NCeHu
320/14
América Latina como
geografía
Bariloche, 6 al 10 de octubre
A geografia do
Manifesto
Alainet, 13/3/14
É imperativo reacender as paixões políticas
presentes no Manifesto. Eis um
documento extraordinário, cheio de insights, rico em sentidos e
explodindo em possibilidades políticas. Embora não tenhamos o direito de o
alterar, temos a obrigação de interpretá-lo à luz das condições contemporâneas.
Marx e Engels escreveram, no prefácio à edição alemã de 1872, que a aplicação
dos princípios do Manifesto dependeria, “em todos os lugares e em todas
as épocas, das condições históricas vigentes” (p.71).
Sem expansão geográfica, reorganização espacial
e desenvolvimento geográfico desigual, o capitalismo teria parado de funcionar
há muito tempo. A procura contínua de um “ajusta espacial” para as contradições
internas do capitalismo, junto com a inserção desigual dos diferentes
territórios e formações sociais no mercado mundial capitalista, tem criado uma
geografia histórica mundial da acumulação capitalista, cuja natureza precisa ser
bem compreendida. Vale a pena examinar como Marx e Engels conceituaram o
problema no Manifesto
Comunista.
*
A abordagem que fazem é
profundamente ambivalente. Por um lado, as questões da urbanização, da
transformação geográfica e da “globalização” ocupam um lugar importante na
exposição. Mas, por outro, as ramificações potenciais das restruturações globais
tendem a se perder em uma retórica que privilegiam o tempo e a historia em
detrimento do espaço e da geografia.
O Manifesto é, sem
dúvida, eurocêntrico. Mas a importância do contexto global não é ignorada. O
surgimento da burguesia é intimamente ligado a suas atividades e
estratégias:
“A grande indústria criou o
mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial
acelerou enormemente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios
de comunicação. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a
expansão da indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a
navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia,
multiplicando seus capitais e colocando num segundo plano todas as classes
legadas pela Idade Média.” (p.41)
A burguesia ultrapassou os
poderes feudais e transformou o Estado (com os seus poderes militares,
organizacionais e financeiros) no executivo das suas próprias ambições. Uma vez
instalada no poder, continuou sua missão revolucionária em boa parte através de
transformações geográficas. Internamente, a rápida urbanização levou à dominação
da cidade sobre o campo, simultaneamente salvando-o da “estupidez” da vida rural
e reduzindo o campesinato a uma classe subordinada. A urbanização concentrou
espacialmente tanto as forças produtivas quanto a força de trabalho,
transformando populações espalhadas e sistemas descentralizados de direitos à
propriedade em concentrações maciças de poder político e econômico. E
depois:
“Impelida pela necessidade
de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre.
Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar
vínculos em toda parte.
Pela exploração do mercado
mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo
em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela roubou da
indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram
destruídas e continuam a ser destruídas diariamente. São suplantadas por
novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as
nações civilizadas — indústrias que já não empregam matérias-primas
nacionais, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos
produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do
mundo. Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos
nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para sua satisfação os
produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais
diversos.
No lugar do antigo
isolamento de regiões e nações auto-suficientes, desenvolvem-se um intercâmbio
universal e uma universal interdependência das nações. E isto se refere
tanto à produção material como à produção intelectual. As criações
intelectuais de uma nação tornam-se patrimônio comum. A estreiteza e a
unilateralidade nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das
numerosas literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal.”
(p.43)
Aliás, a burguesia:
“Sob pena de ruína total
[...] obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção,
constrange-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem
burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.”
(p.44)
A temática da globalização e
da “missão civilizadora” da burguesia é explicada, embora com um toque irônico.
Mas, se a missão geográfica da burguesia é a reprodução das relações de classe e
de produção numa escala geográfica de progressiva expansão, então as bases para
as contradições internas do capitalismo e a revolução socialista também se
expandem geograficamente. A conquista de mercados abre o caminho para “crises
mais extensivas e mais destrutivas,” enquanto simultaneamente “diminuem os meios
de prevenir as crises”. A luta de classes começa a ser global; trabalhadores de
todos os países tem que se unir numa luta revolucionária anticapitalista e
pró-socialista.
