NCeHu
570/09
XI
ENCONTRO INTERNACIONAL HUMBOLDT
O autismo do marxismo europeu
Luciano Vasapollo
(entrevista) [*]
29/11/2004
O Congresso "Marx Internacional
IV", organizado pela Actuel Marx , decorreu entre
29 de Setembro e 2 de Outubro último. Nas páginas desta prestigiosa
revista apresentou-se nestes últimos anos o debate e as contribuições
marxistas europeias. O facto meritório de não haver dado o braço a torcer
durante a caça às bruxas desencadeada nos anos noventa não impediu que a
reflexão marxista europeia tornasse a cair naquele defeito perfeitamente
identificado, já há mais de 30 anos, por Perry Anderson em "O debate no
marxismo ocidental". Anderson criticava os marxistas europeus por haverem
abandonado a sua relação com o conflito de classes e os movimentos reais e
haverem-se refugiado nos aspectos superestruturais e académicos. A
definição de Katedhersocialisten não é um anátema e sim algo mais
que uma crítica.
Nesta entrevista, Luciano Vasapollo, estudioso
marxistas italiano, autor de numerosos trabalhos traduzidos em várias
línguas, tem contribuído para reabrir nestes últimos anos um debate sobre
questões decisivas como a teoria marxista do valor, o imperialismo ou a
centralidade do conflito entre capital e trabalho. Vasapollo participou no
congresso de Paris com a apresentação de comunicações em várias secções e
numa das sessões plenárias finais. Em mais de uma ocasião enfrentou as
demais escolas do marxismo ocidental. Nesta entrevista explica como foram
as discussões.
Qual era o
programa de debates do Congresso marxista de Paris? Houve uma confrontação
entre as diversas tendências? LV: O tema do encontro era
"Guerra imperial, guerra social" e houve doze sessões científicas, dentre
as quais economia, direito, ecologia, género, história, filosofia e
socialismo. O enfrentamento deve lugar em grupos fechados entre as
diversas tendências e provocou um debate mais de carácter académico.
Mas quais são, em traços largos, as tendências
marxistas actuais? LV: Poderemos definir uma primeira
como académica, no sentido estrito da palavra: não se coloca o problema da
dialéctica com os movimentos reais e sim o de uma hipotética
'originalidade cultural'. Depois há outras duas tendências que se
exprimem numa linguagem mais radical, refiro-me aos que compartilham as
reflexões de Toni Negri e aos estudiosos mais próximos à IV Internacional.
Utilizam uma linguagem radical mas, em muitos aspectos, coincidem com a
primeira quanto à distância a que se encontram dos movimentos sociais
reais. Finalmente, existe uma quarta, na qual me incluo, que poderemos
definir como de 'estudiosos militantes' que têm uma relação mais estreita
com os movimentos sociais, sindicais, etc e que se consolidou sobretudo na
América Latina.
Após os anos do silêncio e da
resistência cultura -- os anos noventa -- em que situação se encontra, na
sua opinião, o debate e a reflexão marxista na Europa?
LV: Com a experiência de vários encontros internacionais
devo admitir que a nossa posição, que após aqueles anos encontrava-se
marginalizada a nível político e cultural, actualmente está a encontrar
maiores oportunidades para o debate. Nestes anos reabriu-se um debate
amplo e também duro sobre a actualidade da teoria do valor de Marx. A
princípio o debate surgiu no âmbito marxista em que se desenvolveram
trabalhos que poderemos chamar de 'sraffianos'. Eles afirmavam desejar
manter uma visão marxista mas, de facto, haviam-no esvaziado de conteúdo
mediante argumentos de escassa relevância no plano científico. Em alguns
casos estas posições chegaram ao keynesianismo, ainda que com uma
linguagem mais radical. Os próprios keynesianos estão divididos entre
keynesianos 'de esquerda' e 'neokeynesianos', como posições diversas.
