NCeHu 7/09
www.centrohumboldt.org.ar
DAS CINZAS DE
GAZA
EUA e União
Européia são cúmplices do massacre em Gaza
Os palestinos assassinados são trunfo
eleitoral, numa disputa cínica entre a direita e a extrema-direita israelenses.
Seus aliados em Washington e na União Européia, perfeitamente informados de que
Gaza estava para ser atacada, exatamente como no caso do Líbano em 2006,
sentaram e esperaram. A análise é de Tariq Ali.
Tariq Ali - The
Guardian
www.cartamaior.com.br
O assalto a Gaza, em planejamento há mais de
seis meses e executado em momento cuidadosamente selecionado, foi feito, como
Neve Gordon observou corretamente, como instrumento de campanha eleitoral, com
vistas às eleições do mês que vem e para manter no poder os partidos que estão
hoje no governo de Israel. Os palestinos assassinados são trunfo eleitoral, numa
disputa cínica entre a direita e a extrema-direita israelenses. Seus aliados em
Washington e na União Européia, perfeitamente informados de que Gaza estava para
ser atacada, exatamente como no caso do Líbano em 2006, sentaram e esperaram.
Washington, como sempre faz, culpa os palestinos favoráveis ao Hamas,
com Obama e Bush cantando pela partitura do sempre mesmo AIPAC (American
Israel Public Affairs Committee). Os políticos da União Européia souberam
dos planos, assistem aos ataques, ao sítio, ao bloqueio, ao castigo coletivo
imposto à população em Gaza, aos assassinatos de civis etc. (sobre isso, ver o
impressionante ensaio de Sara Roy, de Harvard, na London Review of Books [em
português, "Se Gaza cair...").
Apesar de ver e saberem de tudo isso,
foram facilmente convencidos de que alguns rojões de quintal teriam "provocado"
a reação de Israel. E puseram-se a 'exigir' o fim da violência dos dois lados.
Efeito? Zero.
A ditadura-come-mosca de Mubarak no Egito e os islâmicos
preferidos da Otan em Ancara não se deram o trabalho, nem isso, de registrar
algum tipo de protesto simbólico; sequer retiraram seus embaixadores de Israel.
A China e a Rússia não convocararm reunião do Conselho de Segurança da ONU para
discutir a crise. Para discutir. Que fosse.
Resultado da apatia oficial,
um dos resultados das mais recentes agressões de Israel será incendiar as
paixões nas comunidades muçulmanas em todo o mudo e fazer crescer a influência e
o prestígio até das organizações terroristas que, no ocidente, apresentam-se
como líderes de uma "guerra contra o terror".
A carnificina em Gaza
obriga a discutir questões estratégicas cruciais para os dois lados, todas
relacionadas à história recente. Fato que todos têm de reconhecer é que já não
existe Autoridade Palestina. Jamais existiu. Os Acordos de Oslo foram completo
desastre para os palestinos, criando um conjunto de guetos desconectados, todos
sob obcecada vigilância de um cão-de-guarda brutal. A OLP, onde uma vez
depositaram-se todas as esperanças dos palestinenses, é hoje pouco mais que
mendigo que suplica migalhas do dinheiro da União Européia.
O entusiasmo
pela democracia torna-se zero entre os aliados ocidentais, no instante em que,
no oriente, os eleitores elejam partidos e candidatos que se oponham as
políticas ocidentais. Israel e o ocidente fizeram de tudo para eleger candidatos
do grupo Fatah: os palestinenses enfrentaram manobras, ameaças, golpes,
tentativas de suborno pela "comunidade internacional" e sua campanha incansável
de perseguição aos candidatos do Hamás e outros grupos de oposição. A campanha
foi incansável. Os candidatos do Hamas eram rotineiramente perseguidos ou
atacados pelos soldados e pelas polícias de Israel, os cartazes eram confiscados
e queimados, rios de dinheiro dos EUA e da União Européia enriqueceram a
campanha a favor do Fatah, e, nos EUA, deputados e congressistas discursavem,
para dizer que, se eleito, o Hamás não poderia governar.
