NCeHu
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E se o mundo ainda não estiver pronto
antes da chegada do nosso olhar?
Em um ‘Encontro com Milton Santos – O mundo global
visto do lado de cá’ (2006), de Sílvio Tendler, descobrimos que há três mundos
em um só. Tese: o 1º é a imagem idílica que dele desponta do mundo – a
globalização como fábula. Antítese: o 2º é o mundo como ele é – a globalização
como perversidade. Síntese: o 3º é o mundo como ele pode ser – uma outra
globalização.
Flávio Ricardo Vassoler
Carta
Maior
29/7/13
Moscou, 2008. Em uma aula de língua russa na
RUDN, a Universidade Russa da Amizade dos Povos, há um tanzaniano, uma francesa,
um americano, uma mongol, dois turcos, um chinês e dois brasileiros, entre os
quais o autor deste texto. Como um estudante ocidental, sempre observei o mapa
do mundo com a proeminência da região atlântica. Eis que Li Cheng, o simpático
chinês ao meu lado, abre uma agenda multiuso de cuja contracapa desponta uma
ordem mundial outra. No mapa de Li, a China desponta como o coração do mundo.
Ainda que eu pudesse compreender as implicações geopolíticas de tais construções
diferenciais, confesso que meu olhar forjado pelo Ocidente me acostumou a ver e
a naturalizar o Atlântico como o eixo do mundo.
“O centro do mundo está
em todo lugar. O mundo é o que se vê de onde se está”. Assim falou Milton Santos
(1926-2001), o geógrafo brasileiro que refletiu profundamente sobre o processo
de globalização capitalista como uma tensão dialética. Em um ‘Encontro com
Milton Santos – O mundo global visto do lado de cá’ (2006), documentário
dirigido por Sílvio Tendler, descobrimos que há três mundos em um só. Tese: o
primeiro é a imagem idílica que dele desponta do mundo – a globalização como
fábula. Antítese: o segundo é o mundo como ele é – a globalização como
perversidade. Síntese (há muito inviabilizada pelos donos do poder): o terceiro
é o mundo como ele pode ser – uma outra globalização.
“Nunca na história
da humanidade houve condições técnicas e científicas tão adequadas para
construir o mundo da dignidade humana. Ocorre que essas condições foram
expropriadas por um punhado de empresas que decidiram construir um mundo
perverso. Cabe a nós fazer dessas condições materiais a condição material da
produção de uma outra política”. O professor Milton Santos entrevê a
discrepância entre os Estados nacionais que, como os Estados Unidos, vaticinam o
arrefecimento do Estado-Nação, mas, ao mesmo tempo, exponencializam seus gastos
militares e fortalecem as próprias demandas a despeito dos países combalidos. A
circulação de capitais e mercadorias não poderia ser mais intensa e global, ao
passo que a circulação das pessoas esbarra nas fronteiras farpadas e, no limite,
na introjeção da própria lógica do escravo. “Aquele não é o meu lugar, eu devo
ficar aceitar minha condição”. Mas Milton Santos entrevê o surgimento da
antítese contestatória quando o torpor e a inércia mais parecem consolidados.
“Penso sempre em meio ao processo contraditório. Tenho muito medo da ortodoxia,
do marxismo ortodoxo, do pensamento que não se renova, que não se historiciza. É
quando há o risco da religião e do dogma. Assim, num sentido heterodoxo, eu me
considero um marxista e um marxizante. Pois se tudo se torna capitalista,
obrigatoriamente a contradição se instala”.
