
A PRODUÇÃO CIENTÍFICA SOBRE PATRIMÔNIO CULTURAL NO ESPAÇO URBANO:
UMA REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA

Jacy Bandeira Almeida Nunes
Doutoranda em Geografia/UNICAMP
Professora da UNEB
Jacobina-Bahia-Brasil

Jorima Valoz dos Santos
Doutoranda em Geografia/UNICAMP
Professora da UNEB
Salvador-Bahia-Brasil
INTRODUÇÃO
A revolução científica e tecnológica sem precedentes provocou
mudanças sociais, cognitivas, afetivas, econômicas e estéticas, afetando nossa
forma de ver, conceber, agir, refletir e consequentemente de produzir
conhecimentos. Para Vitte(2011, p. 9), as transformações dos recursos
intelectuais que nos fazem compreender e apreender o mundo, tais como: “as
concepções, posturas, esquemas e estruturas cognitivos e interpretativos”
provocaram uma ressignificação nas concepções de mundo, ciência, ser humano e espaço. A ideia é que além
dos processos de globalização, entre outros, também passamos a ver e compreender
a realidade, a geografia, o homem e a mulher de forma diferente, alterou-se as
ferramentas cognitivas, o que traz implicações não só nos conteúdos, contornos e
processos sócio-espaciais, mas, e na produção da ciência
geográfica.
O ponto de vista é que as descobertas científicas contemporâneas
revelam a constituição de novos princípios, tais como o Princípio da Incerteza e
o Princípio da Complementaridade, entre outros. Estes princípios funcionam como
“operadores cognitivos” do pensamento complexo sobre a realidade e trazem a
necessidade da “construção de novos caminhos” para a investigação científica.
Daí porque, não podemos compreender o espaço e o tempo, nem suas produções ou
interações no espaço, sem considerar que estes são constituídos e estabelecidos
em condições complexas, que são objetivas e subjetivas, simultaneamente. (VITTE,
2011)
Dentre as implicações científicas, a ampliação da diversidade de
temas, tendências teórico-metodológicas, abordagens e instrumentos de
investigação incorporados pelos estudos geográficos contemporâneos, permitiram o
avanço, a transgressão e simultaneamente, a aproximação com outros campos
científicos e acadêmicos, bem como, a demanda pelo aprofundamento dos embates
entre as questões ambientais, culturais, sociais e econômicas, sendo o espaço
urbano o principal cenário desta celeuma. Por isso, numa reflexão
epistemológica sobre a produção científica, que tenha como objeto de estudo o
espaço urbano, deve cotejar as inquietações apontadas por Carlos (2003) de que:
Algumas questões apareciam no horizonte de nossas
preocupações: quais os desafios que a pesquisa urbana coloca aos geógrafos?
Como, a partir de nossas pesquisas, podemos pensar a realidade brasileira? [...]
Quais os caminhos teórico-metodológicos que se abrem para a análise urbana?[...]
quais são as temáticas emergentes? (p. 10).
Para a autora, os
estudos desenvolvidos pelos grupos de pesquisadores da área, vêm desenvolvendo
nos últimos anos uma série de pesquisas e eventos sobre o espaço urbano e muitos
desafios, como a superação das fragilidades epistemológicas da ciência
geográfica, as dualidades tradicionais (humano/natureza, rural/urbano,
teoria/prática, objetividade/subjetividade), assim como, os impasses e as
diferenças que marcam os estudos sobre cidade e urbano a partir da realidade
brasileira vem sendo discutidos e indicando a demanda
pela:
Construção da problemática urbana nos obriga,
inicialmente, considerar o fato de que ela não diz respeito somente a cidade,
mas nos coloca diante do desafio de pensamos o urbano, não só, enquanto
realidade real e concreta ma, também enquanto virtualidade. A estratégia reúne
teoria e prática. Esse encaminhamento nos alerta para a atomização das pesquisas
que pensam a cidade isoladamente, ora como quadro físico ora como ambiente
urbano. Em muitos casos, a cidade aparece em si, como objeto independente,
isolado, palco da ação humana vista enquanto caótica. (CARLOS, 2003, p.
