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Asunto: | NoticiasdelCeHu 13/14 - "O capitalismo hoje promove uma produção des trutiva" (István Mészáros) | Fecha: | Domingo, 5 de Enero, 2014 00:55:13 (-0300) | Autor: | Noticias del CeHu <noticias @..............org>
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NCeHu
13/14
"O
capitalismo hoje promove uma produção destrutiva"
István Mészáros
entrevistado por Eleonora de Lucena [*]
A atual crise do capitalismo, que faz
eclodir protestos por toda a parte, é estrutural e exige uma mudança
radical. Essa é a visão do filósofo István Mészáros, 82. Professor
emérito da Universidade de Sussex (Reino Unido), o marxista Mészáros
defende que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais
foram. Nesta entrevista, feita por e-mail, ele afirma que o avanço da
pobreza em países ricos demonstra que "há algo de profundamente errado no
capitalismo", que hoje promove uma "produção destrutiva". Maior
discípulo e conhecedor da obra do também filósofo húngaro marxista György
Lukács (1885-1971), Mészáros lançará aqui o seu livro O Conceito de Dialética em
Lukács [trad. Rogério Bettoni, Boitempo, R$
39, 176 págs.], dos anos 60. A mesma editora lança, de Lukács,
Para uma Ontologia do Ser Social
2 [trad. Ivo Tonet, Nélio Schneider e Ronaldo
Vielmi Fortes, R$ 98, 856 págs.] e o volume György Lukács e a Emancipação
Humana [org. Marcos Del Roio, R$ 39, 272
págs.].
Folha - O sr. vem ao Brasil para falar sobre György
Lukács. Como profundo conhecedor do legado do filósofo, como avalia a
importância das suas ideias hoje?
István Mészáros - Lukács foi
meu grande professor e amigo por 22 anos, até sua morte, em 1971. Ele
começou como crítico literário politicamente consciente quase 70 anos
antes. Com o passar do tempo, foi se movendo na direção dos temas
filosóficos fundamentais. Seus três trabalhos principais nesse campo –
"História e Consciência de Classe (1923), "O Jovem Hegel" (1948) e "A
Destruição da Razão (1954) – sempre resistirão ao teste do tempo.
Seus estudos históricos e estéticos sobre granes figuras da
literatura alemã, russa e húngara seguem sendo as mais influentes em
muitas universidades. Além disso, ele é autor de uma monumental síntese
estética, que, tenho certeza, virá à luz um dia também no Brasil.
Felizmente, seus também monumentais volumes sobre problemas da ontologia
do ser social estão sendo publicados agora no Brasil pela Boitempo. Eles
tratam de algumas questões vitais da filosofia, que têm implicações de
longo alcance também para a nossa vida cotidiana e para as lutas em curso.
O que é menos conhecido sobre a vida de Lukács é que ele esteve
diretamente envolvido em altos níveis de organização política entre 1919 e
1929. Ele foi ministro de Educação e Cultura no breve governo
revolucionário da Hungria em 1919, que surgiu a partir da grande crise da
Primeira Guerra Mundial. No Partido ele pertencia ao "grupo Landler"; era
o segundo no comando. Esse grupo recebeu o nome em homenagem a Jenö
Landler (1875-1928), que foi um líder sindical antes de se tornar uma
figura do alto escalão partidário. Ela buscava seguir uma linha
estratégica mais ampla, com maior envolvimento das massas populares.
Lukács foi derrotado politicamente em 1929. No entanto, voltando a
1919, em um dos seus artigos (está no meu livro editado agora pela
Boitempo), ele alertava que o movimento comunista poderia enfrentar um
grande perigo quando "o proletariado transforma sua ditadura contra ele
mesmo". Ele provou ser tragicamente profético nesse alerta.
De
qualquer forma, em todos os seus desempenhos públicos, políticos e
teóricos, se pode encontrar sempre evidências de sua grande estatura
moral. Hoje em dia lemos muito sobre corrupção em política. Podemos ver a
importância de Lukács também como um exemplo positivo, mostrando que
moralidade e política não só devem (como advogava Kant) como podem andar
juntas.
O sr. e Lukács têm vidas que unem teoria e prática.
Qual é a diferença entre ser um militante marxista no século 20 e hoje?
