O Partido da Esquerda Europeia publicou um
comunicado em que se pronuncia sobre a questão da Ucrânia. Desse documento
consta um elogio rasgado ao Partido Comunista Ucraniano. Considerando que o
Partido da Esquerda Europeia constitui a agremiação política das forças
euro-esquerdistas do nosso tempo, ver um partido comunista ser elogiado por
eles, até prova em contrário, depõe contra o partido elogiado. Tanto mais
quando, na espinha dorsal do PEE, estão partidos que de comunistas só têm o nome
(alguns já nem mesmo a foice e o martelo…). Examinemos qual é a postura do
Partido Comunista Ucraniano e quais os motivos que podem, nela, torná-lo objecto
de admiração do Partido da Esquerda Europeia, ao ponto de este sair a terreiro
apoiando publicamente as suas posições.
No comunicado citado acima, o PEE
afirma que o PCU terá proposto como saída para a crise política que a Ucrânia
vive «um referendo que especifique o caminho a seguir pelas relações exteriores»
daquele país. Vim a verificar que tal proposta está noticiada, com data de
Setembro passado, aqui, num jornal ucraniano. Um documento com uma proposta de
igual teor, aparentemente produzido pela estrutura do PCU, surge traduzido neste
blogue progressista, a 25 de Janeiro deste ano. Mas, salvo possível erro crasso
na tradução, que não foi possível cotejar com os documentos do PCU em língua
ucraniana ou russa, o que é dito neste documento é, pura e simplesmente, mau
demais para ser verdade.
O conjunto de «propostas concretas» que o PCU aventa
como possível solução para algum problema são, em meu entender, inquinadas à
partida pela insólita proposta de uma consulta popular para decidir qual das
duas potências imperialistas, a Rússia ou a Alemanha, é do agrado da população.
O PCU aparenta considerar que não é uma questão de princípio impedir por todos
os meios que uma qualquer potência imperialista se imiscua na vida política,
económica, e social do seu país. Pondo a coisa em termos metafóricos e sem
querer brincar com coisas sérias, a defesa de um referendo para decidir desta
questão equivale a, numa tétrica situação em que houvesse que discutir as opções
de os trabalhadores ucranianos serem guilhotinados ou serem enforcados, suscitar
a discussão sobre se serão eles, com a sua caneta, numa urna fechada, a
depositar um voto dobrado em quatro do qual conste a sua opção livre e sem
constrangimentos ora pela forca, ora pela guilhotina. Por este caminho abre-se a
porta a uma lógica que concebe que os procedimentos são tudo, o conteúdo não é
nada. A discussão sobre qual a potência imperialista a cujos pés se arremessa as
massas trabalhadoras passa uma discussão como outra qualquer, e não uma
discussão inadmissível por princípio, como surge como evidência aos olhos de
qualquer revolucionário. O anti-imperialismo vê-se conduzido à condição de um
bonito slogan que fica bem nos documentos, mas que, na hora da verdade, não é
defendido com a firmeza exigível. O PCU como que se conforma a ir defendendo o
que há, o que der, o que for possível, o que já está ganho, fechando-se numa
posição defensiva que em última instância pode ser a sua própria cela, se não
mesmo a sua sepultura. Mais tarde, lá mais para diante, um dia destes, um dia
que há-de vir não se sabe em que dia nem em que hora como o dia do Juízo Final
dos crentes, faremos a revolução e derrotaremos a burguesia. Por ora, cumpre
negociar com alguém e escolher quem bater com menos força, ou quem já estamos
habituados que bata.
Lenine defrontou situações desta mesma ordem no seu
tempo, precisamente no âmbito do combate ao social-chauvinismo dos Kautsky &
Cª. As suas palavras no O Oportunismo e a Falência da II Internacional devem
fazer-nos pensar, detidamente, no que tem vindo a ser a postura do PCU: «Tal
como em 1912, «Axelrod [nome de um defensor russo das teses de Kautsky] está
disposto, em nome de um futuro muito, muito distante, a proferir as frases mais
revolucionárias, se a futura Internacional «actuar (contra os governos, em caso
de guerra) e levantar uma tempestade revolucionária». Vejam lá como nós somos
corajosos! Mas quando se trata de apoiar e desenvolver agora a efervescência
revolucionária que começa entre as massas, então Axelrod responde que essa
táctica das acções revolucionárias de massas «ainda teria alguma justificação se
estivéssemos imediatamente em vésperas de uma revolução social, como aconteceu,
por exemplo, na Rússia, onde as manifestações estudantis de 1901 anunciavam a
aproximação de batalhas decisivas contra o absolutismo». Mas no presente momento
tudo isso é uma «utopia», «bakuninismo», etc.». Lenine não era um
aventureirista: tinha a consciência plena de que não é porque se decreta o
assalto final contra a burguesia que as massas se tornam necessariamente
conscientes da necessidade desse assalto final. Mas, do mesmo modo, entendia que
as situações em que as contradições entre os interesses de classe da burguesia e
do proletariado se tornam mais agudas são precisamente aquelas em que a
possibilidade de expor com total clareza os objectivos que se colocam ao
proletariado e a necessidade imperiosa de derrubar a burguesia para os obter é
maior e mais fértil. Ora, no quadro de uma disputa inter-imperialista violenta,
feita à custa da desestabilização, do golpismo, do fomento da xenofobia, do
anti-semitismo, e do anticomunismo por um lado; e da invasão e exploração das
divisões étnicas e linguísticas dentro de um mesmo Estado por outro, tudo com
vista a obter os recursos, a mão-de-obra, o acesso aos gasodutos e ao mercado de
escoamento da Ucrânia – oferece-se o quadro mais esclarecedor possível para as
massas trabalhadoras compreenderem os intentos das potências imperialistas e o
posicionamento perante eles das diversas fracções da burguesia nacional que a
dominam. As condições objectivas são plenamente criadas pela disputa
inter-imperialista só por si: as condições subjectivas dependem, única e
exclusivamente, do apego da vanguarda do proletariado à linha justa e da sua
vontade de desenvolver a estratégia revolucionária adequada para dotar as massas
da organização e da elevação da consciência política que lhe possibilite levar
de vencida os imperialismos em disputa e a burguesia do seu próprio país. Isto,
é certo, não determina só por si a vitória da revolução: mas é isto que, numa
situação desta natureza, cumpre fazer a um partido comunista.
