NCeHu 128/09
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"Resgatar o capitalismo dos capitalistas e de sua ideologia
falsária"
A perspectiva de uma fragmentação da economia global em
estruturas hegemônicas regionais, lutando entre si, deveria despertar os
dirigentes políticos, levá-los a deixar de dizer banalidades sobre restaurar a
confiança e a fazer o que precisa ser feito para resgatar o capitalismo dos
capitalistas e de sua falsária ideologia neoliberal. E sim, isso significa
socialismo, nacionalizações, diretrizes estatais robustas, força de colaborações
internacionais e uma nova arquitetura financeira internacional. A análise é de
David Harvey.
David Harvey - Sin Permiso
www.cartamaior.com.br
Não há muitas vantagens em ver a crise atual como uma erupção
superficial gerada por derivas tectônicas profundas no dispositivo
espaço-temporal do desenvolvimento capitalista. As placas tectônicas agora estão
acelerando seu deslocamento, e quase com toda segurança a probabilidade de que
crises do tipo da atual, que vem ocorrendo mais ou menos desde 1980 se
incrementará, tornando-se mais frequentes e mais violentas. O modo, a forma, a
espacialidade e o momento dessas erupções superficiais tornaram praticamente
impossíveis de prever, mas se pode afirmar quase com certeza que vão se repetir
com frequência e profundidade crescentes. Desse modo, há que se situar os
acontecimentos de 2008 no contexto de uma agenda de maior densidade. Que essas
tensões sejam internas à dinâmica capitalista (sem excluir acontecimentos
danosos aparentemente externos, como uma pandemia catastrófica), é o melhor
argumento, segundo disse Marx, “para que o capitalismo desapareça e se abra
caminho para algum modo de produção alternativo e mais racional”.
Começo com essa conclusão porque permanece me parecendo vital, para não
dizer dramático, como venho dizendo durante anos em meus trabalhos, que a
incapacidade para entender a dinâmica geográfica do capitalismo – ou ainda a
consideração da dimensão geográfica como algo em certo sentido contingente ou
epifenomênico – importa tanto como perder o fio condutor que permite compreender
o desenvolvimento geográfico desigual do capitalismo e perder de vista
possibilidades de construção de alternativas radicais. Mas isso levanta uma
dificuldade aguda que se acrescenta à análise, porque a tarefa de visar a
inferir princípios universais com respeito ao papel da produção de espaços,
deslocamentos e contextos ambientais na dinâmica do capitalismo a partir de um
oceano de particularidades geográficas, amiúde voláteis, nos enfrenta
constantemente. Sendo assim, é o caso de perguntar “como integrar a inteligência
dos dados geográficos em nossas teorias da mudança evolutiva? Observemos mais
detidamente as derivas tectônicas.
Como será o mundo em
2025?
Em novembro de 2008, pouco depois da eleição de um novo presidente,
o Conselho de Inteligência Nacional dos EUA (NCIS, na sua sigla em inglês)
publicou suas estimativas délficas sobre como seria o mundo em 2025. E pela
primeira vez um organismo norte-americano quase oficial preveria que em 2025 os
EUA, ainda que mantivesse seu papel de ator poderoso, senão de mais poderoso da
política mundial, já não seria a potência dominante. O mundo seria multipolar e
menos monocêntrico, e o poder dos atores não-estatais cresceria. O informe
admitia que a hegemonia dos EUA tinha tido suas idas e vindas no passado, mas
agora seu predomínio econômico, político e até militar está se desvanecendo de
maneira sistemática.
Sobretudo (e vale a pena notar que o informe já
estava pronto antes da implosão dos sistemas financeiro norte-americano e
britânico), “a deriva sem precedentes que, no que concerne à riqueza e ao poder
econômico relativo, observamos agora em direção Oeste-Leste seguirá seu
curso”.