A dolorosa e óbvia grande diferença é que os principais
partidos da Terceira Internacional, que tiveram uma força organizacional
significativa e até influência eleitoral durante algum tempo (como no caso
dos partidos comunistas da França e da Itália), implodiu não só no Leste,
mas também no Ocidente. Apenas alguns partidos comunistas bem pequenos
permanecem fiéis aos princípios de outrora. Essa implosão ocorreu muito
tempo após a morte de Lukács.
Naturalmente, como um militante
intelectual por mais de 50 anos ele estaria hoje desolado com esses
desdobramentos. Mas partidos são criações históricas que respondem, de
maneira boa ou ruim, a necessidades de mudança. Marx foi bem ativo antes
da constituição de um partido importante que pudesse, depois, se juntar à
Terceira Internacional. Quanto ao futuro, alguns partidos radicalmente
eficazes podem ser reconstituídos se as condições mudarem
significativamente.
Mas o tema em si é muito mais amplo. A
necessidade de combinar teoria e prática não está ligada a uma forma
específica de organização. De fato, uma das tarefas mais cruciais para a
combinação de teoria e prática é o exame da difícil questão sobre porque
houve a implosão desses partidos, tanto no Ocidente quanto no Leste, e
como seria possível remediar esse fracasso histórico no atual
desenvolvimento da história.
O que significa ser um marxista
hoje?
Praticamente o mesmo que Marx enxergou nos seus dias.
Mas, é claro, é preciso ter em mente as mudanças históricas e as novas
circunstâncias. Marx enfatizou corretamente desde o princípio que, ao
contrário do passado, uma característica crucial da análise socialista dos
problemas é a confrontação com a autocrítica. Ser crítico ao que nos
opomos é relativamente fácil. Isso porque é sempre mais fácil dizer "não"
do que encontrar uma forma positiva que possa ser utilizada para que as
mudanças necessárias possam ser realizadas.
É preciso um
verdadeiro senso de proporção: compreender tanto fatores negativos –
incluindo a sua parte mais difícil da autocrítica –, como as
potencialidades positivas sobre as quais o progresso pode ser feito. Ambos
aspectos são relevantes. É essencial reexaminar com uma intransigente
autocrítica até os acontecimentos históricos mais problemáticos do século
passado, em conjunto com suas então expectativas. Isso se quisermos
superar as contradições do nosso lado no futuro.
A pressão do
tempo e os atuais conflitos das situações históricas de hoje tendem a nos
desviar desse caminho de ação. Mas o princípio orientador de combinar
crítica com genuína autocrítica será sempre um requisito essencial.
Quando a União Soviética acabou, muitos previram o fracasso do
marxismo. Depois, com a crise de 2008, muitos previram o fim do
neoliberalismo e a volta das ideias de Marx. Do seu ponto de vista, o
marxismo está em expansão ou não?
Você está certa. É preciso
ser cuidadoso sobre conclusões apressadas e definitivas em qualquer
direção. Geralmente elas são geradas mais por desejos do que por
evidências históricas. O colapso do governo Gorbachev não resolveu nenhum
dos problemas em questão na URSS. A fantasiosa tese sem sentido do "fim da
história" de Fukuyama não faz a menor diferença.
Também não é
possível descartar o neoliberalismo simplesmente pelo fato de que suas
ideias e políticas, promovidas com agressivo triunfalismo, não são apenas
perigosamente irracionais (haja visto sua atitude sobre a guerra), mas são
absurdas as suas defesas do devaneio do imperialismo liberal. Sob certas
condições, mesmo absurdos perigosos podem obter apoio massivo, como
sabemos pela história.
A verdadeira questão principal é quais são
as forças subjacentes e determinações que conduzem o povo a becos sem
saída em diferentes direções. A mudança de humor que colocou "O Capital",
de Marx, nas mesas de café da moda (não para estudo, mas para mostrar tema
de conversa) não significa que as ideias marxistas estão agora avançando
por todo o mundo. É inegável que o aprofundamento da crise que vivenciamos
hoje está gerando protestos por todo o mundo.
Mas encontrar
soluções sustentáveis para as causas que tendem a surgir em todos os
lugares requer a elaboração de estratégias apropriadas e também
correspondentes formas de organização que possam coincidir com a magnitude
dos problemas em jogo.
E o que dizer sobre as ideias
conservadoras? Elas estão ganhando mais adeptos?