Até a data das
eleições foi planejada para alterar o resultado das urnas. Marcadas para o verão
de 2005, foram adiadas até Janeiro de 2006, para que Abbas pudesse distribuir
vantagens a mancheias porque – nas palavras de um oficial da inteligência
egípcia –, "depois, o público apoiará a Autoridade, contra o Hamas."
O
desejo popular de promover limpeza geral, depois de dez anos de corrupção, de
conversações sem propósito e sem objetivo, sob governos do Fatah, foi mais forte
que tudo. O triunfo eleitoral democrático do Hamas foi tratado como sinal do
renascimento do fundamentalismo e preocupante derrota nos planos de paz com
Israel, por governos e por todos os grandes impérios de mídia em todo o mundo
atlântico.
Imediatamente começaram as pressões financeiras e
diplomáticas, para forçar o Hamas a adotar as mesmas políticas do partido
derrotado nas urnas.
Sem qualquer ligação com o misto de ganância e
dependência, com o sonho de enriquecimento rápido dos porta-vozes e políticos
servis do Fatah de depois de Arafat, sem o mesmo tipo de subserviência a
qualquer idéia de que algum "processo de paz" fosse algum dia possível mediante
as políticas do Fatah de depois de Arafat e de Israel, o Hamas construiu na
Palestina a alternativa e a lição de seu próprio exemplo.
Sem ter a
abundância de meios com que conta o atual Fatah, o Hamas construiu clínicas,
escolas, hospitais, ofereceu programas de assistência social para as populações
mais pobres. Os líderes e quadros dirigentes do Hamas vivem frugalmente, como
vivem todos os pobres na Palestina.
Esse tipo de resposta social e
política às reais necessidades da vida no dia a dia explica o amplo apoio
popular e eleitoral de que o Hamas goza hoje, não alguma recitação diária do
Corão. Não se sabe ainda o quanto a conduta do Hamas na II Intifada aumentou sua
credibilidade na Palestina.
Os ataques armados a Israel, como os da
Brigada dos Mártires, a Al-Aqsa, do Fatah, são respostas de retaliação à
ocupação muito mais mortal do que qualquer ação armada de resistência. Avaliadas
na escala dos massacres perpetrados pelo exército de Israel, a reação dos
palestinenses é rara e sempre é muito menos violenta.
A assimetria pode
ser bem avaliada durante o cessar-fogo (que foi proposta unilateral do Hamas),
iniciado em junho de 2003, e mantido durante o verão, apesar dos inúmeros
ataques israelenses e das prisões em massa que aumentaram muito durante o
cessar-fogo, quando mais de 300 combatentes do Hamás foram 'desaparecidos' ou
mortos na Cisjordânia.
Em 19/8/2003, uma célula autoproclamada do Hamas,
de Hebron, já denunciada e desautorizada oficialmente pelos dirigentes do Hamas,
explodiu um ônibus em Jerusalém Oeste. Como reação, Israel imediatamente
assassinou Ismail Abu Shanab, negociador-chefe, pelo Hamas, do cessar-fogo. O
Hamas respondeu. Resposta à resposta, a Autoridade Palestina e os Estados árabes
suspenderam todo o fluxo de ajuda financeira às inicitivas sociais do Hamas e,
em setembro de 2003, a União Européia acedeu a pedido que Telavive fazia-lhe há
muito tempo: incluiu o Hamas na sua relação de "organizações terroristas".
O traço que distingue o Hamas em toda a Região, obrigado a lutar uma
luta desesperadamente desigual, não são os homens-bomba – recurso desesperado
que se vê em muitos outros grupos –, mas uma espécie superior de disciplina,
firmemente orientada para atender necessidades vitais de uma população também
desesperadamente desamparada. Prova desse tipo de disciplina dedicada é, por
exemplo, a competência com que o Hamás conseguiu implantar o cessar-fogo, também
entre seus grupos, apesar das provocações de Israel, durante todo o ano passado.