Existem vários problemas
nesta explicação. Eles precisam ser resolvidos se quisermos desenvolver uma
compreensão politicamente útil de como a geografia da acumulação do capital
ajuda a perpetuar o poder da burguesia e suprimir os direitos e aspirações dos
trabalhadores.
1.
A divisão do mundo em nações
“civilizadas” e “bárbaras” é anacrônica, senão positivamente ofensiva, ainda que
possa ser perdoada como típica da época. O modelo centro-periferia de acumulação
que a acompanha é, na melhor hipótese, uma simplificação excessiva e, na pior,
enganoso. Ele faz parecer que o capital se origina em um lugar (a Inglaterra ou
a Europa) e depois se difunde para fora, atingindo o restante do mundo. Embora,
às vezes tenha sido o caso, tal explicação é contrária ao que aconteceu no Japão
depois da restauração Meiji ou o que está acontecendo hoje em dia em países como
Coréia do Sul e a China, que internalizam a acumulação primitiva e inserem as
suas forças de trabalho e produtos nos mercados globais. A geografia da
acumulação de capital merece um tratamento muito mais elaborado do que o esboço
rápido provido pelo Manifesto. A falta de uma teoria geográfica do
desenvolvimento desigual (com freqüuência envolvendo acumulação primitiva
desigual) impede a compreensão da dinâmica da formação da classe operária e da
luta de classes no espaço global.
O mundo não se apresenta
como um tabuleiro sobre o qual a acumulação do capital jogou o seu destino. É
uma superfície muito variada, diferenciada ecológica, política, social e
culturalmente. Os fluxos do capital encontram alguns terrenos mais fáceis de
ocupar do que outros, em diferentes fases de desenvolvimento. O contato com o
mercado global capitalista levou algumas formações sociais a se inserirem
agressivamente, enquanto outras não o conseguiram, com efeitos extremamente
importantes. A acumulação primitiva ou “original” pode acontecer e tem
acontecido em lugares e tempos diferenciados. Como e onde acontece depende das
condições locais, ainda que os efeitos sejam globais. Hoje é crença generalizada
no Japão, por exemplo, que o sucesso comercial do país após 1960 deveu-se, em
grande parte, à posição isolada e não competitiva da China depois da revolução e
que a inserção contemporânea do poder chinês no mundo capitalista significa o
fim para o Japão como um país produtor, ao contrário de uma economia rentista.
Uma contingência geográfica deste tipo tem um papel importante na história do
mundo capitalista. Aliás, o caráter global da acumulação do capital cria o
problema de um poder burguês disperso que pode ser muito mais difícil de
controlar geopoliticamente precisamente por causa de sua multiplicidade
geográfica. O próprio Marx se preocupava com esta possibilidade. Em 1858,
escreveu:
“Para nós a pergunta difícil
é a seguinte: a revolução no continente é iminente e o seu caráter será
socialista; não será necessariamente esmagada neste pequeno canto do mundo,
sendo que em um terreno muito maior o desenvolvimento da sociedade burguesa é
ainda ascendente”. [Correspondência com Engels, 8 de outubro de
1858]
É instrutivo refletir sobre
o número de revoluções socialistas que foram cercadas e esmagadas pelas
estratégias geopolíticas de um poder burguês em ascendência.
2.
O Manifesto corretamente destaca a
importância de reduzir as barreiras espaciais através de inovações e
investimentos em transporte e comunicação. Neste sentido, o Manifesto é
de uma extraordinária presciência. “A aniquilação do espaço através do tempo”,
como Marx o chamou posteriormente [Grundrisse],
enfatiza a relatividade das relações espaciais e vantagens geográficas, fazendo
da vantagem comparativa no comércio um assunto muito dinâmico, em vez de
estável.
3.
Uma das maiores lacunas do
Manifesto é a sua falta de atenção para a organização territorial. Se,
por exemplo, o Estado é “o braço executivo da burguesia”, então ele tem que ser
definido, organizado e administrado territorialmente. O século dezenove foi um
grande período de definições territoriais (com o estabelecimento da maioria
das fronteiras do mundo entre 1870 e 1925 pelos poderes coloniais). Mas a
formação e a consolidação do Estado envolve mais do que a definição territorial
e tem se mostrado uma tarefa longa e muitas vezes instável (em particular, por
exemplo, na África). Foi só depois de 1945 que a descolonização tornou a
formação mundial do Estado um pouco mais próxima do modelo altamente
simplificado do Manifesto.
