Fronteira e mito : Turner e o
agrarismo norte-americano
Prof. Hilda Pívaro Stadniky
Universidade Estadual de
Maringá
Apucarana - Brasil
Resumo
A pertinência e a atualidade da
discussão do conceito de fronteira podem ser facilmente constatadas pela
multiplicidade de centros e instituições acadêmicas voltadas ao tema. Ele
carrega uma diversidade de sentidos e reflete os significados edificados em
realidades históricas distintas. Mais que a demarcação política entre dois
países ou o limite entre regiões habitadas ou colonizadas, a linha divisória
entre duas culturas ou civilizações, a fronteira é um lugar de encontro e
colisão de culturas, de mundos distintos e, em geral, incompatíveis. A fronteira
é um espaço cultural, é o lugar de encontro entre o “eu” e o “outro”. Na
realidade, somos a fronteira. É, no fundo, um conflito de identidades que se
apresentam irreconciliáveis e sem dúvida, o contágio, a mescla, a mestiçagem, a
fusão, são inevitáveis. É uma identidade indefinida e conflitiva que perdeu suas
características e, portanto, seu lugar no mundo. Contudo, a questão da terra tem
sido colocada como central para as discussões mais recentes, a exemplo das
propostas de José de Souza Martins, no Brasil, para distinguir e enfatizar as
leituras acerca de frentes de expansão e frentes pioneiras na fronteira
agrícola. A trajetória da edificação de sentidos para a fronteira nos leva a
retomar as propostas da tese de Turner, o que resulta na recuperação da
fronteira enquanto lugar de mitos. Neste sentido, a retomada do Mito de Jardim
nos proporciona elementos constitutivos do agrarismo norte-americano edificado
na política ao longo do século XIX.
Fronteira e mito : Turner e o agrarismo norte-americano.
The existence of an
area of free land, its continuous recession, and the advance of American
settlement westward explain American development.
(Frederick Jackson Turner,
1893).
A natureza
abre seu colo para receber os recém-chegados e os fartar com comida. Não tenho
certeza que posso ser chamado de um americano parcial quando digo que o
espetáculo oferecido por essas cenas agradáveis deve ser mais interessante e
mais filosófico do que aquele que se sente olhando para as ruínas mofadas de
Roma.
(Crèvecoeur. Cartas de um
agricultor americano, 1782).
1. A tese da fronteira na
História americana.
Há pouco mais de um século Frederick Jackson
Turner proferiu
na Associação Histórica Americana, em Chicago, sua famosa palestra The
significance of the frontier in American History. A
existência de uma área de terra livre, sua contínua recessão e o avanço rumo ao
Oeste da colonização americana explicam o desenvolvimento
americano. Com essas
palavras Turner colocou os alicerces do estudo histórico moderno do Oeste
Americano e apresentou a tese da fronteira que ainda influencia o pensamento
histórico contemporâneo. Nela, ele explicita a afirmação de que o caráter
nacional americano foi forjado no movimento de expansão das populações para
o Oeste.
O ponto central da idéia de fronteira,
desenvolvida por Turner, reside na existência das free lands,
desabitadas, prontas a serem ocupadas pelos brancos de origem ocidental
européia, que nelas vivenciam seus ideais de liberdade, de individualidade, num
espaço de oportunidades ilimitadas. A contribuição de Turner para a história
norte-americana foi sua argumentação de que o seu passado, caracterizado pela
fronteira, melhor explicava a história específica dos Estados Unidos. Assim, a
expansão americana para o Oeste era o próprio âmago da experiência americana, o
cadinho no qual o caráter individualista foi formado na confrontação entre a
barbárie e a civilização. O movimento para o Oeste garantiu a democracia
política e social através da disponibilidade de terras livres e energizou o
crescimento econômico com bonanças sucessivas da fronteira. Aqui, igualmente,
está contida a idéia do movimento.
