NOTAS PRELIMINARES SOBRE O PROCESSO DE FORMAÇÃO
DA FRONTEIRA SECA INTERNACIONAL
ENTRE BRASIL E ARGENTINA:
BARRACÃO (PR), DIONÍSIO CERQUEIRA (SC)
E BERNARDO DE IRIGOYEN – MISIONES (ARG.)
Maristela Ferrari
Leila Christina Dias
Abstract
This study aims to comprehend the formation
process of the Dry International Frontier between Brazil and Argentina through
the main political conflicts responsible for the definition of the territorial
limits and the formation of urban centers.
The denomination of dry frontier is
explained by the lack of natural physical obstacles, such as oceans or broad
rivers, forming, therefore, a dry passage without physical rupture between the
Brazilian and Argentinean territories. Despite its source being in this area,
between the towns of Dionísio Cerqueira and Bernardo de Irigoyen, the
river Peperi Guaçu is not an obstacle to the passage between the two countries,
it is only a stream.
The demarcation of the borders between Brazil
and Argentina and between Santa Catarina and Paraná was responsible for the
appearance of three towns, characterizing the place as "Triple Frontier" or
"Triplet Towns". An understanding of the distinct functions performed at the Dry
International Frontier in space through time demonstrates not only the permanent
demarcation of a territory by laws and legal standards, but also the development
of the relations of the capitalist evolution which at different times attributes
distinct functions to the frontier.
Introdução
O presente estudo objetiva compreender o
processo de formação da fronteira seca internacional entre o Brasil e a
Argentina e seu conseqüente processo de urbanização. Para tanto, o texto está
dividido em duas partes: a primeira apresenta os principais conflitos políticos
que envolveram a definição dos limites territoriais; a segunda contempla a
análise do processo de ocupação territorial e de formação dos núcleos urbanos.
De origem
latina fronteria ou frontaria, fronteira indicava a parte do
território situada in fronte, ou seja, nas margens. É certo, porém, que
em sua evolução, o conteúdo do conceito de fronteira mudou muito. Usada pela
primeira vez em 1238, pelos cavaleiros da Ordem Teutônica (antiga Germânia), foi
identificada não como o confim, isto é, faixa territorial ou região periférica;
indicava uma linha num território marcada por sinais particulares. Inicialmente,
seu significado estava associado a uma linha de demarcação traçada entre dois
bens imóveis para evitar o surgimento de contestações. No decorrer do tempo,
passou a significar confim territorial. No dicionário Les mots de la
géographie, a fronteira significa
"limite do território de um Estado e de sua competência territorial (...) limite
separando duas zonas, duas regiões, ou mesmo duas entidades mais ou menos
abstratas (fronteira lingüística; a fronteira entre o bem e o mal)" (1993, p.
227).
Embora o
conceito de fronteira esteja inicialmente associado a limite, os termos
apresentam diferenças essenciais. Segundo MACHADO (1998:41 e 42), “A palavra
limite, de origem latina, foi criada para designar o fim daquilo que mantém
coesa uma unidade político-territorial, ou seja, sua ligação interna. Essa
conotação política foi reforçada pelo moderno conceito de estado, no qual a
soberania corresponde a um processo absoluto de territorialização. O monopólio
legítimo do uso da força física, a capacidade exclusiva de forjar normas
de trocas sociais reprodutivas (a moeda, os impostos), a capacidade de
estruturar, de maneira singular, as formas de comunicação (a língua nacional, o
sistema educativo etc.) são elementos constitutivos da soberania do estado,
correspondendo ao território cujo controle efetivo é exercido pelo governo
central (o estado territorial). A fronteira está orientada para fora (forças
centrífugas), enquanto os limites estão orientados para dentro (forças
centrípetas)”.
Embora o
limite internacional entre o Brasil e a Argentina vá oficialmente desde o oeste
do Paraná até o sul do Rio Grande do Sul, tomamos aqui como recorte espacial a
área da fronteira seca internacional, definida pelas cidades brasileiras de
Dionísio Cerqueira (SC) e Barracão (PR) e pela cidade argentina de Bernardo de
Irigoyen, na Província de Misiones. De um total de 900 quilômetros de fronteira
com o Brasil, 878 são fluviais e 22 quilômetros são de fronteira seca nas
imediações de Bernardo de Irigoyen.