Em certo
sentido, elas estão inegavelmente ganhando mais adeptos, mesmo que não
seja no terreno das ideias conservadoras sustentáveis. "Não mudar" é quase
sempre muito mais fácil do que "mudar" uma forma estabelecida de
comportamento. É a situação histórica real que induz as pessoas a irem
numa direção em vez de outra. Mas a questão permanece: o curso adotado é
sustentável? Há uma conhecida lei da física, no terreno da eletricidade,
que diz que a corrente elétrica segue a linha da menor resistência.
Isso é verdadeiro também sobre a situação de muitos conflitos
sociais que decidem, mesmo que temporariamente, em que direção um problema
deve ser equacionado naquele momento dependendo da relação de forças (ou
seja: a força de resistência à situação atual) e da capacidade de
realização de alternativas adequadas. A viabilidade de longo prazo de um
curso adotado em relação a outro não é de forma alguma garantia de melhor
sucesso. Muitas vezes o oposto é o caso.
Na nossa situação
histórica, as respostas viáveis de longo prazo podem requerer
incomparáveis maiores esforços do que tentar seguir o "curso que deu certo
no passado", em vez de encarar o desafio e o fardo de uma mudança
estrutural radical. Mas os problemas são enormes, e a interação de forças
na sociedade é sempre incomparavelmente mais complexa do que a direção da
corrente elétrica. Por isso, é muito duvidoso que o que "deu certo" na
linha conservadora da menor resistência possa funcionar no médio prazo,
muito menos no longo prazo.
Qual seria uma boa definição para o
período histórico atual?
Essa é a questão mais importante em
nosso período histórico em que crises se manifestam em diferentes planos
da nossa vida social. Se estamos preocupados em enfrentar uma solução
historicamente sustentável para nossos graves problemas, entender a
verdadeira natureza do debate das contradições é essencial. Conflitos e
antagonismos históricos são passíveis somente a soluções do tempo
histórico. É muito confuso falar de capitalismo como um sistema mundial.
O capitalismo abarca apenas um período do sistema do capital. Só
ultimamente é que constitui um sistema mundial de fato, para além da
sustentabilidade do próprio capitalismo. O capitalismo como um modo social
de reprodução é caracterizado pela extração predominantemente econômica da
mais valia do trabalho. Entretanto, há também outras formas de obter a
acumulação do capital, como a já conhecida extração política do trabalho
excedente, como foi feito na URSS e em outros lugares no passado.
Nesse sentido, é importante notar que a diferença fundamental
entre as tradicionais crises cíclicas/conjunturais do passado, pertencendo
à normalidade do capitalismo, e a crise estrutural do sistema do capital
como um todo - que é o que define o atual período histórico. Por isso
tento sempre enfatizar que nossa crise estrutural (que pode ser datada do
final dos anos 1960 e se aprofundando desde então) necessita de mudanças
estruturais para uma solução duradoura possível. E isso certamente não
pode ser atingido com uma "linha de menor resistência".
Quais
são as figuras mais importantes deste século 21 até agora?
Como sabemos, o século 21 é ainda muito jovem e muitas
surpresas ainda estão por vir. Mas a figura política que teve o maior
impacto na evolução histórica do século 21 – um impacto que deve perdurar
e ser estendido – foi o presidente da Venezuela Hugo Chávez Frias, que
morreu em março deste ano.
Claro, Fidel Castro também está muito
ativo na primeira metade desta década, mas as raízes de seu grande impacto
histórico estão nos anos 1950. Do lado conservador, se ainda estivesse
vivo, eu não hesitaria em nomear o general De Gaulle. Ninguém se alinha à
sua estatura histórica no lado conservador até agora neste século.
E qual o evento mais surpreendente do século 21?
É
provavelmente a velocidade com que a China conseguiu se aproximar da
economia norte-americana, alcançando agora o ponto em que ultrapassar os
EUA como "motor do mundo" (como definem de forma complacente) é
considerado factível em apenas alguns anos. Era previsível há muito tempo
que isso iria acontecer tendo em vista o tamanho da população chinesa e a
taxa de crescimento anual de sua economia. Mas muitos especialistas diziam
que isso iria ocorrer daqui a muitas décadas no futuro.
No
entanto, seria muito ingênuo imaginar que a China pode permanecer imune à
crise estrutural do sistema do capital, simplesmente porque seu balanço
financeiro é incomparavelmente mais saudável do que o norte-americano.
Mesmo o superávit de milhões de milhões de dólares dos chineses pode
evaporar-se de um dia para outro no meio de uma turbulência não muito
distante no futuro. A crise estrutural, por sua própria natureza,
obrigatoriamente afeta a humanidade como um todo. Nenhum país pode invocar
imunidade a isso, nem mesmo a China.