Três anos antes da conferência sobre a tese da
fronteira, o Instituto de Recenseamento dos Estados Unidos anunciara o
desaparecimento da linha fronteiriça contígua. Até então ninguém havia
interpretado o papel da fronteira no delineamento do desenvolvimento da América
e do caráter do americano. Alguns poucos, a exemplo de Aléxis de Tocqueville,
haviam reconhecido que um continente sem fronteiras ajudou a formar a nação. A
maioria dos pesquisadores ligava o desenvolvimento americano às origens da nação
na Europa. A importância da fronteira como força primária no desenvolvimento
americano foi primeiramente reconhecida por Turner, ele próprio crescido
na fronteira.
Turner tomou o fechamento da fronteira como uma
oportunidade para refletir sobre a influência que ela exercia. Argumentou que a
fronteira significava o retorno de cada geração de americanos às primitivas
condições sobre uma linha que avançava continuamente. Ao
longo dessa fronteira – que ele também descreveu como o ponto de encontro entre
a barbárie e a civilização – os americanos cada vez recapitulavam as etapas de
desenvolvimento da ordem industrial emergente da década de 1890. Esse
desenvolvimento, de acordo com sua descrição, começa com o ameríndio e o
caçador; continua com a desintegração da barbárie através do aparecimento do
comerciante... o estágio pastoril na vida de fazenda; a exploração da terra no
cultivo do trigo e do milho em comunidades esparsas; o cultivo intenso nas
fazendas e finalmente na organização de manufaturas através da cidade e do
sistema de fábricas.
Para Turner, o sentido mais profundo da fronteira
estava nos efeitos desta recapitulação social no caráter americano. Ele afirmou:
A fronteira é a linha na qual existe a mais rápida e efetiva
americanização. A presença
e a predominância de numerosos caracteres culturais, ou seja, aquela rudeza e
força combinadas com a agudez e a vontade de adquirir; a propensão prática e
inventiva da mente, rápida para descobrir saídas; aquela tomada experiente de
dominar as coisas... aquela incapacidade de descansar, a energia nervosa; o
individualismo dominante, todos esses fatores poderiam ser atribuídos à
influência da fronteira.
A fronteira era o lugar de encontro
entre a barbárie e a civilização. E ela
estava se fechando. Do ponto de vista de teoria econômica, o sertão além da
fronteira, o reino da barbárie, é uma área de terras livres em constante
recessão. Para Turner a terra livre funcionou como uma válvula de escape para o
Leste e até para a Europa, porque oferecia a todos os homens uma oportunidade de
adquirir um sítio e tornar-se um membro independente da sociedade. Essas
tendências contribuíram para o aumento da democracia. A dívida
mais importante de Turner no que diz respeito à tradição intelectual consiste
nas idéias sobre a barbárie e a civilização que usa para definir o
elemento principal, ou seja, a fronteira. Para ele e para seus predecessores, o
limite mais externo da colonização agrícola é a fronteira da civilização. Em seu
pensamento, devemos distinguir dois Oestes, um além dessa linha tão importante e
outro dentro dela.
Turner argumentava que o Oeste, e
não o Sul escravista ou o Norte antiescravista, era a seção americana mais
importante. Ademais, que as atitudes e as instituições novas produzidas pela
fronteira, especialmente através do incentivo à democracia, foram muito mais
importantes do que a herança importada da Europa que formou a sociedade
americana. Assim, a
luta dos pioneiros americanos contra as adversidades do Oeste contribuíra para o
desenvolvimento da iniciativa privada, o individualismo e a capacidade de
improvisação da sociedade americana. E isso, segundo ele, acabou se refletindo
na constituição das instituições americanas, na democracia americana que é capaz
de adaptar-se às mudanças do povo em expansão.
This brief official statement marks the closing of a
great historical movement. Up to our own day American history has been in a
large degree the history of the colonization of the great West. The existence of
an area of free land, its continuous recession, and the advance of American
settlement westwards, explain American development… American social development has been
continually beginning over again on the frontier. This perennial rebirth, this
fluidity of American life, this expansion westward with its new opportunities,
its continuous touch with the simplicity of primitive society furnish the forces
dominating American character. The true point of view in the history of this
nation is not the Atlantic coast, it is the Great West.
