A
FAVELA DA ROCINHA: UMA CENTRALIDADE TURÍSTICA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO – UM
NOVO OLHAR
Ulisses Fernandes
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo analisar a atividade
turística desenvolvida em favelas cariocas, em especial a Favela da Rocinha.
Esta temática reporta a períodos distintos, nos anos de 2001 e 2009, onde
através da comparação entre trabalhos de campo realizados e com o suporte de
leituras especializadas foi possível compreender a dinâmica experimentada pelo
turismo na referida localidade. O trabalho é desenvolvido de forma a contemplar
uma caracterização do fenômeno do turismo como um todo e suas tipologias, sua
atuação no Rio de Janeiro e as razões pelas quais atingiu as favelas cariocas.
Deste modo, permite avaliar a formação de uma nova centralidade turística na
cidade do Rio de Janeiro.
Abstract
The present study intends to analyze the touristic activity
developed in favelas throughout the city of Rio de Janeiro, especially concerning Favela da
Rocinha. This topic refers to distinct periods, in 2001 and 2009, when it was
possible to comprehend the dynamics experimented by touristic activity at said
location, through the comparison of specialized reading materials and the
support of fieldwork results. This work was elaborated in order to state some
characterization of the tourism phenomenon as a whole and its typologies, its
acting in Rio de
Janeiro and the reasons why it has hit the city’s
favelas. This way, it allows for evaluating the formation of a new touristic
centrality in Rio de
Janeiro city.
Considerações Iniciais
Este trabalho é, inicialmente, fruto da monografia de conclusão do
curso, de Políticas Territoriais no Estado do Rio de Janeiro, no Programa de
Pós-Graduação do Instituto de Geografia da Uerj, no ano de 2002. Naquele
momento, para tal intento, foi realizado um trabalho de campo na forma de um
roteiro turístico promovido pela empresa Favela-Tour através da Favela da
Rocinha, no Rio de Janeiro. Presentemente, um novo campo foi realizado, com a
mesma empresa, com o objetivo de reavaliar algumas das interações e apontamentos
feitos à época. Deste modo, novas considerações podem ser feitas a respeito
desta abordagem do turismo na cidade do Rio de Janeiro, bem como se torna
possível também interagir com o que pode ser definido como novas centralidades
turísticas nas favelas cariocas.
1.
Por uma Proposta de
Abordagem do Tema
A cidade do Rio de Janeiro representa, em escala mundial, um dos
principais ícones do turismo internacional, sendo desta forma, o principal
referencial turístico do país, tanto pela lógica dos deslocamentos internos,
como dos externos. O cenário idílico – notadamente o da orla sul carioca –,
construído naturalmente ou agregando valores antrópicos e de natureza simbólica,
estimulou a criação de um lugar turístico de grande potencial, reunindo fixos de
caráter cultural, verdadeiras rugosidades, eventos como o Carnaval, parques,
praias e infra-estrutura de serviços, principalmente hotéis. O Rio de Janeiro
tornou-se de fato, um destino ímpar nos principais roteiros das empresas
operadoras de turismo nacionais e estrangeiras.
Ao mesmo tempo, a urbe carioca apresenta uma série de mazelas
comuns a uma metrópole de Terceiro Mundo: violência exacerbada, favelização e
caos urbano são suas principais evidências – e é neste cenário que pode ser
diagnosticado a presença de um lugar turístico improvável, ou seja, uma favela
na zona sul da cidade, a Favela da Rocinha.
Com o estigma de ser considerada a “maior favela da América
Latina” – título que pode ser considerado controverso na medida em que a
localidade é apontada oficialmente como um bairro carioca –, a Rocinha, a partir
do início dos anos noventa[1], no século passado, tornou-se progressivamente, um roteiro
turístico procurado essencialmente por turistas estrangeiros que aportam na
Cidade do Rio de Janeiro.
Neste sentido, surge a questão balizadora da pesquisa: como
justificar o desenvolvimento de um lugar turístico totalmente desconexo de um
modelo pré-estabelecido, o do turismo tradicional, no cerne de uma metrópole
como o Rio de Janeiro? Para tanto, no caminho investigativo, procura-se
estabelecer como foi possível a constituição desse lugar turístico, o que
obrigatoriamente adiciona questionamentos não específicos, mas de todo modo
importantes – o que diz respeito ao desenvolvimento da atividade turística e
suas tipologias; o suporte necessário para enfatizar o recorte enquanto uma
centralidade turística na cidade do Rio de Janeiro.