As crises fazem parte do
capitalismo. Qual sua avaliação sobre a que eclodiu há cinco anos. Quem
ganhou e quem perdeu?
Parte do capitalismo? Sim e não! Sim, no
sentido limitado de que a crise eclodiu com intensidade dramática nos
países capitalistas mais poderosos do mundo, que se autodenominam
"capitalistas avançados". Mas muito do seu "avanço" é construído não
apenas sobre privilégios de exploração (no passado e no presente) das suas
relações de poder (políticas e econômicas) em relação ao chamado "Terceiro
Mundo", mas também sobre o catastrófico endividamento de sua realidade
econômica.
Escrevi em 1987, num artigo publicado no Brasil em
1987, que o "verdadeiro problema da dívida" não era – como foi apontado na
época – a dívida da América Latina, mas a dívida insolúvel dos EUA, que
está fadada a acabar com uma colossal quebra, equivalente à magnitude de
um terremoto econômico para o mundo todo. Há dois anos, quando dei minha
última palestra no Brasil, apontei que a dívida dos EUA somava
astronômicos 14,5 milhões de milhões de dólares, antecipando seu
inexorável aumento. Hoje nos movemos para os 17 milhões de milhões de
dólares, e mais e mais.
Qualquer um que imagine que isso é
sustentável no futuro, ou que isso não vai afetar todo o mundo na Terra,
quando o processo de crescimento inexorável do endividamento está fadado a
levar a uma situação paralisante, deve viver num planeta diferente.
O capitalismo se fortaleceu ou se enfraqueceu com a crise?
As tradicionais crises cíclicas/conjunturais costumavam
fortalecer o capitalismo no passado, já que eram eliminadas empresas
capitalistas inviáveis. Assim, ocorria o que Schumpeter idealmente chamou
de "destruição criativa". Os problemas são muito mais sérios hoje, porque
a crise estrutural afeta até dimensão mais fundamental do controle social
metabólico da humanidade, incluindo a natureza de forma perigosa. Assim,
falar de "destruição criativa" nas condições atuais é totalmente
autocomplacente. É muito mais apropriado descrever o que está acontecendo
como uma "produção destrutiva".
A crise provocou mudanças
políticas em muitos países. É possível discernir um movimento geral, mais
para a esquerda, ou mais para a direita?
Até agora, mais para
a direita do que para a esquerda. Todos os governos dos países
capitalisticamente avançados – e não apenas eles – adotaram políticas que
tentam resolver os problemas através da "austeridade", com cortes reais em
salários, assim como nos padrões de vida já precários daqueles que são
geralmente descritos como os "menos privilegiados".
E a linha de
"menor resistência" ajuda na extensão, ou, ao menos, na tolerância das
respostas institucionais conservadoras dominantes para a crise. Mas é
muito duvidoso que essas políticas, que agora tendem a favorecer a
direita, possam produzir soluções duradouras.
Como o sr.
previu, a pobreza aumentou nos últimos anos, mesmo em países do coração do
capitalismo. Nos EUA, a desigualdade aumentou. No Reino Unido, há um
movimento para dar comida aos pobres, coisa que não ocorria desde a
Segunda Guerra. O que está errado no capitalismo? É possível que o sistema
não possa mais gerar crescimento suficiente para a humanidade?
Dar cesta básica para os muito pobres não é o único sinal
visível desse aspecto da crise, nem essa situação está confinada os países
capitalisticamente avançados, como o Reino Unido. Escrevi em "Para Além do
Capital" (publicado em inglês em
1995) sobre a volta dos sopões. Nos últimos dois ou três anos podemos
vê-los nas telas das TVs em escala maior no mais "avançado" (e
privilegiado) país: os EUA. Certamente há algo de profundamente errado – e
totalmente insustentável – na maneira pela qual o crescimento é perseguido
sob o capitalismo.
Algumas formas, pela sua natureza cancerosa de
crescimento, são proibitivas mesmo em termos de condições elementares de
ecologia sustentável. Porque elas são manifestações flagrantes de
"produção destrutiva". Ao mesmo tempo, tanta coisa é desperdiçada como
"lixo rentável", enquanto incontáveis milhões, agora mesmo nos mais
avançados países capitalisticamente, precisam suportar dificuldades
extremas. Há alguns dias o ex-primeiro-ministro britânico John Major
estava reclamando que neste Inverno muitas pessoas no Reino Unido terão
que escolher entre comer e se aquecer. Em 1992, quando ainda era
primeiro-ministro, ele disse com máxima autocomplacência: "O socialismo
está morto; o capitalismo funciona". Eu disse, então: "Precisamos
perguntar: o capitalismo funciona para quem e por quanto tempo?".