Com esta afirmação Turner inaugurou
uma nova era no estudo da história Americana. Ao invés de olhar para a costa
Atlântica ou para a Europa na procura de respostas para as origens de atitudes,
valores e instituições, ele e muitos outros historiadores que seguiram seus
passos voltaram-se para a fronteira. Ao definir a fronteira, partindo da costa
Atlântica, Turner identificou inúmeras fronteiras geográficas conforme os
colonos americanos se mudaram do Leste para o Oeste através do continente.
Explicou como a fronteira se originou no litoral Atlântico, cruzou as montanhas
Allegheny no vale do Ohio, moveu-se através do rio Mississippi e estendeu-se de
todos os modos até a costa do Pacífico. Nestas sucessivas fronteiras geográficas
ele delineou inúmeras semelhanças que se repetiam nas ondas de colonos e na
direção da colonização.
Stand at the Cumberland
Gap and watch the procession of civilization, marching single file – the buffalo
following the trail to the salt springs, the Indian, fur-trader and hunter, the
cattle-raiser, the pioneer farmer – and the frontier has passed by. Stand at
South Pass in the Rockies a century later and see the same procession with wider
intervals between.
Turner dividiu este processo de colonos
marchando através de terras desconhecidas em uma série de fronteiras movendo-se
uma a uma através de cada fronteira geográfica que denominou
de fronteira do comerciante, do rancheiro, do minerador e do fazendeiro. Após
estudar e comparar os vários tipos de fronteiras e o modo como elas avançaram
através do continente, propôs uma série de conclusões sobre seu significado para
o desenvolvimento americano. Primeiramente, reconheceu que a fronteira ajudou a
criar uma nacionalidade americana complexa. A fronteira colocou colonos ingleses
ao lado de colonos de outras nacionalidades que dividiram experiências e
compartilharam idéias ao longo de muitos anos possibilitando o desenvolvimento
de uma única nacionalidade americana que era composta de todos. In the crucible of the frontier the
immigrants were Americanized, liberated, and fused into a mixed race, English in
neither nationality nor characteristics. The process has gone on from the early
days to our own.
Este isolamento ajudou a
reforçar esta nova nacionalidade americana e na medida em que a fronteira
deslocava-se para o Oeste a influência inglesa decrescia em função da
auto-suficiência dos colonos. Do mesmo modo, Turner acreditava que as leis que
edificaram a nação responderam às necessidades e às demandas da fronteira.
The legislation which most
developed the powers of the national government, and played the largest part in
its activity, was conditioned on the frontier… The
growth of nationalism and the evolution of American political institutions were
dependent on the advance of the frontier. Em
grande parte, estas leis concentraram-se na distribuição de terras do domínio
público. The disposition of
the public lands was a third important subject of national legislation
influenced by the frontier.
Embora a fronteira desempenhasse um
importante papel na criação da nacionalidade americana ela teve um papel ainda
mais significante na evolução da democracia, em parte através de sua tradição de
individualismo. Na fronteira o individualismo foi colocado acima de um governo
forte em razão de o povo discordar de ter alguém lhe ditando o que fazer. Disto
resultou que os colonos mantivessem o governo em suas mãos impedindo que fossem
governados por poucos. Além disso, a fronteira promoveu a democracia através do
voto, ou do direito ao voto, pois ali os governantes foram mais rápidos e ágeis
que os do Leste para relaxar as exigências do voto para os homens, forçando
idênticas providências para a costa Atlântica. Assim, o aumento de eleitores
reforçou a participação no governo tornando-o mais democrático.
The frontier States
that came into the Union in the first quarter of a century of its existence came
in with democratic suffrage provisions, and had reactive effects of the highest
importance upon the older States whose peoples were being attracted
there. An extension of the franchise became
essential. It was western New York that forced an extension of suffrage in the
constitutional convention of that State in 1821; and it was western Virginia
that compelled the tide-water region to put a more liberal suffrage provision in
the constitution framed in 1830, and to give to the frontier region a more
nearly proportionate representation with the tide-water aristocracy. The rise of
democracy as in effective force in the nation came in with western preponderance
under Jackson and William Henry Harrison, and it meant the triumph of the
frontier – with all of its good and with all of its evil elements.