Essa “deriva sem precedentes” inverteu a drenagem de riqueza que
fluía inveteradamente do leste, do sudeste e sul da Ásia até a Europa e a
América do Norte: uma drenagem que começou no século XVIII – e, desde que se
chegou a perceber, lamenta-o o próprio Adam Smith em seu "A Riqueza das Nações"
-, mas que se acelerou implacavelmente durante o século XIX. O auge do Japão na
década de 60 do século XX, seguido da Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong
Kong nos 70, e logo o rápido crescimento da China depois de 1980 (acompanhado,
ato contínuo, do surgimento da industrialização na Indonésia, na Índia, no
Vietnã, na Tailândia e na Malásia), alteraram o centro de gravidade do
desenvolvimento capitalista, ainda que não sem incidentes (a crise financeira do
leste e sudeste asiáticos em 1997-98 viu, rápida mas não abundantemente, mais
uma vez fluir a riqueza até Wall Street e aos bancos europeus e japoneses).
O deslocamento espacial da hegemonia econômica
A hegemonia
econômica parece estar deslocando-se em direção a uma constelação de potências
no leste asiático, e se as crises, como se tem argumentado, são momentos de
reconfiguração radical do desenvolvimento capitalista, então o fato de que os
EUA estejam em vias de financiar com enormes déficits a saída de suas
dificuldades financeiras e o fato de que os déficits estejam sendo em grande
medida cobertos por todos os países com excedentes poupados – Japão, China,
Coréia do Sul, Taiwan e os Estados do Golfo – sugerem que estamos às portas de
uma deriva desse tipo.
Já ocorreram derivas dessa natureza na grande
história do capitalismo. Na conscienciosa revisão que Giovani Arrighi faz dessa
deriva no seu livro "O Longo Século XX" podemos ver como a hegemonia se desloca
desde as cidades-estado de Gênova e Veneza no século XVI a Amsterdã e Países
Baixos no XVII, para concentrar-se na Grã Bretanha a partir do século XVIII,
antes de que os EUA tomassem o controle depois de 1945. Arrighi destaca vários
traços comuns a todas essas transições pertinentes a nossa análise.
Cada
deriva, observa Arrighi, deu-se na esteira de uma rotunda fase de
financeirização (cita aqui com aprovação a máxima do historiador Braudel,
segundo a qual a financeirização anuncia o outono de alguma configuração
hegemônica). Mas cada deriva traz também consigo uma mudança radical de escala,
desde as pequenas cidades-estado iniciais até a economia de proporções
continentais dos EUA na segunda metade do século XX. Essa mudança de escala
adquire sentido, tendo em conta a regra diretriz capitalista da acumulação sem
trégua e do crescimento composto de ao menos um sempiterno 3%.
Porém, as
derivas econômicas, sustenta Arrighi, não estão determinadas na partida.
Dependem da aparição de alguma potência economicamente capaz e política e
militarmente disposta a desempenhar o papel de hegemon global (com as
vantagens e desvantagens que isso traz consigo).
A renúncia dos EUA em
assumir esse papel antes da Segunda Guerra Mundial significou um interregno de
tensões multipolares que propiciou a deriva bélica (a Grã Bretanha já não estava
em condições de afirmar seu anterior papel hegemônico). Muito depende também de
como se comporte o antigo hegemon frente à diminuição de seu papel
tradicional. Pode passar à história ou de maneira pacífica ou beligerante. Visto
assim, mesmo se os EUA seguem mantendo um poder militar avassalador
(particularmente, no espaço exterior) num contexto de declive de seu poder
econômico e financeiro e de crescente míngua de sua autoridade moral e cultural
criam-se cenários inquietantes para qualquer transição vindoura. Ademais, não é
óbvio que o principal candidato a substituir os EUA, a China, tenha capacidade
para ou vontade de afiançar-se em algum papel hegemônico, pois, ainda que sua
população seja já bastante grande para arcar com os requisitos da mudança de
escala, nem sua economia nem sua autoridade política (nem sequer vontade
política) apontam para uma ascensão fácil ao papel de hegemon
global. Dadas as divisões nacionalistas existentes, a idéia de que alguma
associação entre as potências do leste asiático poderia cumprir a tarefa
torna-se fartamente improvável. E o mesmo ocorre no caso de uma União Européia
fragmentada e fraturada ou nas chamadas potências do BRIC (Brasil, Rússia, Índia
e China). Razão pela qual resulta plausível a predição de que estamos diante de
um novo interregno multipolar de interesses encontrados e em conflito.