Para além dos trabalhos de campo já mencionados nas considerações
iniciais do texto, o estudo teve o aporte de fontes secundárias capazes de
permitir o embasamento teórico fundamental para o desenvolvimento das questões.
De certo, em tempos recentes, a temática do turismo se tornou muito cara à
Geografia, o que permite acesso a uma grande variedade qualitativa de obras em
conexão com o tema. Do mesmo modo, o tema favela tem o apelo próprio da
abordagem sócio-espacial da Geografia, razão pela qual também é contemplado em
vasta bibliografia.
Basicamente, o trabalho aqui desenvolvido está estruturado em três
partes: Na primeira, o enfoque maior está no desenvolvimento da atividade
turística e suas repercussões sócio-espaciais, bem como a diversidade de opções
do fazer turístico, o que remete ao trato das tipologias turísticas.
Posteriormente, a ênfase na favela e a sua centralidade turística, para o que
foi pertinente considerar Mello (1995) em respeito a sua análise sobre as
explosões e os estilhaços de centralidades. Por fim, a própria abordagem da
atividade turística na favela, razão pela qual, como já mencionado, foram
empreendidos os roteiros com a empresa Favela-Tour.
Neste contexto, o objetivo maior do trabalho é comprovar como a
Favela da Rocinha se transformou num lugar turístico e também como se inseriu no
turismo tradicional já praticado na cidade do Rio de Janeiro. Também se tornou
vital compreender como a atividade turística propiciou alteração nas relações
sociais e até de produção no interior da própria favela e, mais ainda, como foi
importante na valorização identitária do habitante local.
Enfim, em um momento em que a chamada indústria do turismo
torna-se fundamental numa escala de consumo global, qualquer inovação no que diz
respeito ao turismo tende a ser consumida com certa avidez. Em Urry, (2001, p.
61), tendo por base David Harvey, observa-se que cada cidade “precisa aparecer
como um lugar inovador, excitante, criativo e seguro onde se possa viver,
divertir-se e consumir” – a Cidade do Rio de Janeiro agrega desde muito tempo
alguns dos itens citados e, talvez a Rocinha, enquanto lugar turístico, seja
mais uma de suas inovações.
De fato, tornou-se estimulante adentrar a favela, percorrer seus
caminhos, conhecer suas mazelas e suas virtudes. A questão da segurança tem suas
facetas: por um lado a segurança específica do turista visitante foi resolvida,
pois o mesmo circula incólume pelo local, inclusive com pertences pessoais como
câmaras fotográficas, relógios e jóias; por outro lado a sensação de insegurança
está sempre presente, pelas limitações impostas no tour, como não fotografar
certos lugares ou permanecer preso a um roteiro
pré-estabelecido.
O trabalho ora empreendido espera ser capaz de elucidar as
questões a que se propõe, proporcionando, talvez, uma contribuição ao estudo do
turismo, em especial àquele que se aponta como inovador, focado na contribuição
ao estudo de políticas territoriais capazes de promover transformações
econômicas, sociais e culturais positivas, em especial, à Cidade do Rio de
Janeiro.
2.
O Turismo e a
Centralidade dos Lugares
A análise do turismo aqui empreendida reporta-se ao consumo – o
turismo e o lazer representam, nitidamente, algumas das categorias de consumo
mais estudadas nos últimos anos e o uso do tempo-livre vêm ascendendo a um novo
comportamento social com ares cada vez mais capitalistas. Se antes gastar o
tempo livre, na forma do ócio, imbutia um custo mínimo, agora, pela lógica
consumista, o tempo livre deve ser aliado à aquisição de algum
serviço.
As atividades de lazer e turismo tornam-se verdadeiras obrigações,
ao invés de necessidades cotidianas. Os valores pessoais atribuídos a uma viagem
de férias são maiores do que aqueles relacionados ao ócio puro e simples e, não
realizar tal viagem, advém, normalmente, da incapacidade financeira do
indivíduo. Assim, em geral, surgem dois grupos distintos em relação ao uso do
tempo livre: os turistas que obrigatoriamente interagem para a produção de
atividades e lugares turísticos; os excluídos, ou seja, os que por falta de
condições econômicas tornam-se alheios ao novo
processo.