Em função de a fronteira haver encorajado o
individualismo e expandido o sufrágio, Turner concluiu que a democracia norte americana é
fundamentalmente o resultado de experiências do povo estadunidense na lida com o
Oeste. But the most important
effect of the frontier has been in the promotion of democracy here and in
Europe. The frontier individualism has from the beginning promoted democracy.
Esta tese vai encontrar uma grande
receptividade nos Estados Unidos no princípio século XX, quando da
expansão imperialista norte-americana.
O ensaio de Turner alcança, assim, alturas triunfalistas em sua crença de que a
promoção da democracia individualista era o efeito mais importante da
fronteira.
Forçados a contar com sua própria inteligência e força, os indivíduos
simplesmente descartavam posições de privilégio e desprezavam o exercício do
poder político centralizador.
Não só vantagens ou benefícios
resultaram da democracia promovida pela fronteira. Indícios de riscos foram
apontados e a fronteira parecia provocar períodos de caos econômico na América o
que levou Turner a deter-se em diversos períodos históricos. Concluiu que eles
coincidiam no tempo e no espaço com a abertura de novas fronteiras e
que:
The democracy born of
free land, strong in selfishness and individualism, intolerant of administrative
experience and education, and pressing individual liberty beyond its proper
bounds, has its rangers as well as its benefits. Individualism in America has
allowed a laxity in regard to governmental affairs which has rendered possible
the spoils system and all the manifest evils that follow from the lack of a
highly developed civic spirit.
Concebia a democracia como uma característica de
comunidades agrícolas. Para Turner, no sistema da propriedade da terra se
assentava a chave do surgimento democrático que atingiu o auge no século XIX. É
esse o pano de fundo teórico da proposição do ensaio de 1893: que a
democracia nasce de terra livre ou, como diria alguns anos mais tarde, a
democracia americana não nasceu de um sonho de algum teórico. Veio forte e cheia
de vida da floresta americana e ganhou nova força cada vez que tocou uma nova
fronteira.
2. O mito do jardim e o agrarismo
norte-americano.
A idéia de natureza lhe sugeriu o viés
poético da influência da terra livre como um renascimento, uma regeneração,
um rejuvenescimento do homem e da sociedade quando a civilização encontrava o
sertão ao longo da fronteira. O renascimento e a regeneração são, portanto,
categorias de mito. Um poder beneficente saindo da natureza cria uma
utopia agrária no Oeste. O mito do jardim é assim
construído.
O mito do jardim ratificou a idéia de que a força
dominante da vindoura sociedade do vale do Mississipi seria a agricultura. Tal
idéia derivou das comunidades que surgiam em cada leva do movimento rumo ao
Oeste. Tais comunidades na realidade dedicavam-se ao cultivo da terra,
demandavam o uso do arado e plantavam mantimentos. Desse modo, o grande vale
transformou-se em jardim instituindo na imaginação o Jardim do Mundo, a tal
ponto de converter-se num dos símbolos dominantes ao longo do século XIX, uma
representação coletiva, uma idéia poética que definia a promessa da vida
americana. Neste símbolo foram incorporadas metáforas que expressavam a
fecundidade, o crescimento, o desenvolvimento e o trabalho abençoado da terra,
elevando o agricultor idealizado à uma figura heróica munida de seu instrumento
sagrado, o arado. A idéia de jardim do mundo passou a expressar as aspirações da
sociedade americana e o conteúdo narrativo impresso pela figura do agricultor do
Oeste deu-lhe as características de mito. A imagem de um paraíso agrícola no
Oeste, incorporando as memórias grupais de um estágio de sociedade, mais
simples, primitivo e feliz, sobreviveu como uma força no pensamento e na
política americana.
