses locais não
acreditam em procedimentos democráticos. A retórica da direita é absolutamente
falaciosa. Se, para fazer prevalecer os seus interesses, eles necessitam de
matar, encarcerar ou torturar, eles farão tudo isso. Tomemos o caso de Sukarno
na Indonésia e o assassínio em massa de meio milhão de pessoas para limpar o
país de “comunistas”; ou os milhares de “desaparecidos” na Argentina, ou
magnicídios perpetrados contra personalidades destacadas da esquerda na América
Latina como João Goulart, Pablo Neruda, Orlando Letelier (em Dupont Circle,
Washington DC !!!), Omar Torrijos do Panamá e Jaime Roldós do Equador, entre as
personalidades mais conhecidas. O imperialismo e os governos honestos não vão
bem juntos. A luta pela autodeterminação nacional, para uma democracia dinâmica
e uma governança honesta está condenada ao fracasso sem uma forte resistência
contra o imperialismo, verdadeiro factótum dos regimes mais atrozes que já
conheci na nossa região.
Sobreviverão as
conquistas da revolução sandinista na Nicarágua aos contínuos ataques do
imperialismo dos EUA?
Penso que sim, mas à custa
de um endurecimento do regime político. Uma cidadela sitiada nunca oferece um
terreno fértil para a tolerância, o pluralismo, liberdades desenfreadas. Mas os
planos do império são exactamente de fazer os sandinistas regredir numa
involução não democrática levando a uma “crise humanitária” que poderia servir
de prelúdio a uma “solução Líbia”, invasão, caos social e econômico, desordem e
linchamento de Ortega e dos seus próximos.
Não há risco de
intervenção americana na Venezuela?
Existem planos. O Comando
Sul disse-o há alguns anos. O problema com que estão confrontados é que as
forças militares bolivarianas são fortes, bem equipadas e prontas para lutar. O
Exército brasileiro hesita em participar numa invasão e os seus homólogos
colombianos temem que a distração das suas forças na Venezuela crie as condições
para um crescimento rápido da guerrilha no seu país. Então, eu não excluiria a
possibilidade de uma intervenção militar cirúrgica dos Estados Unidos na
Venezuela, mas até ao momento tudo não passou de conversas e nenhuma ação. Além
disso, de forma não militar, é persistente a intervenção norte-americana na
Venezuela desde a ascensão de Chávez em 1999. Sanções económicas, sabotagem,
tentativas de golpe, pressão diplomática, bloqueio comercial etc. têm sido
comuns e persistentes ao longo de toda a experiência
bolivariana.
Como analisa a transição
política em Cuba? Como explica o contínuo encarniçamento do governo dos EUA
contra Cuba desde que o embargo foi introduzido em 1962?
É uma longa história. Já em
1783, John Adams solicitou a incorporação de Cuba sob a jurisdição dos Estados
Unidos. Cuba tem um enorme valor geopolítico enquanto principal porta de entrada
para o Caribe, considerado pelos militares e estrategas dos EUA como uma espécie
de “mare nostrum”, e eles não aceitam o facto de Cuba agir como como nação
soberana, com autodeterminação e não queira receber humildemente as ordens da
Casa Branca. O bloqueio fracassou porque o regime revolucionário não caiu, mas
os sofrimentos infligidos ao povo cubano são enormes e criminosos, tal como os
obstáculos que o bloqueio causou ao desenvolvimento económico de Cuba. No
entanto, a Revolução continua capaz de oferecer melhores políticas sociais em
matéria de saúde, educação e segurança social do que a maioria dos países do
mundo e, para Washington, é um “mau exemplo” intolerável que deve ser erradicado
a todo o custo. Até agora, não foram capazes de o fazer e não penso o farão num
futuro próximo.
Vê-se, por exemplo, o
martírio do povo palestino pela entidade criminosa de Israel, ou o massacre do
povo do Iémen pela Arábia Saudita, aliada dos Estados Unidos. Não será
necessário ter uma frente mundial anti-imperialista seja na América, África,
Europa ou Ásia, onde os povos compartilham a mesma luta: resistir ao
imperialismo que devasta os países e o capitalismo que explora e sangra os
povos?
Absolutamente. Chávez queria
criar essa frente anti-imperialista, mas a sua solicitação não foi bem acolhida
porque muitos interpretaram mal a sua proposta como sendo um renascimento ou a
Terceira Internacional sob Stalin. Foi estúpido, mas infelizmente numerosas
organizações populares seguiram essa linha. Samir Amin, François Houtart e eu
próprio propusemos a criação de uma tal frente internacional no Conselho
Internacional do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e fomos derrotados, em
grande parte devido à oposição de ONG’s poderosas que rejeitaram essa ideia. Não
apenas isso: essas ONG’s foram também instrumentais na disseminação de um forte
sentimento “antipolítico” que desprezava os partidos políticos, os dirigentes
políticos e as agendas políticas. A tal ponto que foi muito difícil convidar
Lula e Chávez para as reuniões sucessivas do Fórum. Hoje, isso mudou, embora eu
não tenha certezas quanto à profundidade e coerência desse desenvolvimento
promissor.
Fonte: https://www.legrandsoir.info/pour-contrer-le-chaos-cree-par-l-imperialisme-un-leadership-honnete-et-des-institutions-fortes-doivent-s-accompagner-d-une.html
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