Todas as mortes têm de ser condenadas, sobretudo a morte de civis, mas Israel é,
de longe, autor de muito maior número de assassinatos na Região, estatística que
os euro-norte-americanos ignoram completamente. Na Palestina, nem que quisessem
os palestinos matariam na escala em que os israelenses matam.
O exército
de Israel é o mais modernamente armado exército de ocupação que há no mundo. E
é, sem dúvida, o mais fortemente armado exército de ocupação de toda a história
moderna.
"Ninguém pode condenar que uma população se revolte, depois de
viver 45 anos sob ocupação militar", disse o General Shlomo Gazit, ex-chefe da
inteligência militar de Israel, em 1993.
O verdadeiro problema dos EUA e
da União Européia, motivo da oposição obcecada ao Hamas, é que o Hamas
recusou-se a aceitar a capitulação implícita nos Acordos de Oslo, e, depois, de
Taba a Genebra, tem-se recusado a esquecer as calamidades que EUA e a União
Européia têm imposto aos palestinos. Desde Oslo, EUA e a União Européia têm,
como prioridade, quebrar a resistência do Hamas. Cortar os financiamentos à
Autoridade Palestina é instrumento óbvio, para minar a influência de qualquer
iniciativa política local na Região. Outro, é inflar os poderes de Abbas –
escolhido a dedo, por Washington, como, também, Karzai, em Cabul –, ao mesmo
tempo em que minam a influência do Conselho Legislativo.
Não houve
qualquer esforço sério na direção de negociar com as lideranças políticas
eleitas na Palestina. Duvido muito que o Hamas se deixasse rapidamente
subordinar aos interesses israelenses e ocidentais, mas se assim acontecesse,
não seria o primeiro. O próprio Hamas carrega uma pesada hipoteca sobre os
ombros, desde a formação: a fraqueza fatal do nacionalismo palestino, que sempre
acreditou que só haveria duas vias, ou a completa rejeição de Israel ou a
completa aceitação do desmembramento dos retalhos da Palestina, até ser reduzida
a 1/5 de seu próprio território. Entre o delírio maximalista da primeira via, ao
patético minimalismo da segunda, praticamente não há caminho para fora do
abismo, como o demonstrou a história do Fatah.
O teste de vida e morte
para o Hamas, não é ser ou não ser 'adaptado' de modo a tornar-se palatável para
a opinião pública ocidental, mas, sim, conseguir separar-se do peso devastador
de seu passado. Logo depois da vitória eleitoral do Hamas, em Gaza, um palestino
perguntou-me, numa entrevista, o que eu faria se estivesse no lugar do Hamas,
recém-eleito. "Dissolveria a Autoridade Palestina", respondi. Para acabar com a
encenação. Isso feito, seria possível repor a causa nacional palestina sobre
bases adequadas para exigir que o território e seus recursos sejam partilhados
proporcionalmente entre populações assemelhadas em quantidade – não com 80% para
os israelenses e 20% para os palestinenses, uma violência tão grande que, no
longo prazo, nenhum povo jamais a aceitará. A única solução aceitável é um único
Estado, para israelenses-palestinenses, no qual os crimes do sionismo possam
afinal ser reparados. Não há outra possibilidade. Só essa.
Os cidadãos
de Israel bem podem meditar sobre essas palavras de Shakespeare (n'O Mercador de
Veneza), em que introduzi pequenas mudanças:
"Sou palestino.
Palestino não tem olho? Não tem mãos, órgãos, altura, peso, sentidos, afeições,
afetos, paixões? Não come a mesma comida, não morre pelas mesmas armas, não
padece as mesmas doenças, não se cura pela mesma cura, não se aquece no mesmo
verão e não congela no mesmo inverno, como o judeu? Se nos furam, não sangramos?
Se nos fazem cócegas, não rimos? Se nos envenenam, não morremos? Se nos fazem
mal, não nos podemos defender? Se somos iguais em tudo, não reclamem de sermos
iguais também nisso… A vilania que nos ensinaram, nós a aprendemos; seremos vis;
menos vis que vocês, sim, porque viemos depois. Aprendemos com vocês, mas a
vilania purga-se, no tempo. Mais do que isso, não posso prometer."