4.
O Estado é só uma das muitas
instituições mediadoras que influi na dinâmica da luta mundial de classes. O
dinheiro e as finanças também têm que ser consideradas. Mas o Manifesto
não se pronuncia a este respeito. Temos duas maneiras de aprofundar a
questão. O dinheiro mundial (world money) pode ser visto como uma
representação universal com a qual os territórios se relacionam (através das
suas próprias moedas) e os capitalistas se conformam. Este é um ponto de vista
muito funcionalista (é a concepção dominante na ideologia neoclássica
contemporânea da globalização). Ou o dinheiro pode ser visto como uma
representação do valor que surge de uma relação dialética entre trabalhos
concretos feitos em lugares e tempos específicos e a universalidade de valores
(trabalho abstrato) conseguida na medida que a troca de mercadorias se efetua
como um ato social corriqueiro no mercado mundial. Bancos centrais e outras
instituições financeiras mediam esta relação. Muitas vezes são instáveis (e
baseadas territorialmente), sugerindo uma relação problemática entre condições
locais e os valores universais. Mas estas instituições também afetam trabalhos
concretos e relações de classe formam padrões de desenvolvimento geográfico
desigual através de seu comando sobre a formação e os fluxos de
capital.
5.
O argumento de que a
revolução burguesa plantou a semente de uma maior unidade política da classe
operária através da urbanização e a concentração da indústria é importante. Diz
que a produção da organização espacial não é neutra com respeito à luta de
classes. Este é um princípio vital, não importa quanto sejamos críticos com
respeito ao modelo de três etapas desenhado no Manifesto. Estas etapas
são
- a luta individual que começa a se coletivizar ao redor
de fábricas, profissões e lugares específicos;
-
- a unificação de muitas destas lutas através da
concentração de atividades e a formação de sindicatos que começam a se
comunicar um com o outro;
-
- a emergência da luta de classes ao nível nacional.
Durante a maior parte do
século dezenove, este modelo descreve um caminho bastante comum do
desenvolvimento da luta de classes. E trajetórias parecidas podem ser percebidas
no século vinte (por exemplo, Coréia do Sul). Mas uma coisa é retratar isto como
um modelo descritivo útil e outra é argumentar que estas são etapas necessárias
através das quais a luta tem que evoluir rumo à construção do socialismo. Aliás,
a burguesia pode desenvolver estratégias espaciais próprias de oposição de
classe.
O ataque atual contra o
poder sindical através da dispersão e fragmentação espacial de processos de
produção (muitos deles, está claro, indo para os assim chamados países em
desenvolvimento, onde a classe operária é mais fraca) tem se mostrado uma arma
poderosa para a burguesia. O estímulo ativo à concorrência entre os
trabalhadores através do espaço também tem ajudado aos capitalistas, sem
falar do problema do regionalismo e do nacionalismo nos movimentos
operários.
Em geral, os movimentos
operários têm tido mais sucesso controlando poder em lugares e territórios do
que controlando espacialidades. A classe capitalista tem usado os seus poderes
de manobra para derrotar as revoluções proletárias/socialistas, que sempre
estiveram ligadas a um lugar (conforme a preocupação de Marx em 1858, citada
acima). Nada disso é incompatível com o argumento básico do Manifesto.
Mas também é claro que se trata de algo muito diferente do retrato que ele
constrói sobre a dinâmica da luta de classes.
6.
Embora a unidade global da
classe operária ainda fique como a única resposta apropriada às estratégias
globalizantes de acumulação de capital, a maneira de conceituar esta resposta
merece um estudo crítico. No núcleo do argumento do Manifesto está a
crença que a indústria moderna e o trabalho assalariado têm tirado dos
trabalhadores “todo traço de caráter nacional”, com o resultado de que “os
trabalhadores não têm pátria”.