Especificamente em relação ao turismo, observa-se que o mesmo tem
alocado em si uma gama diversa de setores produtivos, com múltiplas atividades,
o que faz Naisbitt (1994, p. 117) denominá-lo de “indústria de múltiplos
componentes”. Pode-se discordar do status de indústria à atividade turística,
mas não se pode negar que o avanço do meio técnico-científico-informacional, na
leitura direta de Santos (2002), tem proporcionado ao indivíduo uma maior
interação com o mundo, sendo aí o turismo uma das mais peculiares formas
pertinentes a esta interação.
Corroborando com esta idéia, há uma maior facilidade em relação à
circulação dos indivíduos, seja em caráter nacional ou internacional. Relações
diplomáticas avançadas e redes de transportes e comunicações mais eficientes
permitem esse aguçamento. As distâncias são mais facilmente e rapidamente
cobertas e por preços acessíveis.
Além do mais, a massificação da atividade traz benefícios de ordem
econômica, porém representa também a possibilidade concreta de desarticulações
sócio-culturais onde ela é inserida, bem como é capaz de produzir uma impactação
ambiental negativa.
A variedade de atividades e lugares turísticos mais parece atender
a mesma linha de raciocínio do modelo de produção flexível, pós-fordista, com a
adaptação da atividade turística de acordo com as necessidades do consumidor.
Dessa forma torna-se mais compreensível o surgimento de novas e variadas
centralidades turísticas, o que antes não se cogitaria à luz de uma visão mais
ortodoxa sobre a questão da centralidade geográfica, como veremos a
seguir.
Em assim sendo, há de se considerar as novas opções de consumo
turístico, ou novas centralidades turísticas, mas não sem antes revisitar,
dentro da lógica do modelo de centralidade de Christaller, as possibilidades do
fazer turismo. Para Eufrásio (2001, p. 290)
o
lugar ocupado pelas atividades de turismo no âmbito dos lugares centrais é
duplo: por um lado aparecem com destaque as grandes cidades, frequentemente
capitais de países, que sediam instituições de importância cultural [...] e
eventualmente também algumas de importância comercial [...]; são capazes de
motivar um fluxo turístico contínuo por ostentarem essas atrações e representam
os lugares centrais mais importantes de suas regiões [...]. Por outro lado, há
os lugares centrais de menor porte capazes, todavia, de carrear, por suas
atrações ambientais [...] contingente significativo de visitantes em busca de
tratamento e descanso.
As opções consideradas como de lazer e turismo tem variado muito
nos últimos anos. As exigências por viagens cada vez mais específicas e
localizadas agregam uma gama cada vez mais ampla de lugares e atividades
turísticas. Não há mais apenas como nortear única e simplesmente pela lógica do
modelo de Christaller as variações turísticas. Novas centralidades se justapõem
em acordo com o destino dos visitantes ou com as ofertas de atividades dos
deferentes lugares requisitados como turísticos.
Nesse sentido, recorre-se a Mello (1995), para enfatizar a
coerência de novas centralidades – “os lugares centrais não estão restritos
àqueles definidos pela Escola de Ecologia Humana de Chicago ou pela Teoria dos
Lugares Centrais, amplamente utilizados pela Geografia” (Op. Cit., pp. 23-24).
Para o referido autor, a centralidade não pode ficar restrita pela “magnitude
dos bens e serviços oferecidos e pela área de influência” (Loc. Cit.) e deve ser
trabalhada também na perspectiva humanística. Por este prisma, Mello (Op. Cit.,
p. 25) apresenta “um amplo leque de centralidades vivenciadas pelo indivíduo e
grupos sociais”, donde aqui se pretende aludir à atividade turística nas favelas
cariocas, em especial a Favela da Rocinha, como poderá ser visto a
seguir.
3.