Também há outros que se aproximaram do que chamamos pós-marxismo e que são
claros partidários do abandono do marxismo, exceptuando alguns textos
anteriores a O Capital, como o Grundrisse. Há dois anos
organizámos um congresso internacional da Universidade de Roma onde, em
colaboração com Carchedi, Freeman, Kliman e Giusani, apresentámos uma
reflexão colectiva que reafirmava a validade da colocação científica
marxiana sobre o valor, enfatizando que a transformação dos valores em
preços era um falso problema. Durante três dias debatemos intensa e
duramente entre as diversas tendências, incluídas algumas diferentes da
nossa (Mogiovi, Foley, Screpanti e outros). Mas o verdadeiro centro da
divergência, na minha opinião, continua a ser a dialéctica entre a
reflexão teórica e o movimento real.
Houve ausências
significativas neste congresso marxista de Paris? LV: Por
paradoxal que possa parecer, houve uma menor presença das áreas que estão
mais implicadas no conflito de classe e nos agitados processos de mudança
como na América Latina, Ásia, Europa do Leste ou, por exemplo, na
Alemanha. Escassíssimos os estudiosos gregos. Há, claramente, um risco de
eurocentrismo.
Como explica que o nexo entre teoria e
prática, entre a reflexão marxista e a realidade do conflito de classes,
se tenha 'amortecido' assim na Europa? LV: Há que levar
em conta que os grandes partidos comunistas desapareceram na Espanha,
Itália e França. Neste, o PCF está a voltar-se antes para a
socialdemocracia apesar de haver resistências internas. Na Espanha, a
experiência da Izquierda Unida está em crise e na Itália temos dois
partidos comunistas empatados com um quarto do peso político e eleitoral
do velho PCI. Mas na Itália, a inflexão de Bertinotti, que alguns definem
como uma nova Bolognina, podemos dizer que foi provocada e que se inscreve
precisamente neste enfraquecimento do carácter revolucionários da reflexão
marxista na Europa. Não só é o problema do eclectismo como também, por
exemplo, da renúncia a questionar os direitos de propriedade ou a
eliminação da categoria imperialismo. Estão aplainando o caminho para o
keynesianismo, inclusive o radical, como quadro teórico da acção política
dos partidos que ainda se chamam comunistas.
Perry
Anderson afirmava, já há muitos anos, que o marxismo ocidental havia
perdido, de certo modo, a sua carga revolucionária ao passo que no
Terceiro Mundo esta aumentava. O que há de certo nesta afirmação?
LV: A tese de Perry Anderson mantem a sua actualidade
trinta anos depois. O problema não é o Terceiro Mundo e sim a relação
entre objectividade e subjectividade que se manifesta concretamente nas
situações em que o conflito de classes é mais agudo. Tão pouco é um
problema de linguagem. Também se recorre à linguagem e a categorias
radicais entre os marxistas europeus mas, frequentemente, põem no mesmo
plano terrorismo e resistência. Isso é a demonização da violência
independentemente dos contextos no quais surge o conflito, aceitam os
anátemas e as chaves de leitura imperialistas sobre os 'Estados canalhas'.
Tentam constantemente condenar o século XX à fogueira, mas recorre-se
sempre às categorias do século XX para definir a realidade ou criticar as
diversas posições. Na Europa deu-se o comunismo como fenómeno do século XX
e, no melhor dos casos, permanece como horizonte longínquo da Humanidade.
É uma posição determinista que espera a queda do capitalismo devido às
suas contradições implícitas, omitindo o dado decisivo da subjectividade
que se move nessa direcção. Por isso, à espera de que isto aconteça,
retiram-se por trás de um programa substancialmente reformista apesar da
linguagem algo mais radical. Em outras palavras do mundo a luta pela
transformação social coloca-se como alternativa de sobrevivência para uma
parte significativa da Humanidade, na América Latina por exemplo.
Consta que tu e outros estudiosos marxistas presentes
no congresso tiveram de brigar muito para debater e fazer debater questões
como o exemplo de Cuba e dos movimentos na América Latina. Como foi isso?
LV: É uma consequência directa do que dissemos antes.