Derivas Tectônicas
Porém, a deriva tectônica que está deixando
o predomínio e a hegemonia norte-americana dos últimos anos para trás é cada vez
mais visível. A tese de uma excessiva financeirização somada à tese da “dívida
como principal sinal da hegemonia de uma potência mundial” encontrou um eco
popular nos escritos de Kevin Phillips. As tentativas agora em curso de
reconstruir o predomínio dos EUA mediante reformas na arquitetura do vínculo
entre as finanças nacionais e globais parece que não está funcionando. Ao mesmo
tempo, as exclusões impostas às tentativas da maior parte do resto do mundo de
reconfigurar essa arquitetura provocarão com quase total segurança fortes
tensões, quando não conflitos econômicos abertos.
Porém, derivas
tectônicas desse tipo não se produzem magicamente. Ainda que a geografia
histórica de uma deriva de hegemonia, segundo a descreve Arrighi, manifeste uma
clara pauta, e ainda que a história tenha deixado claro que essas derivas vêm
sempre precedidas de períodos de financeirização, Arrighi não oferece uma
análise profunda dos processos geradores dessas derivas. É verdade que menciona
a “acumulação sem trégua”, e por conseguinte, a síndrome do crescimento (a regra
de 3% do crescimento composto) como elementos críticos explicativos da deriva.
Isso implica que a hegemonia se desloca com o curso do tempo, de entidades
políticas pequenas (isto é, Veneza) a outras maiores (por exemplo, os EUA).
Também argüi que a hegemonia tem que radicar naquela entidade política
que produz o grosso do excedente (ou para a qual flui o grosso do excedente em
forma de tributos ou exações imperialistas). De um produto global em torno de 45
trilhões de dólares em 2005, os EUA participam com 15 trilhões, o que o
converte, por assim dizer, no principal acionista que domina e controla o
capitalismo global, com capacidade para ditar (como é o caso de fazer em seu
papel de acionista em chefe nas instituições internacionais como o Banco Mundial
e o FMI) as políticas globais. O informe do NCIS baseia parte de suas previsões
na perda do predomínio paralela à manutenção de uma posição robusta na minguante
participação no produto global dos EUA em relação ao resto do mundo, em geral e
a China, em particular.
Contudo, como o próprio Arrighi assinala, o curso
político dessa deriva está muito longe de ser claro. A aposta dos EUA pela
hegemonia global sob Woodrow Wilson durante e imediatamente depois da Primeira
Guerra Mundial viu-se obstaculizada pelas preferências isolacionistas
prevalecentes na tradição política nacional norte-americana (daí o colapso da
Liga das Nações), e só depois da Segunda Guerra Mundial (na qual a população
norte-americana não queria entrar, até que ocorreu Pearl Harbour) os EUA se
liberou ao seu papel de hegemon global mediante uma política exterior
bipartidarista, ancorada nos Acordos de Bretton Woods, que estabeleceram a forma
de organizar a ordem internacional do pós-guerra (frente à Guerra Fria e à
ameaça que um comunismo internacional em plena onda de propagação representava
para o capitalismo). Que os EUA vinham se desenvolvendo inveteradamente como um
estado capaz em princípio de cumprir um papel de hegemon global tornou-se
evidente desde os primeiros dias de sua caminhada como nação.
Estavam
preparados com as doutrinas oportunas, como a do “Destino Manifesto” (expansão
geográfica em escala continental, eventualmente até o Pacífico e o Caribe, antes
de tornar-se global, sem necessidade de conquistas territoriais) ou a Doutrina
Monroe, que exigia das potências européias que deixassem em paz as Américas (a
doutrina foi na realidade formulada pelo ministro britânico do exterior,
Canning, na década de 20 do século XIX, e foi quase imediatamente seguida pelos
EUA). Os EUA possuíam o dinamismo necessário para aspirar a uma crescente
participação no produto global, e estiveram visceralmente comprometidos com uma
ou outra versão do que se pode qualificar de maneira mais feliz como “mercado
encurralado” ou capitalismo “monopólico”, sustentado por uma ideologia
apologética do individualismo mais descarnado.
De modo, pois, que há um
sentido no qual se pode dizer que os EUA vinham se preparando, durante a maior
parte de sua história, para o papel de hegemon global. A única coisa
surpreendente nisso é o tempo que levou para cumprir esse projeto, e que foi a
Segunda Guerra, não a Primeira, a ocasião que os levou finalmente a jogar esse
papel, permitindo que os anos do entre-guerras fossem tempos de multipolaridade
e competição caótica entre ambições imperiais, como as que agora teme vislumbrar
o informe do NCIS para 2025.