A denominação
de fronteira seca se deve à ausência de obstáculos físicos naturais, como
oceanos ou rios caudalosos, constituindo-se assim numa passagem seca, sem
ruptura física entre o território do Brasil e da Argentina. Embora nasça nesse
local, entre as cidades de Dionísio Cerqueira e Bernardo de Irigoyen, o rio
Peperi Guaçu não constitui obstáculo para a passagem entre os dois países, é
apenas um pequeno córrego.
Conflitos
políticos e definição dos limites
A demarcação
do limite dessa fronteira, inserida na chamada questão de Palmas ou Misiones,
nos atuais Estados de Santa Catarina e Paraná, foi marcada historicamente pela
disputa entre o Brasil e a Argentina desde o Tratado de Tordesilhas (1494) e o
Tratado de Madri (1750), em que Portugal e Espanha disputavam os Sete Povos das
Missões. O Tratado de Tordesilhas, assinado em 07 de junho de 1494 entre
Portugal e Espanha, demonstra que a linha divisória foi afastada de 100 para 370
léguas a poente da Ilha de Cabo Verde. No entanto, as bulas papais de 1493
estabeleciam uma linha reta, de um pólo a outro, passando a 100 léguas dos
arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde. A Portugal caberiam as terras de leste;
à Espanha, as de oeste dessa linha.
Entretanto, o
Tratado de Santo Ildefonso estabeleceu as divisas pelos rios Peperi Guaçu e
Santo Antonio. Ao final da Guerra do Paraguai (1881), os argentinos ocuparam o
Território de Misiones do Paraguai e interpretaram diferentemente dos
brasileiros as divisas: o rio Peperi Guaçu seria o Chapecó, e o Santo Antonio
seria o Chopim. A pretensão da Argentina à época dessa disputa era anexar ao seu
território mais de 30 mil quilômetros quadrados, que segundo alguns
historiadores sempre estiveram sob a posse do Brasil. Segundo o historiador
HEINSFELD (1997, p.111), “Essa questão foi a primeira de grande vulto em que
José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco, se destacou em defesa do
território brasileiro. Também foi o primeiro embate internacional com Estanislao
Severo Zeballos, ministro argentino. Esses dois personagens podem ser
considerados os precursores da Geopolítica em seus respectivos países, bem
antes da Geopolítica ser sistematizada enquanto conhecimento, o que vai
acontecer somente em 1916 na Suécia, com Rudolf Kjellén”. Não
houve, contudo, acordo entre os dois países no tocante à linha divisória. Para
decidir a referida disputa, os dois países escolheram, em 1889, o Presidente dos
Estados Unidos para, como árbitro, decidir a contenda. O arbitramento
praticamente se limitava à identificação dos dois rios - o Peperi Guaçu e o
Santo Antonio - definidos pelos tratados de 1750 e 1777 como as linhas
divisórias. Ainda segundo HEINSFELD (1997, p.113), “O rio Peperi já era
conhecido desde 1722, como mostra um mapa confeccionado pelos jesuítas naquele
ano. Para a elaboração do Tratado de Madrid baseou-se em um mapa manuscrito,
vulgarmente chamado Mapa das Cortes, elaborado em 1749, onde aparece o rio com o
nome de Pequiri e, também, a cabeceira principal do rio mais vizinho; porém este
último rio não é nominado”.
O litígio sobre a definição do limite entre o
Brasil e Argentina tendia a prolongar-se cada vez mais. Os vários tratados
propostos entre os dois países não chegaram a vigorar, razão pela qual a questão
foi encaminhada ao arbitramento internacional do então presidente
norte-americano Grover Cleveland. A defesa do Brasil foi feita pelo Barão do Rio
Branco, enquanto Estanislao Severo Zeballos defendia a Argentina.
Em 5 de fevereiro de 1895, o presidente dos
Estados Unidos, Grover Cleveland, deu ganho de causa ao Brasil, declarando que
toda a parte do Território das Missões, situado entre os rios Iguaçu e Uruguai,
até os afluentes Santo Antônio, pertencia ao Brasil. Encerrava-se assim a
chamada questão das Missões ou de Palmas. Caso a Argentina a tivesse vencido,
todo o Oeste de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná lhe pertenceriam, ficando o
Rio Grande do Sul unido ao Brasil apenas por estreito corredor de cerca de 250
quilômetros. Daí a preocupação dos políticos brasileiros em apresentar provas ao
presidente norte-americano, que refutassem qualquer argumento da Argentina.