A Rocinha – Uma
Centralidade Turística Abre Caminho
A Favela da Rocinha pode até não ser considerada uma favela, como
aponta a própria Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, ao configurá-la como um
bairro da cidade em 1993, mas apresenta tal percepção para grande parte dos
indivíduos, mormente os outsiders que por ela passam ou a ela se dirigem. Sua
origem, na década de 30 do século passado, em acordo com Abreu (1997), está na
ocupação desordenada nas encostas da Gávea por conta da população de baixa renda
que buscava trabalho na zona sul carioca.
Até ostentar o status de maior favela da América Latina, seu
crescimento resulta da inércia do poder público em não fazer frente a uma
política pública de habitação que não correspondesse ao simples fato de “fechar
os olhos” para o agigantamento da ocupação vertical e desordenada que marca a
paisagem da zona sul carioca nas imediações do Morro Dois
Irmãos.
As necessidades específicas da população aí presente, para além da
precariedade da moradia, envolvem o abandono social que tão caracteriza qualquer
outra comunidade carente em toda e qualquer metrópole brasileira. Fora isso,
persiste a alcunha de favelado e a presença constante de poderes de força que
desconsideram as necessidades de ir e vir dos cidadãos ali presentes – aí se
misturam tanto a ação criminosa de traficantes quanto a postura truculenta da
polícia do Rio de Janeiro.
Seria a favela, como na leitura de Santos (1994), um espaço opaco
ou luminoso? A favela pode ser um exemplo clássico de resistência às novas
imposições racionais, o que Milton Santos (Op. Cit.) chama de espaços opacos, em
contraste com os espaços luminosos, aqueles dotados de racionalidade e voltados
para a modernidade. Na verdade, a grande crítica do autor sugere que “os espaços
luminosos da metrópole, espaços de racionalidade, é que são, de fato, os espaços
opacos” (Op. Cit., p. 85). Então, há de se supor que a Rocinha tenha construído
a sua própria luminosidade, considerando a necessidade de seus próprios
moradores.
De fato, a inserção desta comunidade num contexto menos negativo
por parte da sociedade como um todo incide numa melhor conectividade entre a
favela e o asfalto. Se grande parte de seus moradores constitui mão-de-obra
não-qualificada para o setor de serviços, formal ou não-formal, fundamentalmente
nos bairros da orla sul carioca, a paisagem contrastante com a de cartão-postal
deste mesmo parcel da cidade, as relações belicosas que envolvem o tráfico de
drogas e a própria ação da polícia negativisam a percepção da comunidade frente
à opinião pública.
A atividade turística incipiente iniciada na Favela da Rocinha nos
anos 90 por Marcelo Armstrong, que fundaria a empresa “Favela Tour”, pode
representar uma das ações desencadeadas no seio da própria comunidade como uma
dessas ações de resgate da própria auto-estima dos habitantes locais e da
ocorrência de uma “novo olhar” para o local por parte daqueles que não o
habitam.
Daí a interação com a visão de Mello (Op. Cit.) sobre os
estilhaços e explosões de centralidades na ótica humanística: “por explosões
entendemos as diversas centralidades há muito tempo vivenciadas e consagradas,
enquanto os estilhaços são relativos àquelas centralidades recentes,
esporádicas, embrionárias [...]” (Op. Cit., p. 25). Entende-se, que no contexto
de uma lógica clássica do turismo a favela não poderia corresponder a um lugar
turístico, mas assim acabou por se conceber, na medida em que a própria
atividade turística começou a reivindicar, por parte daqueles que a consomem, um
novo leque de opções do fazer turístico.
Talvez, dentro da concepção de Mello (Op. Cit.), o turismo em
favelas, como a Rocinha, represente estilhaços de centralidades, sendo estas
especificamente culturais, embrionárias ou esporádicas. Nas tipificações mais
correntes do turismo, como em Ribeiro (2002), o turismo cultural já é
contemplado, mas esta qualificação do mesmo em favelas supõe-se nova. Em Macleod
(1998) observa-se uma discussão com respeito a uma perspectiva cultural do
turismo que foge ao consumo de massa, com uma integração participante do turista
no local visitado – é o que o autor entende como turismo alternativo ou o que
pode ser contemplado, por conseguinte, como turismo cultural alternativo. Este
seria, então, um novo olhar do turista sobre a metrópole carioca, cujo dado
social alarmante na mídia, que remete à problemática das favelas, acaba
projetando uma nova forma de fazer turismo, interagindo com a realidade
favela.