Embora as imagens do jardim do mundo estivessem
presentes ao longo do século XVIII e as predições de uma sociedade comercial
urbana já se fizessem presentes, o Oeste ficou totalmente dedicado à agricultura
e deste fato derivou como teoria social agrária. Escritos políticos como os de
Franklin, Crèvecoeur e
Jefferson surgiram no contexto da fisiocracia e se alimentaram de reflexões que
exaltavam a composição da população como basicamente de agricultores
trabalhadores e frugais em contraposição à indolência e à extravagância das
cidades do litoral. O foco imaginário concreto era a figura idealizada do homem
do campo, trabalhador rural, agricultor livre.
Os escritos de
Franklin, a partir de meados do século XVIII, já revelavam elementos desta
teoria e ficaram mais evidentes após a independência dos Estados Unidos. Para
ele o grande negócio do continente era a agricultura e o corpo da nação
consistia de agricultores trabalhadores e frugais, habitando o interior dos
estados Americanos. Para una nova sociedade que emergia sob a influência da
abundância da terra à espera da colonização a agricultura era a única
fonte de verdadeira riqueza e nela cada homem, através do trabalho, se torna
virtuoso e feliz, tem o direito natural à terra e que a propriedade da terra
torna o agricultor independente. Neste sentido, a América oferecia um exemplo
ímpar de uma sociedade que encarnava tais características e que, por
conseguinte, o governo deveria dedicar seus esforços aos interesses do
agricultor livre. Idealizava-se, portanto, a figura do homem do campo, foco
concreto para tais doutrinas abstratas convertido na imagem do
trabalhador rural, homem livre, agricultor
livre.
Crèvecoeur forneceu aos Europeus uma apaixonada
idéia de oportunidades de paz, saúde e orgulho na América. Nem Americano, nem
fazendeiro, mas um francês aristocrata que possuía uma plantação, um trecho de 371 acres ao Oeste do rio Hudson, em Orange County,
escreveu:
Aqui não há
famílias aristocratas, corte real, reis, bispos, domínio eclesiástico, nenhum
poder invisível dando o poder visível a uma minoria... Os ricos e pobres não são
tão distantes uns dos outros como são na Europa. Com exceção de algumas cidades,
somos trabalhadores da terra. Somos um povo de cultivadores, esparramados sobre
um imenso território, comunicando-nos uns com os outros através de estradas boas
e rios navegáveis, unidos pela fita de cetim de um governo tênue, respeitando as
leis, sem temer o poder, já que elas são eqüitativas. Somos formados pelo
espírito de comércio sem restrições e livres, porque cada pessoa trabalha para
si. Se viajares pelos distritos rurais, não notarás os castelos hostis e as
mansões orgulhosas; verás apenas a cabana de barro e a barraca miserável nas
quais o gado e os homens ajudam uns aos outros para se manterem quentes, nas
quais moram na fumaça, na pobreza e na indigência. Uma uniformidade agradável de
competência decente aparece em nossas casas. A mais pobre de nossas cabanas é um
lar confortável. O advogado e o comerciante são os títulos mais importantes que
nossas cidades mostram; o título de agricultor é o apelido que nossos habitantes
rurais se orgulham em ter... Não há príncipes para quem trabalhamos e derramamos
nosso sangue: somos a sociedade mais perfeita sobre a terra.
Entusiasticamente exaltou as colônias pela sua
indústria, tolerância e crescente prosperidade nas 12 cartas que descreveu a
América como um paraíso agrário – uma visão que iria inspirar Thomas Jefferson,
Ralph Waldo Emerson e muitos outros escritores. Assim se
expressava Hector St. Jean de Crèvecoeur, em 1782:
As leis, as leis indulgentes os protegem
quando chegam, carimbando-os com o símbolo de adoção; recebem os grandes prêmios
de seus trabalhos; os prêmios acumulados os ajudam a possuir terras; as terras
lhes conferem o título de homens livres e qualquer benefício que os homens
necessitam se adere àquele título. De onde vêm estas leis? De nosso governo. De
onde vem o governo? Deriva-se do gênio original e da vontade suprema do povo,
ratificados e confirmados pela coroa. Esse é o grande elo que nos une... O
americano deve, portanto, amar essa pátria muito mais do que aquela em que ele
ou seus pais nasceram. Neste lugar os frutos de seu trabalho seguem igualmente
ao progresso de seu esforço; seu esforço baseia-se na natureza e no interesse.