Descrever isto
é descrever, sumariamente, nada menos que o processo da revolução russa, que o
próprio Lenine dirigiu superiormente. Descrever isto é dizer todo o oposto do
que tem sido o trabalho do PCU, que enquanto os nazi-fascistas do Svoboda
invadem as suas sedes, queimam a sua bandeira, achincalham, espancam, matam os
seus militantes (e de caminho judeus, russos, e imigrantes), sobe a um caixote,
enche os pulmões de ar, e grita «façamos um referendo para saber se o povo quer
a continuação da violência fascista ou prefere o retorno a um Governo burguês
pró-russo!».
O que leva um partido comunista a desenvolver uma linha política
deste cariz? Alguns poderão opinar pelo impreparo, as dificuldades da própria
direcção do partido. Outros, pela inexistência de condições para fazer mais do
que se fez até aqui. Admitindo as duas situações, não deixam de me matraquear na
cabeça as palavras que, no mesmo documento, Lenine apresenta para caracterizar o
social-chauvinismo: «um pequeno círculo da burocracia operária, da aristocracia
operária e de companheiros de jornada pequeno – burgueses podem receber algumas
migalhas dos grandes lucros da burguesia. A causa de classe profunda do
social-chauvinismo e do oportunismo é a mesma: a aliança de uma pequena camada
de operários privilegiados com a «sua» burguesia nacional contra as massas da
classe operária, a aliança dos lacaios da burguesia com esta última contra a
classe por ela explorada. O conteúdo político do oportunismo e do social-
chauvinismo é o mesmo: a colaboração das classes, a renúncia à ditadura do
proletariado, a renúncia às acções revolucionárias, o reconhecimento sem
reservas da legalidade burguesa, a falta de confiança no proletariado, a
confiança na burguesia.».
Posso correr o risco de, por imprudência, atirar
sobre o PCU uma acusação que não lhe assenta, o que não quero de todo fazer: mas
a verdade é que há na sua postura um número tão grande de erros tão graves que o
desvio na direcção do social-chauvinismo - enquanto ideologia da aliança
aristocracia operária/fracções da pequena burguesia, com vista à obtenção de
migalhas do poder burguês à custa da continuação da exploração do proletariado -
pode, mesmo inconscientemente, estar neste momento a ser descrito por aqueles
que o dirigem – e a sê-lo, vemo-lo bem, perante a atenção e a solicitude
daqueles que praticam aberta, despudorada, e desavergonhadamente a política
social-chauvinista do séc. XXI – a dita euro-esquerda, arregimentada no PEE, que
veio aplaudir sem demora a atitude do PCU.
Perante tal situação, que posição
importa adoptar? Tive ocasião de traduzir recentemente uma Declaração do
Gabinete de Imprensa do CC do PC Grego em que é dito que o proletariado
ucraniano «deve organizar a sua luta de forma independente, com os seus
interesses e critérios, e não com os critérios do imperialista escolhido por uma
ou por outra secção da plutocracia ucraniana». Estou sinceramente convencido de
que é nesta direcção que devem ser expressas, sem pretensões à ingerência nos
assuntos internos do PCU mas com base naquilo que a história do movimento
operário ensina aos comunistas, as demonstrações de solidariedade
internacionalista que se apresentem aos camaradas ucranianos em luta. Fundo esta
opinião, quanto mais não seja, num critério que tem a sua razoabilidade: o de
não ser o critério dos inimigos, o critério dos eurocomunistas, o critério dos
que querem um capitalismo menos abusivo, mas não o fim do capitalismo. E ainda
no critério de ser esta, a meu ver, a única solução que assegurará ao povo
ucraniano uma saída desta grave situação que não signifique nem o retorno à
esfera de influência da Rússia dos oligarcas, que nunca lhe assegurou qualquer
forma de prosperidade, nem na da Alemanha imperialista, cujos efeitos
devastadores da sua política de subjugação e dominação o povo português,
desgraçadamente, tão bem conhece.