A escolha entre comer e se aquecer, que ele é agora forçado a
reconhecer, não é exatamente a prova de quão bem o "capitalismo funciona".
Na realidade, o único crescimento com significado é o que responde à
necessidade humana. Crescimento destrutivo, incluindo o vasto complexo
industrial militar – chame-o de "destruição criativa" – pode demonstrar
apenas fracasso. O único crescimento historicamente sustentável para o
futuro é aquele que fornece as mercadorias em resposta à necessidade
humana e os recursos para aqueles que delas necessitam.
A crise
ampliou o desemprego em muitas regiões e abalou o Estado de bem-estar
social na Europa. Multidões foram às ruas protestar na Espanha, em
Portugal, na França, na Inglaterra, na Grécia. Nos EUA, o Occupy Wall
Street desapareceu. Qual deve ser o resultado desses movimentos? Há
conexão entre eles? Os partidos de esquerda estão se beneficiando dessas
ações ou não?
Em contraste com a idealização propagandística,
o Estado do bem-estar social, na realidade, foi muito limitado a um
punhado de países capitalistas. Mesmo lá foi construído sobre fundações
frágeis. Não poderia ser nunca expandido ao restante do mundo, apesar da
promoção acrítica das teorias do desenvolvimento da modernização, quase
sempre estruturadas no quadro contraditório do sistema do capital. A
verdadeira tendência de longo prazo apontava no sentido oposto ao do
idealizado Estado do bem-estar.
A tendência objetivamente
identificável foi caracterizada por mim já nos anos 1970 como a
"equalização descendente da taxa de exploração diferencial". Isso inclui
as diferenças marcantes nos níveis de ganhos por hora de trabalhadores
para exatamente o mesmo trabalho na mesma corporação transnacional (por
exemplo, nas linhas de montagem da Ford) na "metrópole" em relação aos
países "periféricos".
Essa tendência continua a se aprofundar e
ainda está longe da sua necessária amplitude. Os protestos em muitos
países capitalistas são compreensíveis e devem se aprofundar no futuro.
Eles surgem nesse arcabouço dessa tendência perversa de equalização de
longo prazo. Compreensivelmente, os partidos que operam no enquadramento
da política parlamentar não podem se beneficiar dos protestos. Isso porque
eles tendem a acomodar seus objetivos a limites restritos das
consequências negativas decorrentes do Estado do bem-estar.
Lukács dizia que os sindicatos eram a organização social civil
mais importante. Isso continua valendo?
A visão de Lukács
sobre esse ponto era muito influenciada pelo seu camarada e amigo Jenö
Lander, que foi um líder sindical antes de se tornar liderança do mesmo
grupo partidário no qual Lukács também desempenhou um papel de liderança.
Lukács está certo sobre a contínua importância dos sindicatos, com
um acréscimo importante. Não foi ressaltado suficientemente que a
potencialidade dos sindicatos foi – e continua sendo – afetada de forma
muito ruim pela divisão do movimento da classe trabalhadora organizada
entre o chamado "braço industrial" (sindicatos) e o "braço político"
(partidos) do trabalho.
A potencialidade positiva dos sindicatos
não acontecerá até que essa divisão prejudicial, que produz danos para
ambos, seja corrigida significativamente.
Qual sua avaliação
sobre a chamada Primavera Árabe? Ela acabou? Há ligação entre os
movimentos no mundo árabe e os da Europa? Alguns enxergam uma nova disputa
na região. Isso faz sentido?
O impacto da Primavera Árabe
tendeu a ser muito exagerado na época em que testemunhamos os primeiros
dramáticos acontecimentos. E, depois, sem razão, foram minimizados quando
as manifestações de massa no Norte da África arrefeceram.
Até
agora, nenhum dos problemas fundamentais foi resolvido em nenhum país em
questão. Assim, os protestos vão continuar no futuro, focando também em
algumas das graves contradições econômicas (que resultaram em protestos
por comida no passado, relutantemente reconhecidos até por proeminentes
publicações do "establishment," como a Economist, de Londres), e
não apenas na sua dimensão militar e política.