Pesou a favor do Brasil também o fato de a região já estar sendo habitada por
brasileiros. Dados históricos revelam que por volta de 1830 a área em litígio
começou a ser ocupada por brasileiros criadores de gado. Esses dados serviram de
argumento favorável na defesa do Brasil perante a Argentina, ou seja, percebe-se
claramente nesse caso que o princípio de “Uti Possidetis” serviu também
de argumento no litígio da fronteira Brasil-Argentina. O argumento era de que o
direito ao território deveria caber ao povo que o ocupava, embora de forma pouco
densa e dispersamente. Fato inusitado é que, para definir limites
internacionais, na Fronteira Seca Internacional, o presidente Cleveland
determinou que “onde as águas da chuva correm para o leste fica território
brasileiro; e onde as águas da chuva correm para o oeste fica território
argentino”. Esse mesmo critério foi utilizado para definir os limites
entre Santa Catarina e Paraná ao final da Guerra do Contestado em 1916, pelo
então presidente da República Wenceslau Braz – “Onde as águas da chuva correm
para o sul é Santa Catarina e onde as águas da chuva correm para o Norte é
Paraná”.
Geograficamente, o oeste de Santa Catarina
representava, na eventualidade de uma guerra, um corredor estratégico, além de
ser uma região rica em recursos naturais. Mas o que levou o Brasil a concentrar
sua atenção no oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná, região até então
sem importância, foi o risco de perder parte de seu território. Pairava uma
preocupação com a intenção do Rio Grande do Sul de proclamar-se Estado
independente, desligando-se do restante do Brasil. Com a possibilidade do
desligamento do Estado do Rio Grande do Sul, era primordial que o Brasil
definisse suas fronteiras para então integrar o Rio Grande do Sul ao restante do
Brasil. É certo que se a Argentina tivesse ganhado a questão, os Estados do Rio
Grande do Sul e de Santa Catarina ficariam praticamente isolados do restante do
país.
Embora a questão de Palmas ou de Misiones não
tenha origem na rivalidade entre Brasil e Argentina, pois foi herança das
monarquias ibéricas, faz parte das rivalidades entre o Brasil e a Argentina na
luta pela hegemonia do continente sul-americano. Essa questão mostra também o
caráter de mobilidade da primeira fronteira estabelecida no Brasil
(Tordesilhas), desenhando os contornos definitivos do território brasileiro,
tanto pelo avanço como pelo recuo do seu estabelecimento sobre áreas de
influência ou interesses políticos, entre outros. Desse modo, os limites são
instituições estabelecidas por decisões políticas e econômicas que lhes atribuem
significados e funções diferentes segundo o contexto histórico vivido. É certo,
também, que nenhuma sociedade, seja econômica, política ou social, poderia
organizar-se sem limites, pois as leis que organizam e regem um território-nação
só podem agir dentro dos limites. Já a fronteira assume caráter essencialmente
social, pois é a faixa ou zona onde coabitam interesses das populações
limítrofes. A fronteira é local de troca e de comunicação, onde é possível
perceber, por meio do desenvolvimento de relações de ordens diversas, pelo
aspecto econômico ou social, entre outros, que essas extrapolam muitas vezes o
limite territorial.
A
ocupação do território e a formação dos núcleos urbanos
Os conflitos políticos que marcaram a
definição de limites entre o Brasil e a Argentina não impediram o processo de
ocupação e, mais tarde, o conseqüente processo de urbanização na fronteira seca
internacional, passando o local a ser conhecido como Barracão ou Barracón,
de ambos os lados da fronteira. O nome Barracão deriva da presença de
barracos ou galpões onde se armazenavam produtos trocados entre brasileiros e
argentinos, entreposto comercial não legalizado entre os dois países. O
interesse da população que se foi instalando no local estava relacionado às
trocas legais e ilegais entre os dois países. Esse traço é comum às áreas de
fronteira, como sugere MARTIN (1997, p. 47): “Assim, hoje o ‘limite’ é
reconhecido como linha, e não pode portanto ser habitada, ao contrário da
‘fronteira’ que, ocupando uma faixa, constitui uma zona, muitas vezes bastante
povoada, onde os habitantes de Estados vizinhos podem desenvolver intenso
intercâmbio, em particular sob a forma de contrabando (...)”.