Poderia ter um motivo maior? As mulheres e as crianças que antes e em vão lhe
pediam um pedaço de pão, agora são fartas e alegres. Alegremente ajudam o pai a
limpar os campos. A colheita exuberante lhes dará alimento e vestimenta, sem
ninguém, um príncipe déspota, um abade rico, um senhor poderoso, exigir nada.
Aqui a religião demanda muito pouco dele; apenas um salário para o pastor e a
gratidão a Deus. Poderá ele recusar isso? O americano é o homem novo que age sob
novos princípios. Portanto, deve possuir novas idéias e formar opiniões novas.
De uma situação de preguiça forçada, dependência servil, penúria e trabalho
inútil, ele passa para os trabalhos de uma natureza completamente diferente,
premiado por uma subsistência generosa. Esse é um Americano...
Foi o primeiro europeu a desenvolver uma
considerável visão da América e do novo caráter Americano e explorar a imagem do
"melting pot" da América, e em uma notável passagem, ele pergunta:
O que é o americano, esse homem novo? Ele é ou
um europeu ou um descendente de europeus. Portanto, uma mistura estranha de
sangue que jamais será encontrada em outros países. Posso lhe mostrar uma
família cujo pai era inglês, a mãe holandesa, o filho se casou com uma mulher
francesa e cujos filhos têm mulheres de quatro nações diferentes. Ele é
americano que, deixando todos os seus antigos preconceitos e maneiras, recebe
novas maneiras desse novo modo de vida que ele abraçou, do novo governo que
obedece e da nova posição que ele tem. Ele se torna um americano porque foi
recebido no colo carinhoso de nossa Generosa Mãe. Nesse lugar os indivíduos de
todas as nações fundem-se numa nova raça, cujos trabalhos e cuja posteridade
serão um dia causa de grandes transformações no mundo.
Jefferson, por sua vez, avançou nas conotações
políticas do ideal agrário. Para ele a república americana se assentava sobre
uma rocha, a figura do agricultor livre, o bem mais precioso para o estado.
Neste sentido, o futuro da democracia residia na expansão ilimitada da sociedade
agrária para o Oeste e sua política de terras tinha isto como alvo. Suas
doutrinas agrárias, influenciadas pela fisiocracia francesa e por pensadores
radicais, a exemplo de Raynal, que retratavam o agricultor como símbolo
republicano, ganharam um tom nacionalista após a Revolução e a América passou a
encarnar concretamente o sonho do que fora a utopia na Europa. O estágio
subseqüente da utopia agrária contava com a realização mais que perfeita do
ideal agrário em uma escala bem mais ampla.
O Meio Oeste passou a receber atributos
proféticos, a exemplo das próprias palavras de Crèvecoeur: Considero a
colonização dessas terras aguadas por esse rio (Ohio) como uma das melhores
conquistas que poderia ser dada ao homem. O destino dela será a fonte de força e
riqueza e a glória futura dos Estados Unidos.
Turner sustentava que a democracia foi uma
característica das comunidades agrícolas e, desse modo, elas seriam necessárias
para estabelecer e assentar o agricultor. O viés econômico de sua análise sobre
a fronteira foi iluminado pelo mito do jardim, ou seja, que a democracia
americana teve sua origem na floresta, no rejuvenescimento recorrente do homem e
da sociedade ao longo da fronteira. O uso de metáforas, na realidade, é um mero
recurso discursivo sobre o racional, exalta o nascimento da democracia e retrata
uma natureza maternal e benevolente que institui uma utopia agrária no Oeste.
Faragher argumenta com propriedade que a democracia da fronteira de Turner é o
ideal agrário de Jefferson revestido de análise histórica.
A outra idéia que definiu a fronteira foi a da
civilização e teve a conseqüência de comprometê-lo à teoria pela qual se
afirma que todas as sociedades, inclusive aquela de Oestes sucessivos,
desenvolvem-se por vários estágios, cada vez mais complexos e
progressivos. A
aceitação dessa teoria por Turner o envolveu em dificuldades.