Os levantes vão
continuar, ganhando na mídia o nome da estação ligado a eles. Também não
pode ser esquecido que alguns países europeus tiveram importantes
interesses coloniais no Norte da África e no Oriente Médio. E há
tentativas de reavivá-los, o que é bem visível hoje. Ninguém deve imaginar
que o imperialismo está confinado no passado.
O Brasil também
está passando por uma fase de muitos protestos. Como o sr. avalia esse
processo? Há conexão com o que ocorre no mundo?
É impossível
encontrar hoje um lugar no mundo onde não estejam ocorrendo sérios
protestos sociais. Eles parecem estar focados em diferentes temas, criando
a impressão superficial de não existe correlação entre eles. Mas isso é
também um auto-engano. Muitas vezes, no passado, muitos desses protestos
costumavam ser desconsiderados, tidos como movimentos de um tema
específico, sem implicações na estabilidade geral da ordem social
estabelecida. Nada pode ser mais distante da verdade.
É verdade
que a grande variedade de protestos que testemunhamos hoje em diferentes
partes do mundo não se enquadra nos canais e nos modos de ação da política
tradicional. Mas seria tolice ter isso como prova de sua irrelevância. Ao
contrário, eles apontam para razões muito mais profundas para os problemas
e as contradições que se acumularam.
No momento, não é visível
nenhuma estratégia de coalescência. Sua característica geral parece ser a
de que estão testando os limites e procurando maneiras mais efetivas de
articulação de suas preocupações. Estamos testemunhando um processo que
ainda está em desdobramento e cujo significado deve ter grandes
consequências no futuro.
Há quem enxergue a ação dos EUA nas
manifestações pelo mundo, com o objetivo de desestabilizar governos. Isso
faz algum sentido?
Isso é uma enorme e excessiva
simplificação. Os EUA indubitavelmente estão na linha de frente de
conflitos e conflagrações internacionais, por conta do seu impressionante
poder dominante no hegemônico imperialismo global. Mas as causas são muito
mais profundas do que o que possa ser resolvido por "desestabilização de
governos".
Em alguns casos limitados isso pode acontecer, e, de
fato, pode ser buscado com êxito pelas forças mais extremistas de
organismos da administração norte-americana. Mas, há limite para tudo, até
para o neoliberal mais radical e para o aventureirismo neoconservador.
Como a internet muda a luta política hoje?
Certamente a internet ajuda na comunicação e na coesão dos
movimentos de protesto, como ficou evidenciado recentemente. Mas não deve
ser esquecido que ela também dá os recursos para as forças do outro lado
do confronto – dando assistência direta a vários Estados capitalistas.
De qualquer forma, para os dois lados a internet pode apenas
fornecer ajuda subsidiária, não importando quão forte ela seja. Os
problemas só podem ser resolvidos no próprio terreno em que surgiram. E
isso diz respeito às determinações estruturais fundamentais de nossa ordem
social.
Como o sr. analisa a relação entre capitalismo e
democracia? São compatíveis?
Capitalismo e democracia não são
incompatíveis, salvo em situações de crises extremas que trazem à tona os
Hitlers e os Pinochets onde quer que tais crises eclodam – mesmo no Brasil
no passado recente. A normalidade da produção capitalista é sustentada de
forma melhor na ordem das regras formais democráticas de controle e
regulação.
É por isso que regimes ditatoriais são insustentáveis
no longo prazo e tendem a ser revertidos (mesmo a "miltonfreedmenização"
do Chile de Pinochet) para modos políticos mais maleáveis de regulação
formal democrática, dentro da moldura geral das trocas capitalistas.
Nos EUA, a direita radical colocou o país à beira do abismo por
conta de uma tímida reforma no sistema de saúde. Isso trouxe riscos para
os grandes negócios e as finanças. Como o sr. explica isso?
O
sistema de saúde nos EUA é apenas uma parte da crise que testemunhamos.
Fundamentalmente é inseparável da dívida astronômica de 17 milhões de
milhões de dólares que já mencionei. Por enquanto, foi feita uma
acomodação parcial entre democratas e republicanos, de forma que a nova
data para o problema trilionário irresolvido ficou para o final de 2013,
mas não deve trazer novamente um suspense internacional.
Mas
podemos estar certos de que essa questão voltará com crescente severidade.
17 milhões de milhões de dólares significa tanto que não é possível
encontrar um tapete de tamanho suficiente sob o qual se possa varrer e
esconder essa quantia. Como costumeiramente é feito como forma de adiar a
solução de problemas.