Em 4 de julho de 1903, o povoado do lado
brasileiro denominado Barracão foi elevado à categoria de vila, passando a
chamar-se Dionísio Cerqueira em território paranaense, área contestada entre
Paraná e Santa Catarina. O povoado do lado argentino permaneceu até meados de
1921 com o nome de Barracón, quando então, em homenagem ao advogado
Bernardo de Irigoyen, que atuou na questão da definição de limites entre o
Brasil e a Argentina, passa a ser, em 11 de junho, localidade de Bernardo de
Irigoyen, da então Província de Misiones. Definida a questão de limites entre
Brasil e Argentina, continuou a pendência de limites entre Paraná e Santa
Catarina. As divergências entre os dois estados vinham desde o Brasil Colônia e
só chegariam ao fim após a Guerra do Contestado (1912 a 1916).
O distrito de Dionísio Cerqueira, sob a
jurisdição do Paraná, foi dividido na definição de limites entre os dois estados
brasileiros, passando o povoado em terras catarinenses a chamar-se Barracão.
Entretanto, entre 1943 e 1945, o então presidente da República, Getúlio Vargas,
cria o Território Federal do Iguaçu, fazendo com que as duas cidades brasileiras
se unissem novamente sob a jurisdição do Território Federal do
Iguaçu.
O distrito de Barracão alcançaria a sua
emancipação pela Lei Estadual do Paraná n.º 790, de 14 de novembro de 1951,
passando a município instalado em 14 de dezembro de 1952, conservando o nome
original que, segundo historiadores brasileiros, teve origem no “acampamento
entrincheirado” construído em 1636, pelas Bandeiras Paulistas. Já os
historiadores platinos afirmam que o nome se originou de um “acampamento
fortificado” construído por uma redução jesuítica, a qual teria a missão de
repelir as Bandeiras Portuguesas em terras missioneiras. O município de Dionísio
Cerqueira foi criado pela Lei Estadual de Santa Catarina nº 86.133, e instalado
oficialmente em 14 de março de 1954. O nome é em homenagem ao general Ministro
das Relações Exteriores do Brasil, Dionísio Cerqueira, que tinha interesses em
resolver o conflito de limites com a Argentina, também denominado “conflito das
missões”.
A demarcação dos limites territoriais entre
Brasil e Argentina e entre Paraná e Santa Catarina fez surgir três cidades,
caracterizando o local como “Tríplice Fronteira” ou “cidades trigêmeas”. Nesse
caso, o termo mais usado pela geografia é de cidades geminadas que são duplas ou
trios de cidades fronteiriças, ou até mesmo, como sugere SCHAFFER (1993, p.24),
“de cidades conurbadas”. Na observação da paisagem urbanística das cidades
geminadas, torna-se evidente a formação de um único tecido contínuo em sua
morfologia, comum na linguagem arquitetônica de cada uma das cidades bem como
nas demais referências culturais.
Pelo processo de ocupação e de urbanização, a
fronteira seca é também chamada de fronteira viva. O extrativismo, o
desenvolvimento da agricultura e a criação de gado e de suínos na região
contribuíram para o processo de colonização e a formação de pequenos núcleos
urbanos ao longo da fronteira Brasil-Argentina.
Um dos primeiros produtos que intensificou
essas trocas foi a erva-mate, do Brasil, com produtos de primeira necessidade
oriundos da Argentina, como sal, banha, farinha, bebidas e outros. Mais tarde,
com o fluxo migratório de gaúchos do Estado do Rio Grande do Sul, em direção ao
oeste de Santa Catarina e do Paraná, as trocas se intensificaram nesse
entreposto comercial. Um fator que parece ter contribuído para o desenvolvimento
do processo urbano nessa área de fronteira foi a exportação da erva-mate aos
países do Prata, iniciada a partir de 1900 via Dionísio Cerqueira, na época sob
o domínio do Paraná.