Tal pressuposto relegava aos homens da fronteira
o status primitivo e contradizia diretamente com a imagem do agricultor virtuoso
que labora no jardim do mundo. A idéia implicava que o agricultor do Oeste era
uma pessoa rude e não-refinada, representante de um estágio primitivo da
evolução social. Isso se deve ao fato de a teoria de estágios
sociais ser contrária ao conceito do agricultor do Oeste como o sitiante rodeado
por um esplendor utópico.
Esta contradição é visível nos esforços de Turner
para conciliar sua crença de que os valores sociais mais elevados se encontravam
nas comunidades da fronteira agrícola, com sua convicção de que a sociedade
melhorava enquanto evoluía da simplicidade pastoril à industrialização. Enquanto
tratava das origens da democracia no Oeste, Turner considerava boa a influência
da fronteira. Essa atitude era inevitável enquanto se mantinha a doutrina de que
a sociedade da fronteira era moldada pela influência da terra livre. Terra livre
era a natureza e a natureza nesse sistema de idéias é algo simplesmente
benigno.
Enfatizava, portanto, o determinismo geográfico,
a colonização agrícola e a afirmação da democracia e que todos esses elementos
podiam ser recuperados através do mito do jardim do mundo. A tese da fronteira
para explicar os acontecimentos atuais se desenvolvida a partir do mito do
jardim e a ênfase sobre a colonização agrícola o colocam no contexto
da teoria agrária que flui da Inglaterra e da França do século XVIII
através de Jefferson. A imersão de Turner neste fluxo de influência intelectual
teve o efeito desastroso de comprometê-lo a certas premissas arcaicas que
impediam a abordagem dos problemas sociais do século XX.
Quando Turner invoca o conceito de civilização a
questão torna-se mais complexa. Sua convicção básica era de que os valores
sociais mais altos se encontravam na sociedade relativamente primitiva no
interior da fronteira agrícola. Contudo, a teoria dos estágios sociais colocava
os valores mais altos no fim do processo, justamente na sociedade urbana
industrial, entre o desenvolvimento das manufaturas e a vida da cidade, a qual
Jefferson e outros teóricos agrários haviam considerado perigosa para a pureza
social.
Turner titubeava entre os dois pontos de vista.
Referiu-se à evolução de cada região sucessiva do Oeste como um estágio mais
elevado, de acordo com a teoria ortodoxa da civilização e do
progresso.Baseou seu valor mais alto, a democracia, sobre a terra livre. O
avanço rumo ao Oeste da civilização através do continente fez com que a terra
livre desaparecesse. O que aconteceria com a democracia?
A dificuldade tornou-se maior porque quando se
associava a democracia com a terra livre ele a tinha ligado inevitavelmente à
idéia da natureza como fonte de valores espirituais. Todas as tonalidades de sua
concepção de democracia estavam maculadas com o primitivismo cultural e tendiam
a se opor à idéia da civilização. Porém, Turner aceitara a idéia de civilização
como uma descrição geral da sociedade que tinha se expandido através do
continente e, com o desaparecimento da terra livre, esta idéia era o único
princípio remanescente com a qual podia realizar a análise da sociedade
americana contemporânea. Como a democracia estava ligada à idéia da natureza e
parecia não ter nenhuma relação lógica com a civilização, a conclusão posta por
Turner era que a sociedade americana pós-fronteira não continha nenhuma força
rumo à democracia.
Com o desaparecimento da fronteira desapareciam
também as bases da democracia e Turner tornou-se prisioneiro das assunções
hauridas do mito do jardim. Ele
próprio admitiu que o aparato teórico da tradição agrária não ajudava a entender
a América urbana e industrializada. Voltou-se para a idéia não tão convincente
de que as universidades estaduais do Meio Oeste poderiam salvar a democracia
produzindo líderes treinados. Mais
tarde, ele colocou a ciência ao lado da educação como outra força à qual os
homens podem recorrer em sua perplexidade moderna. Voltou à convicção que tinha
no tempo de faculdade: uma confiança nem na natureza nem na civilização, mas
simplesmente no homem, no homem comum. Esta afirmação é uma admissão de que a
noção de democracia nascida da terra livre, colorida pelo primitivismo, não é um
instrumento adequado para lidar com um mundo dominado pela indústria,
urbanização e conflitos internacionais.