É possível dizer que o partido democrata
foi mais para a direita e falhou em isolar a direita radical do partido
republicano?
É difícil dizer qual dos dois partidos é mais à
direita do que o outro. Mas ambos estão igualmente errados ao estarem tão
à direita para serem capazes de enfrentar os graves problemas da sociedade
norte-americana.
Como o sr. analisa a administração Obama e o
estado da democracia nos EUA?
Obama prometeu muita coisa que
nunca se materializou sob sua Presidência. Basta pensar em Guantánamo. Mas
isso não é questão de um presidente em particular. Estruturas de poder não
podem ser entendidas em termos personalizados.
Devemos lembrar a
entrevista à televisão que o presidente democrata Jimmy Carter deu. Ele
chorou, com lágrimas nos olhos, ao dizer que "o presidente não tem poder".
De fato, ele conseguiu fazer mais desde que deixou a Presidência do que
pode quando estava no comando. Até agora não vimos o presidente Obama
chorar na televisão. Mas "há uma primeira vez para tudo", diz o ditado.
Os EUA espionam o mundo inteiro. Recentemente foi revelado um
esquema de espionagem norte-americana no Brasil envolvendo interesses em
petróleo e mineração. O que o Brasil deveria fazer para defender sua
soberania?
Esse tema beira a insanidade. Espionam todos como
potenciais inimigos, mesmo chefes de Estado de governos amigos. Há quem
possa rir e achar que o problema não é tão sério. Mas precisamos lembrar
que a defesa da soberania não pode estar confinada no domínio das leis e
da política internacionais.
A legislação internacional é
pateticamente fraca a esse respeito, sem mencionar as instituições que
tratam globalmente disso. Vale lembrar o título de um livro de um
proeminente advogado liberal, Philippe Sands. É "Lawless World: America
and the Making and Breaking of Global Rules".
Essas questões são
decididas pelas relações reais de poder. E, é claro, as forças
preponderantes do capital global ficam com a parte do leão nesse processo
de tomada de decisão. A soberania não pode ser protegida sem se atentar
para esse lado crítico do problema, inseparável do poder preponderante das
corporações gigantes do capital transnacional.
O poder dos EUA
está em ascensão ou em queda?
Seria mais apropriado dizer que
ele está estacionado, mas ainda é o mais dominante. As condições que
explicam essa dominância estão presentes e são bem visíveis: vão do
complexo industrial-militar, ao Banco Mundial, ao fato de o dólar ser a
moeda de troca mundial. Nenhum outro país poderia sonhar em impor ao mundo
uma dívida de 17 milhões de milhões de dólares. Mas uma dominância que
repousa sobre esse tipo de fundações só pode ser instável.
Qual
é a sua visão da China? Lá a pobreza diminuiu. Há socialismo?
As realizações da China no campo da produção incluindo o
declínio da pobreza que você menciona têm sido monumentais. Mas há várias
grandes perguntas para o futuro. Acima de tudo: por quanto tempo poderão
ser mantidas as realizações na área produtiva sem que elas causem danos
irreparáveis nos recursos gigantescos no domínio da ecologia?
Mais
ainda: por quanto tempo poderão ser aceitas as impressionantes
desigualdades entre os níveis mínimos de ganhos da população trabalhadora
e a riqueza dos altamente privilegiados? O socialismo é inconcebível sem
uma substantiva igualdade – também na China.
No passado, as
disputas no interior do capitalismo provocaram guerras mundiais. Essa
hipótese está no horizonte?
A opção pela Guerra foi usada no
passado como parte da tentativa de resolver problemas entre partes em
conflito sob as regras do capital. Foram duas guerras mundiais no século
20. Com as armas de destruição em massa, ficou impossível prever a
compatibilidade dessa solução com as condições elementares da
racionalidade. Mas há representantes da direita radical que não hesitariam
em jogar com fogo e até abertamente advogam a plena legitimidade de jogar
com fogo.
Muitos deles estão presentes em elevados postos da
hierarquia política. Assim, o presidente [Bill] Clinton, por exemplo,
declarou que "há apenas uma nação necessária, os EUA". Na mesma época,
Robert Cooper (guru do primeiro-ministro britânico Tony Blair e
conselheiro internacional de Xavier Solana) cantava louvores para o
agressivo imperialismo liberal em seus escritos.