As derivas tectônicas agora em curso estão,
contudo, profundamente influenciadas pela desigualdade geográfica radical nas
possibilidades econômicas e políticas de responder à crise atual. Permitam-me
ilustrar o modo como hoje se opera essa desigualdade pela via de um exemplo
bastante plástico.
À medida que a crise iniciada em 2007 foi se
aprofundando, muitos tomaram o partido de uma solução plenamente keynesiana como
a única capaz de tirar o capitalismo global do desastre em que está agora
metido. Com este objetivo, propuseram-se uma variedade de pacotes de estímulos e
medidas de estabilização bancária. Muitas dessas propostas foram até certo ponto
postas em prática em vários países e de maneiras diferentes, na esperança de
fazer frente às dificuldades crescentes. O espectro de soluções oferecidas
variava imensamente segundo as circunstâncias econômicas e os perfis imperantes
na opinião pública (colocando, por exemplo, a Alemanha frente a França e a Grã
Bretanha na União Européia).
Mas pensemos, por exemplo, nas distintas
possibilidades econômico-políticas abertas aos EUA e para a China e nas
conseqüências potenciais tanto para a deriva da hegemonia como para o modo
possível de resolver a crise.
China, EUA e as soluções
keynesianas
Nos EUA, qualquer tentativa de falar de uma solução
keynesiana adequada tem sido condenada na partida, levantando-se barreiras
econômicas e políticas praticamente impossíveis de derrubar. Para funcionar, uma
solução keynesiana precisaria de financiamento massivo e duradouro, com déficit.
Tem-se dito com razão que o intento de Roosevelt de regressar a um orçamento
equilibrado em 1837-38 é o que voltou a afundar os EUA na depressão e que foi a
Segunda Guerra que salvou a situação, e não o temerário projeto rooseveltiano de
financiamento com déficit que foi o New Deal. Assim, pois, mesmo que as reformas
institucionais e umas políticas mais igualitárias tenham posto os fundamentos da
recuperação que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, o New Deal como tal
fracassou a ponto de resolver a crise nos EUA.
O problema para os EUA em
2008-09 é que parte de uma posição de endividamento crônico com o resto do mundo
(vem tomando empréstimos a um ritmo de mais de 2 milhões de dólares por dia nos
últimos dez ou mais anos), e isso significa uma limitação econômica para as
dimensões do déficit extra que agora pode permitir-se. (O que não foi um
problema sério para Roosevelt, que começou com um orçamento limitado). Há também
uma limitação geopolítica, posto que o financiamento de qualquer déficit extra
depende da disposição de outras potências (principalmente do leste asiático e
dos Estados do Golfo) em emprestar. Tendo em conta ambas as limitações, há que
se tomar por certo que o estímulo econômico factível nos EUA não será nem o
bastante amplo nem o bastante duradouro para subvencionar a tarefa de reabilitar
a economia. Este problema é exacerbado pela relutância ideológica de ambos os
partidos em aceitar os enormes montantes de gasto deficitário requeridos para
sair da crise.
Ironicamente, e ao menos em parte, porque a administração
republicana anterior trabalhou de acordo com o princípio de Dick Cheney, segundo
o qual “Reagan nos ensinou que os déficits não importam”. Como disse Paul
Krugman, o primeiro advogado público de uma solução keynesiana desse contexto,
os 800 bilhões de dólares votados com dentes arreganhados pelo Congresso em
2009, ainda que sejam melhores do que nada, estão muito longe de serem
suficientes. Seria preciso uma cifra da ordem dos 2 trilhões de dólares, uma
quantidade excessiva dado o nível atual do déficit estadunidense. A única opção
econômica possível seria mudar o débil keynesianismo dos gastos militares
excessivos por um keynesianismo muito mais forte, voltado a programas sociais.
Cortar pela metade o orçamento de defesa norte-americano (aproximando-o dos
níveis europeus em termos percentuais ao PIB) poderia resultar tecnicamente
útil. É o caso de dizê-lo: quem quer que proponha coisa semelhante cometerá
suicídio político, dada a posição política mantida pelo Partido Republicano e
por muitos democratas.