15)
Nesta concepção, o espaço urbano como fenômeno de investigação
aponta a necessidade de ser concebido como um objeto complexo, com múltiplas
dimensões e com processos sócio-espaciais que transcendem as escalas geográficas
tradicionais. Bem! Se a professora Ana Fani Alessandri Carlos, uma das maiores
referencias, utilizadas na maior parte das investigações sobre a produção do
espaço urbano do país, já reconhece esse desafio de incorporar “uma nova
cognição” na produção teórica, para além do mero empirismo, que segundo a autora
“de tempos em tempos, [...] ronda a Geografia”(p. 14), a questão que emerge é
quais as evidências de que a produção cientifica, oriunda das pesquisas de campo
sobre o espaço urbano, vem incorporando, concebendo ou (res)significando sobre a complexidade
da problemática urbana contemporânea?
Com o intuito de investigar a questão, optamos pelo tema
Patrimônio Cultural uma vez que pesquisas geográficas sobre esta temática devem
considera que: envolve o espaço urbano como cenário; as transformações
decorrentes da apropriação do processo de patrimonialização, se tornou uma
realidade, a partir do início do século XX, no Brasil; a sua maior atuação foi
no tombamento dos sítios urbanos, nas cidades mineiras e se tornou mais
recorrentes no início do século XXI, em várias outras cidades no país; e, com as
determinações da Constituição Brasileira de 1988, Art. 215 e 216, reconhece que o
Patrimônio Cultural (material e imaterial) são os bens que carregam referenciais
identitários, e denotam a memória coletiva e individual da formação de uma dada
sociedade. Em síntese, um bem material tombado pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reflete e articula processos culturais,
sociais, ambientais, econômicos e políticos. Especificidades essas que
caracterizam um objeto complexo e justificam nossa escolha pelo tema.
O nosso objetivo geral foi: coletar as evidências de “uma nova
cognição do sistema mundo” nas pesquisas sobre patrimônio cultual no espaço
urbano, através da análise das produções científicas (Teses e Dissertações) dos
cursos de pós-graduação em geografia. O objetivo específico foi: identificar as
tendências e os desafios para as pesquisas geográficas e principalmente no
âmbito da geografia urbana.
O percurso metodológico contemplou o levantamento das teses e
dissertações disponíveis no banco de teses e dissertações em geografia urbana.
Utilizando como procedimento a leitura seletiva, com destaque para os resumos,
as introduções e as conclusões, para identificar as definição de Patrimônio
Cultural e por conseqüência as acepções atribuídas ao espaço. Os dados, eles
foram sistematizados e utilizados no processo de análise e interpretação a
partir da interlocução com os autores. Obtivemos os seguintes resultados: 132 de
produções de Geografia, sobre a temática Patrimônio Cultural, e destas, foram
analisadas 68 produções sobre o espaço urbano, sendo 43 dissertações e 15 teses.
Na definição de Patrimônio Cultural, constatamos que 63% das
produções investigadas utilizaram o artigo 216 da Constituição Federal de 1988
para definir Patrimônio, as outras 47% das definições apresentavam
características semelhantes; I) Consta em 100% dos trabalhos analisados: pode ser um bem material ou imaterial.
Essa característica aparece tanto nos trabalhos que investigaram bens materiais
(91%) como nas pesquisas sobre os imateriais (9%); II) Apresenta referenciais identitários,
culturais e históricos a parece em 96% dos trabalhos, com uma ou outra
variação (tais como significações e
memória social e cultural), mas com
os mesmos significados. As evidências coletadas nessa forma de abordar o espaço
geográfico, indicam uma abordagem multidimensional e multiescalar e
potencializam a (res)significação da compreensão dos processos sócio espaciais
contemporâneos da Geografia Urbana, pois contempla as significações sociais,
históricas, políticas, ambiental, econômicas e culturais, ou mesmo as diversas
intencionalidades que permeiam e materializa-se no espaço, uma vez
que:
A patrimonialização (...) de bens culturais, embora
nos remeta ao passado e à preservação de sua memória, nos coloca questões
importantes sobre a nossa sociedade no presente, pois, é esta atribuição de
valor às coisas, às paisagens e as heranças históricas, substanciadas no espaço,
que revela as nossas escolhas (...); as nossas estratégias políticas de ação
(...); o nosso modo de categorizar o mundo pela seleção, hierarquização e
valorização das coisas; as representações e os universos simbólicos que nos
identificam e nos enraízam ao meio; a relevância das formas e de suas funções –
nossas intencionalidades nem sempre explícitas; as determinações de estruturas
políticas, econômicas e culturais no desenrolar do processo histórico (PAES,
2010, p. 13).