Este é de fato um turismo embrionário onde atuam empresas como a
“Favela-Tour” e a “Jeep-Tour”, mas que também contempla lideranças comunitárias
ou moradores locais que, imbuídos de um espírito de promoção social de suas
comunidades acabam promovendo a atividade turística como forma de alcançar tal
objetivo.
Na Rocinha, a visita promovida pela empresa Favela-Tour tenta
tocar o visitante pela emoção ao mostrar ações positivas, sejam promovidas pelo
poder público ou pela própria comunidade. Acoplado a isso, a impactante vista de
confronto entre a paisagem natural reconhecida como “maravilhosa” da orla sul do
Rio de Janeiro com os paredões dos Morros Dois Irmãos e Cochrane cobertos pela
mancha de alvenaria da favela atuam de maneira decisiva no diagnóstico de um
turismo para além do convencional.
Este turismo embrionário na Rocinha tenderia a ser esporádico, o
que caracterizaria a lógica dos estilhaços de centralidades propostos por Mello
(Op. Cit.), visto não se apresentarem ainda como centralidades mais efetivas.
Por outro lado, no decorrer dos últimos anos, observa-se uma diversificação de
ações similares em outros morros da zona sul carioca, também estes
caracterizados como favelas, onde atividades similares principiam também aí um
novo fazer turístico. Esta nova gama de opções turísticas nas favelas cariocas
traria então a consideração de explosões de centralidades – e não mais de
estilhaços de centralidades –, no caso como sendo contrastantes ou até mesmo
marginais.
No Morro do Vidigal,
o empresário alemão Rolf Glaser comprou mais de cinqüenta barracos, com a
anuência das lideranças locais, para empreender a construção de um resort de
luxo, além de outras típicas atividades relacionadas á exploração turística do
lugar – o empresário, conforme indica a Revista da Semana em 24 de março de
2009, “comprou a vista do Vidigal”, para fazer uso desta enquanto um grande
empreendimento turístico.
Já nas comunidades do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, o professor
Daniel Plá, a partir de uma iniciativa da Associação de Moradores local
principiou, como atesta a edição do Jornal do Brasil de 16 de maio de 2009, um
novo roteiro turístico entre as favelas cariocas. As próprias lideranças locais,
conforme a própria reportagem indica, buscam valorizar a comunidade perante a
sociedade como um todo.
Por fim, há também o exemplo da comunidade Tavares-Bastos, também
na zona sul carioca, no bairro do Catete, onde a recente instalação de um
batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro acabou por facilitar um variado
número de atividades, como filmagens para cinema e televisão, razão maior para
que a empresa “Jeep-Tour” direcionasse para lá o seu roteiro turístico de
visitação às favelas cariocas.
4.
O Tour Turístico pela
Favela
A proposta de roteiro turístico promovido pela empresa Favela-Tour
na Favela da Rocinha não sofreu grandes mudanças entre os anos de 2001 e 2009. O
roteiro é basicamente o mesmo: tem duração de cerca de três horas entre o
início, que é o embarque de turistas em hotéis da Zona Sul carioca, e o retorno
dos mesmos para os seus respectivos hotéis. O trajeto começa pela Estrada da Gávea,
no bairro de mesmo nome, sendo uma das possibilidades de acesso à comunidade e
termina no Largo do Boiadeiro, próximo à Auto Estrada Lagoa-Barra, perto do
bairro de São Conrado. O tour, para além da visitação à favela da Rocinha,
inclui uma parada em outra comunidade próxima, a Favela de Vila Canoas, onde a
empresa Favela-Tour tem co-participação em um projeto social denominado Escola
Para Ti[2].
A esmagadora maioria dos participantes do tour é constituída por
estrangeiros e, em acordo com o guia da última incursão à favela, muitos são
jovens e albergados. Em 2001, num veículo maior, doze eram os integrantes do
roteiro e apenas o pesquisador, por razões óbvias, era brasileiro. Já em 2009, o
veículo comportava oito pessoas, sendo dois pesquisadores. Havia dois
canadenses, um inglês, uma escocesa, um australiano e sua acompanhante, uma
brasileira natural do Rio Grande do Sul, estando esta também em viagem turística
pelo Rio de Janeiro.