A segunda barreira a ser derrubada é mais
puramente política. Para funcionar, o estímulo tem de ser administrado de tal
forma que se assegure seu gasto em bens e em serviços para que a economia
recupere alegria. Isso significa que há que dirigir todas as ajudas a quem
efetivamente delas fará uso e gastará recursos, quer dizer, as classes sociais
mais humildes, porque as classes médias, postas a gastar algo, o mais provável é
que o façam puxando a alça de valores de ativos (comprando casas hipotecadas que
são executadas em leilões, por exemplo), e não comprando mais bens e serviços.
Em todo caso, nos maus tempos muita gente tende a usar as receitas
extraordinárias inopinadamente recebidos para cancelar dívidas ou para poupar
(como ocorreu em muito boa medida com o reembolso de 600 dólares propiciado pela
administração Bush no começo do verão de 2008).
O que parece prudente e
racional desde o ponto de vista do orçamento doméstico se torna danoso para o
conjunto da economia. (Analogamente: os bancos tem procedido racionalmente ao
servirem-se do dinheiro público recebido para enriquecerem ou para comprar
ativos, antes que para emprestá-los). A hostilidade preponderante nos EUA a
“disseminar a riqueza” e a gestionar qualquer ajuda pública que não sejam os
cortes fiscais aos indivíduos vem do núcleo duro da doutrina ideológica
neoliberal (focalizada, mas de modo algum confinada no Partido Republicano),
segundo a qual “os lares sabem mais”. Essas doutrinas chegaram a gozar de ampla
aceitação nos EUA, como se se tratasse de um evangelho, durante trinta anos de
doutrinamento político neoliberal. Segundo se arguiu em outra ocasião, “agora,
somos todos neoliberais”, no mais das vezes sem sabê-lo. Há uma aceitação
tácita, por exemplo, de que a “repressão salarial” - um componente chave do
atual problema – é um “estado normal” das coisas nos EUA. Uma das três patas de
uma solução keynesiana – maior capacidade de negociação dos trabalhadores,
salários em alta e redistribuição favorável para as classes baixas – é
atualmente impossível do ponto de vista político nos EUA. A pura sugestão de que
um programa assim equivalha a “socialismo” faz o establishment político tremer.
Os trabalhadores organizados não são suficientemente fortes (depois de serem
durante trinta anos massacrados pelas forças políticas), e não se vê nenhum
outro movimento social amplo o bastante para pressionar por uma redistribuição a
favor das classes trabalhadoras.
Outro modo de alcançar objetivos
keynesianos é o fornecimento de bens coletivos. Isso, tradicionalmente, tem
implicado investimentos em infraestrutura física e social (os programas WPA
[Works Progress Adminstration] dos anos 30 do século passado foram um
precedente). Disso se segue a tentativa de incluir nos pacotes de estímulo
programas para reconstruir e ampliar infraestruturas públicas de transporte e
comunicações, energia e outras obras públicas em paralelo a um incremento do
gasto em atenção sanitária, educação, serviços municipais, etc. Esses bens
coletivos têm potencial para gerar multiplicadores tanto no emprego como na
demanda efetiva de bens e serviços. Mas o que se presume é que esses bens
entrariam, em dado momento, na categoria de “gastos públicos produtivos” (quer
dizer, que estimulam um crescimento ulterior), não que se convertam numa série
de “elefantes brancos” públicos que, como observou Keynes em seus dias, carecem
de outra utilidade que não aquela de fazer as pessoas cavarem buracos para
fechá-los logo em seguida.
Em outras palavras, uma estratégia de
investimentos em infraestrutura tem de orientar-se para a sistemática
recuperação do crescimento de 3% através do metódico redesenho de nossa
infraestrutura e dos nossos modos de vida urbanos. Isso não pode funcionar sem
uma planificação estatal refinada, aliada a uma base produtiva já existente que
possa aproveitar-se das novas infraestruturas. Também aqui, o processo dilatado
de desindustrialização experimentado pelos EUA nas últimas décadas, assim como a
intensa oposição ideológica à planificação estatal (elementos esses incorporados
por Roosevelt ao New Deal, e que persistiram até os anos 60, para serem
abandonados quando do assalto neoliberal dos 80 a esse particular exercício de
poder do Estado) e a óbvia preferência pelos cortes fiscais frente às
transformações públicas das infraestruturas, torna impossível nos EUA a operação
de uma solução permanente.
