Asunto: | NoticiasdelCeHu 406/03 - Era uma vez o neoliberalismo? | Fecha: | Viernes, 9 de Mayo, 2003 22:45:28 (-0300) | Autor: | Humboldt <humboldt @............ar>
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NCeHu
406/03
Era uma vez o neoliberalismo?
Emir Sader Sociólogo
O neoliberalismo buscou se impor, inicialmente, como a
melhor opção para um mundo que parecia ter esgotado as outras. Esgotava-se o
mais acentuado ciclo de expansão da economia mundial, marcado pelo segundo
pós-guerra. Buscavam-se alternativas e o neoliberalismo se inseriu nesse
vazio.
A que o neoliberalismo pretendia ser alternativa? Ao
esgotamento do período de maior crescimento da economia mundial. Haviam se
combinado aí a mais acelerada fase de expansão econômica das grandes potências
capitalistas - a ponto que Eric Hobsbawn a chama de ''era de ouro do
capitalismo''; a expansão de países da periferia capitalista, com vários deles
desenvolvendo suas versões da industrialização; e o fortalecimento das economias
dos países do então chamado campo socialista. Essa convergência produziu, como
resultado, um crescimento global da economia como nunca havia ocorrido, entre os
anos 40 e os anos 70 do século XX.
Essas vertentes tinham algo em
comum: a crítica ao liberalismo. Todas tinham, de alguma forma, nascido ou se
fortalecido a partir da crise de 1929. Esta, atribuída ao liberalismo pela sua
confiança na capacidade dos mecanismos de mercado para recompor as crises
econômicas, tinha levado os governos a assistir, quase que passivamente, à
crise, que assim acabou alastrando-se e gerando aquela que até aqui é a maior
que o capitalismo enfrentou. As reações foram de distinto tipo, mas todas tendo
em comum a condenação da confiança no ''livre jogo do mercado''.
As teorias keynesianas orientaram novas formas de ação anticíclica
do Estado - isto é, de ação preventiva em relação a novas crises - que continham
no seu bojo o chamado Estado de bem-estar social. Essas teorias foram um fator
decisivo na expansão das economias das potências capitalistas no segundo
pós-guerra, na contramão do liberalismo.
A industrialização de
regiões da periferia capitalista - o então chamado terceiro mundo - foi
igualmente feito com forte indução do Estado na economia, apoiado na teoria da
industrialização substitutiva de importações. Essa política surgiu como
crítica da teoria do comércio internacional - teoria liberal -, que considerava
que cada país e região do mundo deveria se dedicar àquilo que chamava de
vantagens comparativas, o que condenava os que chegavam posteriormente ao
mercado internacional a ficar permanente presos à produção de produtos primários
que, trocados pelos industrializados, consolidariam eternamente e aprofundariam
a divisão ente centro e periferia do capitalismo, entre potências industriais e
países agrícolas ou minerais.
As economias centralmente
planificadas que caracterizaram os países socialistas eram o contraponto mais
radical a economias de mercado, mais ainda das inspiradas pelo liberalismo.
O ciclo global de crescimento econômico do segundo pós-guerra se
construiu assim sobre a crítica, mais ou menos radical, do liberalismo. Foi
quando essas três vertentes começaram a dar sinais de esgotamento que o
liberalismo se lançou como alternativa hegemônica de novo, depois de que a crise
de 1929 parecia condená-la a um cadáver irrecuperável. Durante esse longo
período de recesso, os liberais se mantiveram como crítica marginal,
conservadora, às tendências econômicas e políticas dominantes.
Até
mesmo os partidos de direita se comprometiam com o keynesianismo, a ponto de
que, no começo dos anos 70, o presidente republicano dos EUA, Richard Nixon,
declarou: ''Somos todos keynesianos'', refletindo o poder hegemônico da proposta
reguladora do Estado capitalista. No plano concreto, essa hegemonia se refletia
também em que o Estado de bem-estar na Europa - em países como a Alemanha, a
Itália, a França - foi construído por partidos conservadores -
democrata-cristãos, entre outros.
Por trás desse processo havia o
ciclo longo expansivo do capitalismo, que se esgotou durante a década de 70, com
a data convencionalmente estabelecida pela crise do petróleo de 1973, embora
esta tenha sido apenas o detonador de um processo que já havia perdido fôlego
nos anos anteriores. O diagnóstico neoliberal, em relação às três vertentes
terem entrado em crise, foi a de que a regulamentação representaria um
desincentivo ao capital e que a livre circulação seria a alternativa para a
retomada do desenvolvimento, tanto no centro quanto na periferia do capitalismo.
Quanto às economias centralmente planificadas, elas estariam condenadas ao
fracasso por não contar com o dinamismo que só o livre mercado poderia promover.
É nesse marco que surgem as propostas liberais - elas mesmas se
autoproclamando como neoliberais - pela retomada atualizada das teses clássicas
do pensamento liberal. A economia mundial foi transformada, em graus diferentes
conforme a região e o país, pelas políticas neoliberais, que promoveram a
hegemonia da ideologia de mercado, identificada com o dinamismo e a liberdade
econômica.
Como políticas concretas, o neoliberalismo se iniciou
na América Latina - mais precisamente na Bolívia e no Chile de Pinochet. O que
era a alternativa neoliberal nesses países? O combate à inflação era colocado
como o objetivo fundamental, como condição prévia indispensável à retomada do
crescimento econômico, à modernização tecnológica e à distribuição de renda. A
luta contra a inflação era a forma específica de lutar contra a presença do
Estado, considerando que a inflação é promovida pelo Estado, fabricando moeda
para cobrir seus déficits, o que levaria igualmente à redução dos gastos
públicos e, com estas, a retração das prestações de serviços pelo Estado
particularmente as dirigidas às camadas mais pobres da população, justamente as
que estavam em piores condições de disputar os recursos reduzidos nas mãos dos
governos.