Quando se torna necessário transferir os problemas da dimensão teórica
para a prática, muitos marxistas europeus ficam histéricos. Isto se
explica porque não compreendem a importância da Venezuela de Chavez, da
resistência de Cuba ao projecto hegemónico estadunidense na América
Latina, contrapondo a experiência de Lula às outras experiências
importantes naquela área do mundo, ou acusando os movimentos sociais
latino-americanos de não compreenderem o processo democrático. Os dois
debates que organizámos sobre Cuba e a América Latina tiveram como
protagonistas alguns estudiosos 'militantes', como Remy Herrera ou Al
Campbell, mas sobretudo latino-americanos como Paulo Nakatami, Leda
Paulani, Flavio Bezerra de Farias, Isabel Monal, Elena Alvarez e outros,
os quais tiveram uma função decisiva de orientação da discussão sobre os
problemas conexos ao conflito de classes e à resistência global.
Na sessão plenária, em que participaste junto com
George Labica, Samir Amin e Isabel Monal, tu e Samir Amin discutiram
acerca do papel da Europa. Quais foram os pontos de divergência?
LV: Para começar quero dizer que na minha opinião Samir
Amin é um estudioso marxista honesto e que o tenho em grande estima. A
discussão foi sobre as diferentes análises que fazemos sobre o
imperialismo europeu e o estadunidense. Numerosos estudiosos e camaradas
consideram a Europa como uma espécie de aliado táctico frente ao inimigo
principal representado pelos Estados Unidos. Esta posição tem uma
legitimidade própria mas leva a subestimar o processo de constituição do
polo imperialista europeu. Muitos pensam que a Europa do século XXI é a
mesma do século passado, quando existia o enfrentamento EUA-URSS. Creio
poder afirmar que não é assim e que esse processo que esteve sujeito aos
Estados Unidos durante mais de meio século já não está e não o estará nem
no plano político nem no militar, dois aspectos em que o polo imperialista
europeu foram débil. É um debate autêntico que exige um aprofundamento
rigoroso. Nossa Rede contribuiu com diversos trabalhos como 'A doce
máscara da Europa', 'O plano inclinado do capital', ou 'Eurobang'. É
material para alimentar esta discussão, e é de agradecer que estudiosos
como Samir Amin, que não compartilham necessariamente os nossos pontos de
vista, se debrucem a debater acerca disto.
A tese da
competição global que propuseste, tu e outros marxistas, reformula,
actualizando-a, uma análise do imperialismo e da competição
inter-imperialista que foi distorcida ou negada no debate marxista
contemporâneo. Em que se diferencia a vossa tese de, por exemplo a do
'Império' ou a da globalização neoliberal. LV: Dedicámos
um livro para a resposta a essas questões, com James Petras, Mauro Casadio
e eu próprio, e está a ser lançado outro intitulado "Competição global",
no qual há uma colaboração de Henry Veltmeyer. O 'Império' supõe,
entre outras coisas, que no mundo contemporâneo o conflito surge entre um
capital colectivo e as multidões, que os estados nação perderam sua função
estratégia e que a Europa é o 'topo' (lugar) democrático para a
transformação social. Nós, pelo contrário, pensamos que a centralidade do
conflito situa-se hoje, mais do que nunca, entre o capital e o trabalho, e
que sectores sociais bem definidos desejam recompor seus interesses dentro
de um projecto de mudança radical das relações sociais e das de
propriedade. A tese da competição global afirma que o Estado-nação não foi
superado e sim subsumido no interior dos pólos imperialistas
supranacionais que exercem suas funções e, sobretudo, que já não nos
encontramos perante a presença de um capital colectivo, como pode ter sido
na época da globalização e sim de pólos imperialistas que competem entre
si. Para combater os mecanismos regressivos desta renovada competição
inter-imperialista são decisivos os movimentos de resistência popular. À
competição mundial capitalista é necessário opor hoje uma resistência
global que se desenvolveu sobretudo na América Latina e na Ásia,
resistência que pode influir na prática concreta, não tanto sobre o
terceiromundismo romântico como sobre a luta política daqui, na Europa.
Devemos salvaguardar a independência destes movimentos de resistência
sabendo congregar suas peculiaridades e os elementos de recomposição mais
avançados no terreno anti-imperialismo e da superação do capitalismo.
[*] Professor na Universidade La Sapienza, Roma.
O original encontra-se em http://www.nodo50.org/cgi-bin/mailman/listinfo/diariodeurgencia
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