O ciclo econômico da erva-mate teve grande
importância na região sul do Brasil durante todo o século XIX até
aproximadamente 1940. O produto era altamente valorizado, tanto na região sul do
país, como na Argentina, Uruguai e Paraguai, por substituir o café, além de ser
consumido como chimarrão e infusão (chá). No sudoeste paranaense e oeste
catarinense, a exploração da erva-mate já em 1863 tornou-se atividade bastante
lucrativa. Segundo fontes estatísticas de Guarapuava, (PR), em 1863 se produziam
na região entre 20.000 e 30.000 arrobas de erva, sendo parte dessa produção
comercializada em Curitiba e boa parte exportada ou contrabandeada para a
Argentina (FOLADOR, 1991, p. 44).
Segundo o historiador João Davi
Folador, (1991, p. 44) “Na fronteira do Paraná e Santa Catarina com a
República Argentina era comum se verem argentinos adquirindo grandes áreas de terra, com
finalidade de extrair erva-mate”. A extração e o comércio da erva-mate
pelos argentinos na região da fronteira seca internacional intensificou-se a
partir do início do século XX com a implantação e organização de várias
empresas, como Pastoriza, Arachea, Nuñes e Gibaja, entre outras, que faziam a
extração e o processamento da erva-mate do Brasil para a Argentina. Segundo
estatísticas, os argentinos representavam aí 25% da população em 1920, caindo
para 1% em 1940. Entre as várias empresas argentinas destacam-se a “Pastoriza,
que no ano de 1930 chegou a possuir 35.000 hectares de terras com erval”.
(Guia Sudoeste do Paraná, 1994:23). Conforme Hermógenes Lazier, em Análise
Histórica da Posse de Terra no Sudoeste Paranaense, “Para muitos moradores da
região a erveira funcionava como um banco. Cortavam as folhas, sapecavam e
acondicionavam em cargueiros, levando ao mercado, onde trocavam por
mercadorias”. (LAZIER, 1986, p. 48).
Essas trocas transfronteiriças
criam a necessidade de cobrar impostos sobre operações comerciais realizadas na
fronteira seca internacional. Em 1903, foi instalada em Dionísio Cerqueira (PR)
uma Coletoria Estadual para cobrar impostos sobre o comércio de erva-mate com a
Argentina. A fiscalização do lado brasileiro estava subordinada a Foz do Iguaçu
(PR), que na época enviava um fiscal duas vezes por semana a Dionísio Cerqueira,
para efetuar os trâmites legais sobre as trocas comerciais entre brasileiros e
argentinos nessa passagem seca, enquanto o lado argentino estava subordinado a
Puerto Iguazu para legalizar trocas comerciais entre os dois países.
A fiscalização sob o Porto de Foz
do Iguaçu e Puerto Iguazu permaneceu até 1970 na fronteira seca internacional,
quando então é criado o porto seco internacional Dionísio Cerqueira-Bernardo de
Irigoyen. O porto seco é, na verdade, uma aduana habilitada com organismos como
o Banco Nacional, o Ministério da Agricultura para controle fitossanitário, a
Polícia Federal, a Receita Federal, as lojas de câmbio, os despachantes
aduaneiros e outros, com poderes para fazer os trâmites legais de importações e
exportações e o controle de pessoas. Esses organismos são encontrados em ambos
os lados da fronteira seca internacional.
Entretanto, a subordinação dessa
passagem seca a Foz do Iguaçu e Puerto Iguazu não impediu que no cotidiano da
população de ambos os lados da linha seca imaginária fossem desenvolvendo-se
relações econômicas e sociais espontâneas. O isolamento desses núcleos urbanos
em relação a centros maiores de seus respectivos estados e países determinou,
pelas necessidades locais, o desenvolvimento do chamado “contrabando” ou
comércio formiga (compra e venda de bens e serviços de pequenos volumes legais e
ilegais, estimulados pelas oscilações cambiais entre as cidades de países
limítrofes). As normas jurídicas que regem um Estado-nação, acabam sendo
ignoradas no cotidiano dessas populações fronteiriças.
Essa conivência entre as cidades
geminadas pelo “desafio de burlar a lei jurídica do Estado-nação” não é estranha
em áreas de fronteira, ainda que cada fronteira tenha suas particularidades.