O roteiro, como dito antes, em quase nada mudou a sua
operacionalização. Neste último, uma parada na Estrada da Gávea, no início do
trajeto, possibilita fotos da orla sul carioca, incluindo a Lagoa Rodrigo de
Freitas. Há também nesse ponto venda de artesanato produzido na comunidade numa
espécie de mini-feira montada junto à calçada da rua onde estaciona o transporte
dos turistas. O tour segue pelas sinuosas curvas da Estrada da Gávea tomadas
pela favela, apenas com contado visual da comunidade acompanhado das devidas
explicações fornecidas pelo guia turístico. Num determinado trecho o veículo
pára e os turistas são convidados a acessar a laje de umas das construções
locais para nova sessão de fotos e explicações do guia. Neste ponto, há um
choque de informações visuais, pois de um lado pode-se ver nitidamente a já
internacionalmente reconhecida paisagem da orla sul da metrópole carioca e, do
outro, o contraste da ocupação das encostas pela favela, notadamente no Morro do
Cochrane, onde se avista a parte mais pobre da favela, a comunidade conhecida
como Roupa Suja[3].
O roteiro segue novamente pela estrada da Gávea e nova parada será
feita para que os turistas façam uma caminhada através da Rua Caminho do
Boiadeiro, onde uma feira livre está armada – o turbilhão de pessoas entremeadas
a barracas na estreita rua aliada à própria arquitetura típica da favela impõe
aos turistas (e ao próprio pesquisador) a sensação do típico outsider, que não
se enquadra ao ritmo das pessoas nem tão pouco à ordem local. Este caminho leva
ao Largo do Boiadeiro, onde novamente o grupo embarca no veículo já previamente
estacionado e segue para o fim da jornada na Comunidade de Vila Canoas, onde,
para além da visita ao local, os turistas são apresentados ao projeto social
Para Ti, como já mencionado antes.
Como da vez anterior, percebe-se que o enfoque da Favela-Tour é
voltado para a dimensão social do que é apontado como o problema da favelização
no Rio de Janeiro. Muitas são as intervenções do guia, sempre se utilizando do
idioma inglês, no sentido de demonstrar o quão problemática é a vida dos
habitantes da favela, mas ao mesmo tempo oferecendo uma visão contemporizadora
da presença do Estado em projetos sociais como o Favela Bairro – da antiga
administração municipal – e o PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, do
atual governo federal brasileiro.
Também se percebe uma preocupação com a valorização do indivíduo
estabelecido na favela – ressalta-se o fato de que a grande maioria dos
moradores é constituída de trabalhadores e que as atividades ilegais, mormente
as ligadas ao tráfico de drogas, correspondem a um número mínimo de moradores.
Na verdade, reforça-se a idéia de que os moradores locais são tão vítimas dos
traficantes quanto quaisquer outros, até porque é feita a devida interação com a
presença da polícia na favela apenas como força bruta no combate aos marginais
ligados às drogas, mas com reflexos sempre negativos com relação aos demais
moradores. De fato, como já observado no primeiro trabalho de campo, a presença
da polícia na comunidade é tida como negativa – é a típica representação do
poder público pouco presente em intervenções sociais, mas ativo opressor dos
habitantes locais que convivem junto ao tráfico de drogas.
A própria atividade turística, para além dos benefícios diretos
que carrega – a valorização da imagem da favela e a geração de renda, com os
pequenos negócios ligados à atividade, como o artesanato local – também é
responsável por minimizar a presença truculenta da polícia, na medida em que o
fluxo contínuo de turistas inibe tal ação. Por outro lado, é importante
ressaltar que houve mudanças no que diz respeito à dinâmica do tráfico entre os
dois períodos que separam os trabalhos de campo: no primeiro, o embate entre o
tráfico e a polícia, em acordo com a opinião do próprio guia da empresa, era
minimizado pela presença dos turistas; já no segundo, um elemento novo se
adicionou: a luta do controle por facções criminosas rivais trouxe mais
instabilidade para a comunidade e maior intervenção
policial.