“Os isolamentos e os
antagonismos nacionais entre os povos desaparecem cada vez mais com o
desenvolvimento da burguesia, com a liberdade de comércio, com o mercado
mundial, com a uniformidade da produção industrial e com as condições de
existência a ela correspondentes. A supremacia do proletariado fará com que
desapareçam ainda mais depressa. A ação comum do proletariado, pelo menos
nos países civilizados, é uma das primeiras condições para sua
emancipação. À medida que for suprimida a exploração do homem pelo
homem será suprimida a exploração de uma nação por outra.”
A visão condutora é bastante
nobre mas existe muito de pensamentodesejo aqui. No melhor dos casos, o
Manifesto concede que a estratégia socialista vai “ser diferente em
países diferentes” e que problemas podem surgir na tradução de ideais políticos
de um contexto a outro — os alemães adaptaram ideias socialistas francesas às
suas próprias circunstâncias, criando um tipo de socialismo alemão que Marx
criticou de forma contundente.
Existe uma sensibilidade
limitada com respeito às condições materiais desiguais e às circunstâncias
locais. Mas a tarefa dos comunistas é conferir unidade a estas lutas, definir os
pontos comuns dentro das diferenças e criar um movimento onde os trabalhadores
do mundo possam se unir.
O Manifesto insiste,
com toda razão, que a única maneira de resistir ao capitalismo e construir o
socialismo é através da formação global da classe operária, o que talvez possa
ser alcançado por meio de uma progressão que passa de uma etapa local a uma
nacional e global. Os comunistas têm de encontrar maneiras de incorporar os
movimentos locais e particulares, direcionando-os para algum tipo de objetivo
comum. Mas também existe uma leitura mais mecanicista que vê a eliminação
automática de diferenças nacionais através do avanço burguês, da des-localização
e des-nacionalização de populações operárias e portanto das suas aspirações e
movimentos. Os comunistas, em seguida, têm que se preparar para apressar o final
desta revolução burguesa. Têm que educar os trabalhadores acerca da verdadeira
natureza da sua situação e organizar seu potencial revolucionário. Tal leitura
mecanicista é, do meu ponto de vista, errada, embora o Manifesto tenha um
argumento bastante forte a favor dela.
A dificuldade central aqui
se encontra na presunção que a indústria capitalista e a mercantilização vão
levar à homogeneização da população trabalhadora. Em um certo sentido isto é
verdade, mas não considera como o capitalismo simultaneamente diferencia, às
vezes se alimentando de antigas diferenças culturais, relações de gênero,
predileções étnicas e crenças religiosas. O capitalismo faz isto em parte
através de estratégias burguesas de divisão e controle, mas também converte a
escolha de mercado num mecanismo para a diferenciação de grupos. O resultado é a
implantação de divisões de gênero e classe, juntamente com muitas outras
divisões sociais, na paisagem geográfica do capitalismo. Divisões como as que
existem entre cidades e subúrbios, entre regiões e entre nações não podem ser
compreendidas como resíduos de alguma ordem cultural antiga.
Não são automaticamente
descartáveis. São produzidas ativamente por meio dos poderes diferenciadores da
acumulação de capital e das estruturas de mercado. Lealdades ligadas a lugares
proliferam e, em alguns aspectos, se fortalecem, em vez de se desintegrarem
através dos mecanismos da luta de classes e através da atuação tanto do capital
quanto do trabalho, cada um atuando a favor de si mesmo. A luta de classes
facilmente se dissolve em uma série de interesses comunitários geograficamente
fragmentados, facilmente cooptados ou explorados pelos mecanismos da penetração
neoliberal do mercado.
Existe no Manifesto
uma subestimação potencialmente perigosa da capacidade do capital para
fragmentar, dividir e diferenciar, absorver, transformar e até exacerbar
divisões culturais antigas, produzir diferenciações espaciais e mobilizar
geopoliticamente. Do mesmo modo, há uma subestimação de como o movimento
operário mobiliza através de formas territoriais de organização, construindo, no
caminho, lealdades ligadas a lugares. A dialética da comunidade e da diferença
não está desenvolvida do modo implicado no esboço fornecido pelo Manifesto,
embora sua lógica subjacente e sua tendência à articulação estejam
corretas.