Nesse caso, as relações econômicas ou de solidariedade entre brasileiros e
argentinos, na fronteira seca internacional efetivadas por esses pequenos
núcleos urbanos, tiveram papel de destaque pelo abastecimento de produtos
e alimentos industrializados que só era possível encontrar em grandes centros
até meados dos anos sessenta, ou seja, deram-se em função das necessidades
locais. Por exemplo: após a definição de limites entre o Brasil e a Argentina, o
Exército Nacional Argentino necessitava de produtos alimentícios e de vestuário,
além de equipamentos para vigilância da fronteira. Isso ensejou o aparecimento
de casas comerciais em Bernardo de Irigoyen, que estenderam a brasileiros a
venda de produtos que no inicio do século XX só eram encontrados além-fronteira.
A venda de determinados produtos era também estendida a outras cidades próximas
à fronteira, como as do extremo oeste de Santa Catarina e do sudoeste do Paraná.
O ciclo econômico da erva-mate
começa a declinar no final de 1930 para ser paulatinamente substituído pela
exploração da madeira no início de 1940. Pode-se dizer que o ciclo econômico da
extração e exportação da madeira foi a base do desenvolvimento econômico no
oeste catarinense a partir da década de 40, desde Chapecó até a fronteira com a
Argentina.
Inúmeras madeireiras foram
implantadas na região a partir da década de 50. O comércio da madeira era feito
principalmente com a Argentina, mas cabe lembrar que empresas multinacionais,
como a empresa norte-americana Railway Company e a Lumber, também contribuíram
com a “limpeza” florestal no oeste catarinense e também no sudoeste paranaense.
Paralelamente a essa exploração vegetal pelos grupos madeireiros, o que
contribuiu para a derrubada da mata foi o intenso fluxo migratório dos gaúchos
oriundos do Rio Grande do Sul em direção ao oeste catarinense e sudoeste
paranaense. Esse fluxo migratório é percebido com maior intensidade a partir dos
anos 50, atingindo seu ápice nas décadas de 60 e 70.
Esses migrantes, principalmente da
região noroeste do Rio Grande do Sul em direção ao oeste catarinense e ao
sudoeste paranaense, buscavam novas terras agricultáveis, o que contribuiu para
derrubar a mata e formar pequenas áreas agrícolas, ainda hoje presentes nessa
região. Já nas cidades geminadas, os gaúchos se estabeleceram objetivando o
comércio fronteiriço. Segundo antigos moradores, muitos brasileiros montavam
moinhos de fachada, em Dionísio Cerqueira e Barracão, contrabandeando a farinha
de trigo da Argentina durante a noite para vendê-la depois com embalagem
brasileira. Assim, o desenvolvimento econômico dessas cidades se deu pela
agricultura de subsistência e com o auxilio do contrabando formiga, como se
constata empiricamente pela quase ausência de indústrias locais. Inserido nesse
contexto, Bernardo de Irigoyen viveu seu ciclo de ouro estribado no comércio
fronteiriço, com a venda de produtos e bens aos brasileiros até por volta de
1970, quando um grande recesso econômico atingiu a Argentina, fazendo com que o
comércio fronteiriço fosse favorável ao Brasil. A desvalorização da moeda
brasileira em relação ao peso argentino na década de 70 intensificou o comércio
no lado brasileiro, enquanto no lado argentino ocorre uma inversão.
A variação cambial pela valorização
do peso em relação à moeda brasileira trouxe a estagnação do comércio para
Bernardo de Irigoyen, determinando a retirada de inúmeros comerciantes
argentinos, verdadeiras “aves de passagem”, no dizer do povo irigoyense, que
exploram o comércio fronteiriço, pela rotatividade em função da variação
cambial, sem interesse pelo desenvolvimento da cidade. A fronteira torna-se
atrativa somente quando oferece lucro: é o capitalismo presente na fronteira,
mas já em outra fase, a partir da constituição do Bloco Mercosul. A compreensão
das distintas funções desempenhadas na Fronteira Seca Internacional no espaço
pelo tempo demonstra não apenas a demarcação efetiva de um território pelas leis
e normas jurídicas, mas também o desenvolvimento das relações da evolução
capitalista que em tempos diferentes atribui distintas funções à
fronteira.
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