Já para os turistas presentes à incursão turística na favela, a
curiosidade move o desejo de conhecer a favela e em ambos os trabalhos de campo
isto pôde ser constatado. Na verdade, há uma tentativa de buscar acesso a um Rio
de Janeiro real que está presente no caminho de quase todos os acessos
turísticos da cidade: a favela. As
perguntas que são direcionadas ao guia contemplam também a preocupação social,
como a forma de vida dos moradores, as condições gerais das favelas e as
intervenções do poder público. Trata-se, de fato, de um típico turismo cultural
alternativo, onde a preocupação social é estimulada pela empresa que presta o
serviço aos turistas, até porque esta mesma idéia move os turistas na visitação
à favela.
Por último, se a partir do turismo tem-se aqui uma compreensão de
um fenômeno social – que é a vida na favela – tão pouco digerível pela classe
média carioca e brasileira de um modo geral, não é, então, de se espantar a
praticamente nula participação de turistas nacionais num evento dessa magnitude.
Pode-se arriscar dizer que a sociedade tem, de forma pejorativa e
preconceituosa, uma visão definida sobre a favela. Talvez anos de autoritarismo
e a sistemática remoção de favelados para conjuntos habitacionais indefectíveis
e longínquos, promovida no passado, tenham deixado na sociedade a sensação de
que mais valeria a pena remover a poeira, mesmo que para “debaixo do tapete”, do
que atacar as causas da sujeira. Ignorar favelas e a sua própria dinâmica tem
sido a saída mais fácil; talvez por isso, a percepção de sua situação frente à
sociedade tenha feito o favelado buscar suas estratégias de sobrevivência e
organizar-se de forma a tratar os problemas do seu cotidiano, com um mínimo de
participação do Estado ou da iniciativa privada – como mostra esta interação da
comunidade com o turismo através da Favela-Tour.
Arremates Finais
À guisa de uma consideração final, entende-se que o turismo
cultural alternativo desencadeado a partir da Favela da Rocinha, o qual se
disseminou para outras comunidades da orla sul carioca, pode configurar
centralidades turísticas, na medida em que envolve apelos atrativos de razão
emocional, entre os turistas, e estrutura de serviços – empresas de turismo
prestadoras de serviços, artesanato local, atividades de serviços locais, como
bares e restaurantes. Não deve mais ser considerado este turismo como
embrionário, na medida em que ganhou importância como roteiro turístico carioca
e, como já dito, se disseminou por outras comunidades. Na verdade, esta
abrangência maior possibilita configurar centralidades voltadas para as
atividades turísticas mais efetivas inseridas no contexto de abrangência do
turismo como um todo na cidade do Rio de Janeiro.
Por outro lado, a inserção desse tipo de atividade turística em
comunidades pouco afeitas em outros vínculos convencionais com a cidade gera a
oportunidade única de valorizar os habitantes locais e resgatar sua auto-estima.
Também permite um novo olhar da população carioca, de um modo geral, sobre a
favela – o turismo realizado na favela agregou novos valores e novas idéias
sobre a realidade local, pois trouxe o turista, que dissemina informações e é
bem reconhecido pela sociedade. A expansão da atividade turística em outras
favelas cariocas pode vir a favorecer, e muito, uma nova dinâmica de interação
dessas comunidades com a cidade como um todo.
Notas
[1] O criador do roteiro do Favela-Tour, Marcelo Armstrong, teria iniciado o
mesmo a partir de solicitações de participantes estrangeiros presentes à Rio-92
– A II Conferência Mundial do Meio-Ambiente – e hospedados no Hotel
Intercontinental localizado em São Conrado, bairro da zona sul
carioca e próximo à comunidade da
Rocinha.
[2] O projeto de cunho social desenvolvido na comunidade de Vila Canoas
envolve atividades recreativas e instrução, como aulas de computação. Segundo a
empresa Favela-Tour, a escolha por participar de um projeto social nesta
comunidade em detrimento da Rocinha, foco maior do tour turístico da empresa, se
deve a uma melhor organização por parte das lideranças comunitárias
em Vila
Canoas.
[3] Por informação do próprio guia da excursão, sabe-se que esta área é alvo
de discriminação por parte dos
próprios moradores da comunidade como um todo, na medida em que representa a
área mais carente da Favela da
Rocinha.
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