As condições para que os
trabalhadores se unam globalmente através da luta de classes não tem diminuído.
O Banco Mundial avalia que a força de trabalho global dobrou em tamanho entre
1966 e 1995. Hoje ela é estimada em 2,5 bilhões de homens e mulheres e mais de
um bilhão de indivíduos vivem de um dólar ou menos por dia. Em muitos países,
“os trabalhadores não têm representação e trabalham em condições insalubres,
perigosas ou humilhantes. Ao mesmo tempo, 120 milhões ou mais estão
desempregados e mais alguns milhões já desistiram de procurar emprego”. Isto
existe em uma época de crescimento acelerado dos níveis médios de produtividade
(que também parecem ter dobrado, em escala mundial, desde 1965) e do comércio
mundial, alimentado por reduções nos custos de transporte e uma onda de
liberalização comercial. Como consequência, afirma a OIT:
“o número de trabalhadores
empregados em indústrias que operam com exportações e importações tem crescido
de maneira significativa. Pode-se dizer que os mercados de trabalho no mundo
inteiro estão se tornando mais interligados. Alguns observadores vêem nestes
acontecimentos a emergência de um mercado global de trabalho, onde o mundo tem
se tornado uma enorme feira com nações competindo pela venda de suas forças de
trabalho, oferecendo-as ao menor preço possível. A preocupação central é que a
intensificação da concorrência global vai gerar pressões para baixar salários e
padrões de trabalho no mundo inteiro”.
Movimentos massivos rumo à
constituição de uma força global de trabalho também têm ocorrido (por exemplo na
China, Indonésia e Bangladesh). Cidades como Jakarta, Bangkok e Bombaim têm se
tornado pólos de formação duma classe operária transnacionalizada — com elevada
composição feminina — sob condições de pobreza, violência, poluição e repressão
feroz.
Do mesmo modo, a
desigualdade está fora de controle. O Programa de Desenvolvimento das Nações
Unidas informa que, “entre 1960 e 1991, a parte da renda global detida pelos 20%
mais ricos da população cresceu de 70% para 85%, enquanto a dos mais pobres
diminuiu de 2,3% para 1,4%”.
Até 1991, “mais de 85% da
população do mundo recebia apenas 15% da renda” e “o valor possuído pelas 358
pessoas mais ricas, os bilionários em dólares, é igual à renda combinada dos 45%
mais pobres da população mundial — 2,3 bilhões de pessoas”. Esta polarização de
riqueza e poder é tão obscena quanto surpreendente:
“A Indonésia, em nome do
sistema de mercado livre, promove as violações mais flagrantes dos direitos
humanos e mina o direito à subsistência de quem a vantagem competitiva do país
depende”.
Muitas multinacionais estão
subcontratando aqui: Levi Strauss, Nike, Reebok. Muitas subcontratadoras
pertencem a coreanos. Todas tendem a exercer uma administração brutal e pagar
salários baixos. Nike e Levi estipulam um código de conduta como critério de
investimento, mas, na realidade, sempre procuram obter o menor custo de
produção. Alguns subcontratadores saem de Jakarta para cidades menores, onde os
trabalhadores tem ainda menor capacidade de se articularem para melhorar suas
condições de vida”.
Em O capital,
Marx conta a estória de uma trabalhadora, Mary Anne Walkely, com vinte anos
de idade, que muitas vezes trabalhava 30 horas sem parar (embora ressuscitada de
vez em quando por xerez, porto ou café) até que, depois de um esforço
particularmente duro requerido pela preparação de “vestidos maravilhosos para as
senhoras nobres convidadas ao baile em honra ao novo Príncipe de Gales,” morreu,
segundo o depoimento de um médico, “de longas horas de trabalho numa oficina
superlotada e um quarto pequeno demais e mal ventilado”. Compare-se isso com a
descrição contemporânea das condições de trabalho nas fábricas de Nike, no
Vietnã:
“[O Sr. Nguyen] constatou
que o tratamento dos operários pela administração da fábrica no Vietnã
[normalmente cidadãos da Coréia ou Taiwan] é uma ‘fonte constante de
humilhação’, que o abuso verbal e o assédio sexual acontecem com freqüência e
que a ‘punição corporal’ também é freqüente. Ele descobriu que quantidades
extremas de trabalho extraordinário são impostas aos trabalhadores vietnamitas.