Semelhante às afirmações do mito do sonho
americano, contrário à sociedade americana urbana e industrial, o mito da
fronteira continuou firme na mente americana muito tempo depois que foi
declarado o seu fechamento. A
dificuldade mais importante da tradição agrária americana é ter aceitado as
idéias contraditórias de natureza e de civilização como o grande princípio da
interpretação histórica e social.
3. A nova historiografia do
Oeste.
A partir dos anos 30, logo após a morte de
Turner, inúmeros estudos críticos foram desenvolvidos e passaram a propor
leituras alternativas da tese da fronteira. As contestações a partir daí
estruturadas passaram a negar a existência de uma “terra livre” e a incidir na
origem das instituições democráticas, importadas do Leste. Igualmente se rebateu
a afirmação de que o Oeste funcionou como válvula de escape para o
desenvolvimento urbano e se demoliu o mito do individualismo da fronteira. A
conclusão sumária, nos anos 40, era que a tese da fronteira exigia uma revisão
completa no que havia proposto para explicar o desenvolvimento
americano.
Estudos passaram a clamar por uma história
multinacional e multi-étnica para o Oeste, por uma história colonial do Oeste,
por uma história social e ambiental do Oeste, por uma história do povo
americano-mexicano, por uma narrativa épica do povo Métis, por uma história
urbana do Oeste. Passou-se a contestar o espírito criador e inovador do homem do
Oeste e se reivindicar uma história dos povos excluídos.
A partir dos anos 80 conveniou-se catalogar os
autores da história do Oeste em “velhos” e “novos”, configuração que não se
revelou muito adequada. Na realidade, muitas obras identificadas como “a nova
história do Oeste” foram escritas por historiadores de uma geração anterior aos
anos 50. A “nova história do Oeste” foi escrita por historiadores atingidos pela
experiência do Vietnã e pelas contestações nacionais quando a fronteira foi
re-pensada a partir da visão dos índios, revelando-se uma rica história de
colaboração e conflito. Passou-se a combinar história e etnografia, derivando
estudos questionadores do impacto dos índios americanos sobre a cultura
americana. Foram incluídos no rol dos novos objetos a experiência de mulheres e
de minorias étnicas, a violência e o meio ambiente. O tema ambiental tornou-se
uma das tendências mais recentes e mais importantes da historiografia do Oeste.
Do ponto de vista mais amplo, as abordagens alternativas emergiram a partir de
uma reconsideração da tese da fronteira.
Entre os questionamentos endereçados à tese da
fronteira e ao próprio sentido de Oeste, iluminadores de uma vastíssima produção
acadêmica ao longo do século XX, abre-se espaço para o reconhecimento do
trabalho de Turner em termos de engajamento com seu tempo, com os problemas de
seu tempo. Tal preocupação injetou grande energia a sua história, ainda que o
emprego de termo fronteira revele tal ausência de historicismo e não
contemple a dinâmica de uma trajetória de três séculos de uso, com um amplo
leque de significados. Turner estudou a fronteira não apenas porque foi sua área
de interesse, mas, sobretudo porque acreditava que sua história poderia iluminar
a história da América. Seu grande poder, sem dúvida alguma, deriva do
compromisso de estudo de seu significado para o americano, mesmo que isto
devolva ao passado a segurança e a arrogância dos vitoriosos na conquista do
Oeste.
Um sentido que se contrapõe à elaboração
conceitual de Turner, que abarca de maneira mais ampla uma discussão
interessante é o que indica a fronteira como um lugar de encontro e colisão de
culturas, de mundos distintos e em geral incompatíveis. La frontera es, así, el lugar de encuentro entre “yo” y “el otro”, ese
que es distinto a mí y, por tanto, inferior. La frontera es una tierra en
disputa. Es un espacio cultural o, si prefieren, un texto, que se escribe con
sangre.