Na China, por outro lado, dão-se realmente
tanto as condições políticas como as econômicas para uma solução plenamente
keynesiana, e há ali signos transbordantes de que essa será provavelmente a via
a ser seguida. Para começar, a China possui uma grande reserva de excedente
estrangeiro em dinheiro e isso torna mais fácil o financiamento da dívida
partindo dessa base do que de um dos gastos da dívida já acumulada, como no caso
dos EUA. Vale à pena notar também que desde meados dos 90 os “ativos tóxicos”
(os empréstimos que não funcionam) dos bancos chineses – (algumas estimativas os
situam nos 40% de todos os empréstimos em 2000) desapareceram da contabilidade
bancária a mercê dos investimentos ocasionais de excedente em dinheiro
procedente das reservas do comércio exterior.
Os chineses tiveram em
funcionamento durante muito tempo o equivalente a um programa TARP [o programa
norte-americano de resgate bancário posto em prática nos últimos meses de 2008],
e evidentemente sabem como manejá-lo (ainda que muitas das transações tenham a
marca da corrupção). Os chineses têm suficiente capacidade econômica para
embarcarem num programa massivo de financiamento com déficit e dispõem de uma
arquitetura financeira estatal centralizada apta, se lhe propuserem, a
administrar esse programa com eficácia. Os bancos, durante muito tempo de
propriedade estatal, que foram privatizados para atender às exigências da OMC
(Organização Mundial do Comércio) podem vir a atrair capital e perícia
estrangeiros, mas podem todavia serem facilmente submetidos à vontade do estado
central, enquanto que nos EUA mesmo o mais longínquo signo de diretriz estatal,
para não falar de nacionalização, dá motivo a todos os tipos de furores
políticos.
Analogamente, não há ali [China] a menor barreira ideológica
para uma generosa redistribuição de recursos a favor dos setores mais
necessitados da sociedade, ainda que possa haver necessidade de vencer os
encouraçados interesses dos membros mais ricos do partido e de uma incipiente
classe capitalista. A imputação segundo a qual isso seria tanto como o
“socialismo”, ou inclusive até pior, o “comunismo”, apenas despertaria sorrisos
divertidos na China. Mas a reaparição na China do desemprego em massa (de acordo
com os últimos informes, a desaceleração dos últimos meses já teria gerado já 20
milhões de desempregados), assim como os indícios de um mal-estar social
prolongado e aceleradamente crescente, forçarão seguramente o Partido Comunista
chinês a empreender massivas redistribuições, estejam ou não ideologicamente
convencidos da sua justiça.
No começo de 2009, essa política
redistributiva parece primeiramente destinada às regiões rurais atrasadas, para
onde regressaram os trabalhadores emigrantes que perderam seus empregos,
frustrados com a constatação da escassez de postos de trabalho nas zonas
manufatureiras. Nessas regiões, nas que faltam infraestrutura social e física,
um investimento robusto de recursos por parte do governo central contribuirá
para aumentar as receitas, para expandir a demanda efetiva e para dar o tiro de
saída do longo processo de consolidação do mercado interno chinês.
Em
segundo lugar, há um forte desejo de investir massivamente em infraestrutura que
ainda falta na China. - Em troca, os cortes fiscais só tem ali atrativos
políticos – e ainda que seja possível que alguns desses investimentos terminem
sendo “elefantes brancos”, a probabilidade de que seja assim ali é farta mas
baixa, dada a imensa quantidade de trabalho de que se necessita para integrar o
espaço nacional chinês e, assim, enfrentar-se o problema do desenvolvimento
geográfico desigual entre as regiões costeiras de alto desenvolvimento e as
províncias empobrecidas do interior.
A existência de uma larga – ainda
que problemática – base industrial e manufatureira necessitada de racionalização
espacial torna mais provável que o esforço chinês entre na categoria do gasto
público produtivo. No caso chinês boa parte do excedente pode ser canalizado até
a produção futura de espaço, e isso mesmo admitindo que a especulação nos
mercados imobiliários urbanos em cidades como Xangai, ou mesmo nos EUA, é parte
do problema e não pode, por conseguinte, converter-se em parte da solução. Os
gastos em infraestrutura, sempre que sejam feitos numa escala suficientemente
grande, são de grande alento e servem tanto para canalizar o trabalho excedente
como para reduzir as possibilidades de distúrbios sociais, contribuindo também,
ademais, para impulsionar o comércio interno.