O Sr. Nguyen escreveu em seu relatório que ‘é comum’ que vários trabalhadores
desmaiem de esgotamento, calor e má nutrição durante o turno. Fomos informados
de que vários trabalhadores até tossiram sangue antes de desmaiar”.
As condições materiais que
motivaram o ultraje moral no Manifesto não desapareceram. Estão
personificadas em tudo, nos tênis Nike, nos produtos de Disney, nas roupas do
GAP, nos produtos de Liz Claiborne. O contexto básico do Manifesto,
portanto, não tem mudado radicalmente. O proletariado global é maior do que
nunca. A necessidade de os trabalhadores se unirem é maior do que nunca. Mas as
barreiras à unidade são muito mais formidáveis do que eram no já complicado
contexto Europeu de 1848. A força de trabalho é hoje muito mais espalhada
geograficamente, culturalmente heterogênea, etnicamente e religiosamente
diversificada, racialmente estratificada e linguisticamente fragmentada. Os
modos de resistência ao capitalismo e a definição de alternativas são muito
diferentes.
E, embora seja verdade que
os meios de comunicação e as oportunidades de tradução tenham melhorado muito,
isto tem pouco significado para o bilhão ou mais de trabalhadores que vivem com
menos de um dólar por dia, possuindo histórias culturais, literaturas e
compreensões muito diferenciadas (comparados aos banqueiros internacionais e às
multinacionais, que sempre os usam). Diferenças (tanto geográficas como sociais)
em salários e cláusulas sociais dentro da classe operária global também são
maiores do que nunca. A brecha política e econômica entre os trabalhadores mais
ricos na, por exemplo, Alemanha e Estados Unidos, e os trabalhadores mais
pobres, na Indonésia e Mali, é muito maior do que a brecha entre a assim chamada
aristocracia do trabalho européia e suas contrapartidas não qualificadas no
século dezenove. Isto significa que certo segmento da classe operária (na maior
parte, mas não exclusivamente, dos países capitalistas avançados e que, muitas
vezes, possuem uma voz politicamente mais forte) tem muito a perder além dos
seus grilhões. E, embora as mulheres sempre tenham sido um componente importante
da força de trabalho nos primeiros anos do desenvolvimento capitalista, sua
participação tem se generalizado, ao mesmo tempo em que se concentra em certas
categorias ocupacionais (normalmente chamadas “não-qualificadas”), de modo a
gerar questões agudas sobre a política operária que com grande freqüência foram
varridas, no passado, para baixo do tapete. Junto a tudo isto as problemáticas
da urbanização massiva, os transtornos ecológicos graves, os movimentos
migratórios transnacionais e o terreno para a construção de uma alternativa
socialista aparece tão diferenciado e desigual como complicado.
O movimento socialista
precisa compreender estas transformações geográficas extraordinárias e
desenvolver táticas para lidar com elas. Isto não dilui a importância da palavra
de ordem final do Manifesto (união dos proletários). As condições que
hoje enfrentamos fazem esse chamado mais imperativo do que nunca. Mas não
podemos fazer nem nossa história nem nossa geografia sob condições
histórico-geográficas de nossa própria escolha.
Uma leitura geográfica do
Manifesto enfatiza a não-neutralidade das estruturas e poderes espaciais
na complexa dinâmica espacial da luta de classes. Revela como a burguesia
adquiriu seus poderes vis-à-vis de todos os modos precedentes de
produção, mobilizando o comando sobre o espaço como uma força produtiva peculiar
a ela mesma. Mostra como a burguesia tem aumentado e protegido continuamente seu
poder através desse mesmo mecanismo. Portanto, até que a classe operária aprenda
como enfrentar esse poder burguês de comandar e produzir espaço, sempre vai
jogar em uma posição de fraqueza não de força. Do mesmo modo, até esse movimento
compreender as condições e diversidades geográficas de sua própria existência,
vai ser incapaz de definir, articular e lutar por uma alternativa socialista
realística à dominação capitalista.
Publicado, em português, na revista
na Lutas Sociais, do Neils-PUC
13/03/2014