Sílvio Tendler cita um
fragmento de ‘Geopolítica da Fome’, de Josué de Castro, para ilustrar a tensão
contraditória que contrapõe a tese das grandes corporações à antítese do
miseralato. “A humanidade se divide em dois grupos: o grupo dos que não comem e
o grupo dos que não dormem com receio da revolta do que não comem”. Porque a
inanição historicamente (re)produzida, como bem ensina Milton Santos, não se
refere a uma restrição das forças produtivas, mas à distribuição da riqueza
social que os donos do poder insistem em chamar de “recursos escassos”. Assim, o
desemprego e a pobreza atuam como forças da natureza; trata-se, segundo os
porta-vozes da opressão, de fenômenos cíclicos contra os quais somente se pode
proteger atrás dos muros altivos e farpados dos condomínios-bunkeres. No mais,
se os sindicatos e as entidades de classe protestam pela manutenção e expansão
dos direitos trabalhistas, as grandes corporações podem globalizar a produção e
particularizar os salários. Socialização das perdas, privatização dos lucros. A
jaqueta cujo tecido foi costurado no Bom Retiro, o zíper foi fabricado na
Malásia e os botões, na China, custa menos para o consumidor final por conta dos
centavos que mal forram os pratos daqueles agora rebaixados a subproletários.
Pois é preciso orar financeiramente diante do altar do consumo, “este sim o
verdadeiro fundamentalismo da contemporaneidade”.
Mas mesmo com o poder
mundial das grandes corporações e de seus Estados nacionais fortemente armados,
Milton Santos entrevê importantes possibilidades de resistência justamente no
conceito contraditório de humanidade. Quando dos primórdios da globalização, com
as grandes navegações primeiramente capitaneadas pelos portugueses, a expansão
territorial significou a submissão colonial e a chacina dos povos nativos. O
outro era visto como escravo. A globalização de nossos tempos comporta um fator
de dominação ainda mais brutal e cínico, pois a pobreza é fomentada e explorada
a despeito da possibilidade de erradicá-la. Mas, agora, as distâncias
planetárias se tornam contíguas não apenas para as grandes corporações e os
aparelhos de repressão, mas também para os movimentos de contestação. As causas
sociais deixam de ser meramente locais para se articularem mundialmente. Se a
exploração é global, o desenvolvimento tecnológico passa a ser alvo de disputa,
pois suas benesses são impessoais e dependem de quem delas se apropria – as
grandes corporações e sua lógica instrumental de exclusão e maximização dos
lucros ou a grande maioria da humanidade representada pelos movimentos de
resistência que pretendem reconstruir o mundo sobre novas bases.
Milton
Santos, que se considerava um intelectual outsider por não pertencer a nenhum
partido político, por não ter credo, por não fazer parte de nenhum grupo
intelectual, estruturou seu pensamento sobre a dialética que diagnostica a
desestruturação do presente para, em meio aos escombros entre os quais os
oprimidos precisam se esgueirar, projetar o reordenamento futuro do real. Algo
como uma retomada do ímpeto do marxista italiano Antonio Gramsci, que, acossado
pelo cárcere do ditador fascista Benito Mussolini, propugnou pelo pessimismo do
intelecto para que o otimismo da vontade e da resistência se tornasse
libertador. “É preciso explicar por que o mundo de hoje, que é horrível, é
apenas um momento do longo desenvolvimento histórico e que a esperança sempre
foi uma das forças dominantes das revoluções e insurreições. Eu ainda sinto a
esperança como minha concepção de futuro”. (Jean-Paulo Sartre, no prefácio de Os
condenados da terra, de Frantz Fanon.)
Há 10 anos, quando eu começava a
caminhar pelo corredor polonês da dialética, as várias leituras que Milton
Santos me propiciava me levaram a um livro de homenagens ao grande intelectual
brasileiro e universal – o local como momento indissociável da configuração
histórica universal, mas sem perder suas características de identidade e
resistência. Cheguei a um fragmento que falava sobre a juventude do escritor
russo Liev Tolstói. Quando criança, o menino Tolstói, trêmulo, tinha medo de
olhar para trás. “E se o mundo ainda não estiver pronto antes da chegada do meu
olhar?” Se tivesse lecionado para o jovem Tolstói, o geógrafo baiano de Brotas
de Macaúbas teria ensinado ao autor de Guerra e Paz que novo ainda desconhecido
pressupõe não apenas o temor da expectativa incerta, mas o ímpeto da descoberta
e da transformação.
*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e
doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de
O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e
Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Periodicamente,
atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em
que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens
pelo mundo.
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