Implicações
internacionais
Essas possibilidades completamente distintas que os EUA e
a China têm de propiciarem uma solução plenamente keynesiana guardam profundas
implicações internacionais. Se a China emprega mais recursos procedentes de suas
reservas financeiras para impulsionar seu mercado interno, como com quase total
segurança vai se ver forçada a fazer por razões políticas, deixará menos
recursos disponíveis para possíveis empréstimos aos EUA. O descenso das compras
de bônus do tesouro estadunidense terminará por forçar uns tipos de interesses
mais altos, o que incidirá negativamente na demanda interna norte-americana, a
qual, por sua vez e a menos que haja uma gestão meticulosa, poderia disparar o
que todo mundo teme e que até agora conseguiu evitar: uma derrubada do
dólar.
Uma desvinculação paulatina dos mercados norte-americanos e a sua
progressiva substituição pelo próprio mercado interno como fonte de demanda
efetiva da indústria chinesa alterariam significativamente os equilíbrios de
poder (um processo que, diga-se de passagem, estaria carregado de tensões, tanto
para a China como para os EUA). A divisa chinesa se robustecerá necessariamente
frente ao dólar (uma situação tão largamente pretendida como temida pelas
autoridades norte-americanas), o que obrigará aos chineses a se basearem mais em
seu mercado interno para a demanda agregada. O dinamismo que disso resultaria no
interior da China (contrastável com as condições de recessão duradoura que
prevalecerão nos EUA) atrairá mais produções de matérias primas à órbita
comercial chinesa e corroerá a importância relativa dos EUA no comércio
internacional.
O efeito global de tudo isso será a aceleração do
deslocamento da riqueza, do oeste para o leste, na economia mundial e a rápida
alteração dos equilíbrios de poder econômico hegemônico. O movimento tectônico
que operará o equilíbrio do poder capitalista global intensificará todo tipo de
ramificações econômicas e políticas imprevisíveis num mundo em que os EUA
deixarão de estar numa posição dominante, mesmo que sigam mantendo um poder
importante. A suprema ironia, deve-se dizê-lo, é que as barreiras políticas e
ideológicas postas nos EUA a qualquer programa plenamente keynesiano
contribuirão seguramente para acelerar a derrubada do poder americano nos
assuntos globais, apesar de que as elites de todo o mundo (inclusive as
chinesas) preferissem preservar esse domínio o maior tempo possível.
Que
um genuíno keynesianismo seja ou não suficiente para que a China (junto a outros
estados em posição similar) consiga compensar o fracasso inevitável do
keynesianismo reticente ocidental é questão em todo caso aberta. Mas essas
diferenças, somadas ao eclipse da hegemonia norte-americana, bem poderiam ser o
prelúdio de uma fragmentação da economia global em estruturas hegemônicas
regionais que poderiam terminar lutando tanto entre si com tanta facilidade como
colaborando na questão miserável de dirimir quem tem de arcar com os estragos da
depressão duradoura.
Esta não é uma idéia exatamente alentadora, mas ter
em mente a possibilidade de uma perspectiva desse tipo poderia talvez contribuir
para despertar boa parte do mundo ocidental para a apercepção da urgência da
tarefa que tem diante de si; que seus dirigentes políticos deixem de dizer
banalidades sobre restaurar a confiança se ponham a fazer o que há a ser feito
para resgatar o capitalismo dos capitalistas e de sua falsária ideologia
neoliberal. E sim, isso significa socialismo, nacionalizações, diretrizes
estatais robustas, força de colaborações internacionais e uma nova e farta, mas
inclusiva (“democrática”, se posso ousar a dizê-lo assim) arquitetura financeira
internacional, pois que assim seja...
David Harvey é geógrafo, sociólogo urbano e
historiador social marxista. É professor da Universidade da Cidade de Nova York
(CUNY) e autor de vários livros e artigos, dentre os quais se destaca "A
Produção Capitalista do Espaço", publicado no Brasil pela Annablume Editora. Vem
dando seminários sobre O Capital, de Karl Marx, há 40 anos. Mantém esta página
www.davidharvey.org
Tradução: Katarina Peixoto