A autora cita que o processo de patrimonialização e a gestão do
Patrimônio cultural fomentam diversos conflitos, que articulam, divergem e
comportam diferentes dimensões; é um fenômeno que perpassam por diferentes
escalas espaciais (local, estadual, nacional e global); cuja, materialidade se
dá num recorte espacial (espaço urbano, espaço rural, cidade, bairro, centro
histórico, lugar, paisagem, território, entre outros).
Nessa ótica, podemos cotejar como perspectiva e tendências a
superação de mínimo quatro fragilidades epistemológicas que permearam
historicamente o pensamento geográfico, vejamos: 1) a simplificação e
fragmentação cartesiana, pois, o objeto passa a ser visto a partir da articulação das
diferentes e complementares dimensões; 2) compreender a realidade como dinâmica
e multiescalar amplia o olhar sobre
o fenômeno, pois conforme aponta Castro(2010, p.60) “colocam em evidência
relações, fenômenos, fatos, como um modo de aproximação do real”, superando o
reducionismo das análises por partes para a compreensão do todo; 3) ao reforçar
(PAES, 2010; MENESES, 2010) a ideia
de que o espaço é o aporte de mediação entre o bem (material e imaterial) e os
valores culturais, históricos, sociais e econômicos, este deixa de ser amorfo,
fixo, imutável reduzido “a palco
dos eventos (...) como ensinara Newton, ou seja, era dado a priori, isto é,
preexistia aos fenômenos” (CAMARGO, 2005, p. 90); e, 4)
quando concebe a imaterialidade a um bem, revelando que, esta pode ser
representada pelas múltiplas significações estabelecidas por diferentes atores
sociais e com intencionalidades diversas, explicita a ideia de superação da
concepção de homem passivo diante de uma natureza mecânica e determinante e coloca o homem
como ator social, frente a uma realidade
dinâmica, complexa, imprevisível e que transcende o âmbito das cidades, e
desvelam-se no espaço urbano.
Em fim, os resultados obtidos com a investigação comprovaram a
existência de evidências de novas ferramentas intelectuais para compreender o
espaço urbano nas produções científicas (teses e dissertações) investigadas. Em
relação a natureza do objeto de estudo, comprovamos alterações significativas
nas concepções e conceitos que balizavam, os fundamentos epistemológicos dos
estudos sobre o urbano, tais como: causalidade, objetividade, reducionismos; e,
aparecimento de outros: multiescalar, multidimensionalidade, complexidade, entre
outros. Apontando indícios de uma potencial superação das fragilidades
epistemológicas na ciência geográfica e tendências para eliminar as dualidades
dos estudos geográficos.
REFERÊNCIAS
CAMARGO, L. H. R. de. A ruptura do meio ambiente: Conhecendo
as mudanças ambientais do planeta através de uma nova percepção da ciência: a
geografia da complexidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
CARLOS, A.F.A. Introdução. In: CARLOS, A.F.A.; LEMOS,
A. I. G (org.). Dilemas urbanos:
novas abordagens sobre a cidade. São Paulo: Contexto,
2003
CASTRO, I. E. Problemas e alternativas metodológicas
para a região e para o lugar. In: MENESES, U. T.B de. O campo do Patrimônio
Cultural: uma revisão de premissas. In:
Conferência Magna – I Fórum Nacional do Patrimônio
Cultural. v.01, Ouro Preto: IPHAN, 2010
MENESES, U. T.B de. O campo do Patrimônio Cultural:
uma revisão de premissas. In: Conferência Magna – I Fórum Nacional do Patrimônio
Cultural. v.01, Ouro Preto: IPHAN, 2010
PAES,
M. T. D. Apresentação. In: PAES, M. T. D.; OLIVEIRA. M. R.
da S. (Org.) Geografia, Turismo e
Patrimônio Cultural. São Paulo: AnnaBlume, 2010. p.13 –
32
VITTE, A. C.
Por uma Geografia Híbrida: Ensaios sobre os mundos, as naturezas e as
culturas. Curitiba, PR: CRV, 2011.