Da mesma forma,
Richard Haass, diretor de planejamento político no departamento de Estado
na gestão George W.Bush, insiste na necessidade de uma estratégia
imperialista mais agressiva, escrevendo que a defensiva, não o
imperialismo agressivo, é o maior perigo do interesse em reafirmar a
hegemonia global dos EUA. Esta precisa ser defendida por quaisquer meios,
mesmo com a guerra explícita.
A racionalidade é, obviamente, a
grande dificuldade para implantar essas estratégias. Mas ninguém pode
dizer que a possibilidade de até mesmo uma conflagração mundial possa
agora ser excluída do horizonte histórico.
É possível dizer que
a influência dos EUA na América Latina declinou na última década?
Sim. Falarei dos países relevantes nesse aspecto em seguida. E
outros poderão se agregar a eles no futuro.
Como o sr. analisa
as experiências de países como Venezuela (que fala em socialismo do século
21), Bolívia, Equador, Uruguai, Argentina?
Eles trilham por
uma estrada muito difícil, na qual, indubitavelmente, muitos obstáculos
serão erguidos no futuro pelo poder imperial dominante. Os EUA declararam
abertamente que a América Latina era o seu quintal, reivindicando
legitimidade para a sua dominação na região.
Como o sr. avalia
os dez anos de PT no governo do Brasil?
Visitei o escritório
do futuro presidente Lula em 1983. Tirei então uma foto do escritório onde
se podia ler uma palavra iluminada: "Tiradentes". Eu fiquei pensando e
continuo pensando hoje quanto tempo mais levará para que seja possível
dizer que o escritório nacional de "Tiradentes" teve êxito em extrair os
dentes infeccionados que causam tanta dor, mesmo num país com tantos
recursos, em todos os sentidos, como o Brasil.
Qual é a sua
visão sobre a relevância das ideias socialistas hoje?
Mencionei anteriormente que nossos problemas só podem
encontrar soluções sustentáveis na sua época. Outras formas de
enfrentá-los podem ser revertidas, como ocorreu no passado.
As
ideias socialistas têm sido definidas desde o início como as que requerem
uma época histórica para a sua concretização, embora os problemas
imediatos de onde elas devem partir sejam muito dolorosos.
Em
outras palavras, elas requerem não apenas os serviços urgentes de
"Tiradentes", mas também prevenção para as doloridas infecções no longo
prazo. As ideias socialistas são, portanto, mais relevantes hoje do que
jamais foram.
Que países ou partidos representam o socialismo
hoje?
Apenas alguns partidos muito pequenos proclamam sua
fidelidade às ideias socialistas. E não há país que possa chamar a si
mesmo como socialista.
No passado o sr. usou a expressão
socialismo Mickey mouse para tratar de partidos que apenas brincavam com
as ideias socialistas. Isso continua a ocorrer?
Não
exatamente. O socialismo Mickey Mouse ficou mais fraco. O Partido
Comunista Italiano que foi o partido de [Antonio] Gramsci e da Terceira
Internacional primeiro se autoconverteu no que se chamam de democratas da
esquerda.
Depois achou até a palavra esquerda muito
comprometedora. Então se rebatizaram de partido dos democratas. Não há
mais Mickey Mouse. É mais como um Popeye que perdeu o seu espinafre.
Quais são suas expectativas sobre o socialismo ou o comunismo
no futuro? É um objetivo inatingível? E sobre o risco de barbárie? Existe?
Escrevi num livro também publicado no Brasil [ O século XXI: Socialismo ou
barbárie ] que se tivesse que
modificar as famosas palavras de Rosa Luxemburgo – "socialismo ou
barbárie" – acrescentaria: "Barbárie se tivermos sorte". Porque a
exterminação da humanidade é a ameaça que se desenrola. Enquanto falharmos
em resolver nossos grandes problemas que se espalham por todas as
dimensões da nossa existência e nas relações com a natureza, o perigo vai
permanecer no nosso horizonte.
Onde deve estar um militante
marxista hoje?
Contribuindo em tudo que ele ou ela possam
fazer para buscar solução duradoura para esses grandes problemas.
Qual o seu plano para o futuro?
Continuar
trabalhando em projetos de longo prazo que dizem respeito a todos nós.
17/Novembro/2013
[*] Repórter
especial da Folha de S. Paulo.
O original encontra-se em
blogdaboitempo.com.br/... e a
tradução em www1.folha.uol.com.br/...
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