Foi em seguida que, com a eleição de Margareth Thatcher
na Inglaterra e de Ronald Reagan nos EUA, o neoliberalismo foi assumido como
modelo hegemônico pelo capitalismo em escala mundial. Generalizaram-se, contando
com o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial de Comércio, as políticas de
liberalização econômica e financeira, com desregulamentação, privatização,
abertura das economias para o mercado mundial, precarização das relações de
trabalho, retração da presença do Estado na economia.
Quando o
neoliberalismo foi perdendo impulso, suas políticas, inicialmente consideradas
as melhores, passaram a ser consideradas as únicas, conforme o receituário do
Consenso de Washington. Não haveria alternativas, como se se tratasse de um
purgante, necessário, que provocaria danos no organismo, mas as células
sobreviventes se sentiriam melhor.
Duas décadas depois, o balanço
do neoliberalismo não corresponde às suas promessas: a economia - nos vários
países e na economia mundial no seu conjunto - não retomou a expansão, a
distribuição de renda no mundo piorou, o desemprego aumentou sensivelmente, as
economias nacionais ficaram sensivelmente mais fragilizadas, as crises
financeiras se sucederam. O neoliberalismo se apoiou em grande parte no ciclo
expansivo da economia norte-americana, que funcionou como locomotiva da economia
mundial, pretendendo assumir - sob a forma de nova economia - uma dinâmica de
crescimento permanente, até que esse ciclo se esgotou em 2001.
Depois dos ciclos de crise regional, começados com a crise
mexicana em 1994, seguida pela crise do sudeste asiático em 1997, pela russa em
1998 e pela brasileira em 1999, configurou-se um quadro de esgotamento do
neoliberalismo. Na América Latina, enquanto inicialmente os presidentes se
elegiam e se reelegiam conforme adotavam as políticas neoliberais - como
aconteceu com Carlos Menem, com Alberto Fujimori e com FHC -, a partir do final
da virada do século passou a acontecer o contrário. Fernando de la Rúa na
Argentina, Jorge Battle no Uruguai, Alejandro Torres no Peru, Sanchez de Losada
na Bolívia, Vicente Fox no México passaram a ter um destino oposto: não mudavam
o modelo econômico e fracassavam rapidamente.
É a esse quadro de
crise econômica e social - que ao mesmo tempo debilitou os sistemas políticos -
que o neoliberalismo entrou também em crise ideológica, com os valores mercantis
sendo questionados de forma crescente, até mesmo por organismos como o Banco
Mundial e por ex-teóricos do neoliberalismo, que passaram a reivindicar ações
complementares por parte do Estado e outras formas compensatórias para remediar
os danos sociais causados pelas políticas mercantis.
Os movimentos
contra a globalização neoliberal a partir de Seattle consolidaram esse
esgotamento e a passagem dos que pregam ainda as políticas neoliberais a uma
posição defensiva, enquanto os Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre
questionavam tanto a efetividade dessas políticas quanto sua pretensão a ser as
únicas viáveis.
O esgotamento - teórico e prático - do
neoliberalismo não representa sua morte. Os mecanismos de mercado que ele
multiplicou seguem tão ou mais fortes do que antes, condicionando e cooptando
governos e partidos, forças sociais e a intelectuais. A luta contra o
mercantilização do mundo é a verdadeira luta contra o neoliberalismo, pela
construção de uma sociedade democrática em todas suas dimensões, o que significa
necessariamente de uma sociedade governada conscientemente pelos homens, não
pelo mercado.
Que tipo de sociedade sucederá ao neoliberalismo é o
grande tema a enfrentar. O neoliberalismo é um modelo hegemônico - não apenas
uma política econômica, mas uma concepção da política, um conjunto de valores
mercantis e uma visão das relações sociais - dentro do capitalismo. Sua
substituição não significa necessariamente ruptura com o capitalismo. Ela pode
se dar pela superação do neoliberalismo a favor de formas de regulação da livre
circulação do capital, seja na lógica do grande capital, seja na sua contramão.
Isso vai depender das condições em que se der a superação, com que relação de
forças, levada a cabo por que coalizão social e política.
O
próprio grande capital pode retomar formas de regulação, de proteção, de indução
estatal na economia, seja alegando necessidades de fato, seja retomando
concepções mais intervencionistas do Estado, com críticas às limitações do
mercado. Essa visão está representada pelo megaespeculador Georges Soros, que
afirma que o mercado seria bom para produzir certo tipo de bens, mas não os bens
que chama de públicos ou sociais, que deveriam ser de responsabilidade de
políticas estatais. Trata-se de reconhecimento de que o mercado induz à
acumulação privada, não ao atendimento das necessidades da grande maioria da
população. Ou pode simplesmente, pela via dos fatos, violar as próprias
afirmações e desenvolver políticas protecionistas - como as do governo Bush nos
Estados Unidos -, alegando necessidades de segurança ou de defesa de setores da
economia ou mesmo do nível de emprego.
Ou o pós-neoliberalismo
pode ser conquistado na contramão da dinâmica do grande capital, impondo
políticas de desmercantilização, fundadas na necessidade de atendimento da massa
da população. Nesse caso, mesmo sem romper ainda com os limites do capitalismo,
se trata de introduzir medidas contraditórias com a lógica do grande capital,
que mais cedo ou mais tarde levarão ou a essa ruptura ou a um retrocesso, pela
incompatibilidade da convivência de duas lógicas contraditórias.
Qual delas prevalecerá é uma questão aberta, que será decidida
pelos homens, arrastados pela lógica perversa da acumulação de capital ou
conscientes e organizados para retomar o poder de fazer a própria
história.
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