ENTRE A IDÉIA DE
TERRITÓRIO E A LÓGICA DA REDE:
UMA REFLEXÃO A RESPEITO DO
BRASIL NO LIMIAR DO SÉCULO XXI

Profa. Dra. Vânia Rubia
Farias Vlach
Instituto de Geografia
Universidade F. de Uberlândia –
Brasil
Introdução
Defendemos a tese de que a idéia de
território desempenhou (e desempenha !) um papel de importância fundamental na
História do Estado brasileiro. A enorme e extraordinária expansão da estreita
faixa de terra ao longo do oceano Atlântico em direção ao centro-oeste da
América do Sul, de um lado; e, de outro, a transformação da ex-colônia do
Império Português da América em um dos mais vastos Estados do mundo
contemporâneo fizeram do território a idéia chave que levou, inicialmente, à
construção de um Estado e, mais tarde, de uma nação brasileira. De fato, a força
simbólica do território foi o instrumento que as elites (políticas e
intelectuais, civis e militares) utilizaram para construir esse Estado-nação,
hoje dotado do aparelho burocrático mais moderno da América Latina, não obstante
o conservadorismo político de seus dirigentes. Impõe-se, pois, a explicação
desse processo, de natureza política e geopolítica (simultaneamente).
Antes, porém, de analisarmos essa sociedade cujo Estado-nação se
institucionalizou graças à força da idéia de território, consideramos importante
registrar que o território é uma das representações possíveis do espaço. Cada
cultura desenvolve uma (ou mais) representações dessa categoria. Por sua vez, a
idéia de território se tornou “un moyen
de définir et de délimiter une communauté politiquement pertinente” (BADIE,
1995:12): o Estado-nação, desde a assinatura dos tratados de paz de Westfália
(1648). Em outras palavras, podemos afirmar que, ao fundar o Estado-nação, a
idéia de território – também conhecida como princípio de territorialidade – se
transformou no instrumento da ação política do/no mundo moderno.
Simultaneamente, o princípio de territorialidade fundou o seu corolário: um
sistema internacional de Estados-nações (o chamado “concerto das nações”,
posteriormente denominado “ordem mundial”).
Dessa maneira, o princípio de territorialidade está intimamente
relacionado à História da Europa Ocidental. Foi lá que, pela primeira vez, o
Estado se afirmou como a autoridade
política soberana no interior das fronteiras de um certo território. Tal
monopólio da ação política na escala interna explica porque o Estado
instrumentalizou a idéia de território para estabelecer a identidade de sua
nação. Uma vez estabelecida a identidade nacional, e reconhecida a soberania do
Estado-nação internamente, esse pôde apresentar-se como o representante de seu
povo na arena política mundial.
Por outro
lado, após a “dupla revolução” de fins do século XVIII, o Estado-nação
consagrou-se como a forma, por excelência, de organização política da sociedade
moderna. Compreende-se assim porque, ao longo de um processo lento, e mais ou
menos tumultuado, as ex-colônias ibéricas colocaram em prática essa forma de
organização político-territorial na América Meridional nas primeiras décadas do
século XIX.
A idéia de território e a construção do
Estado-nação brasileiro
A partir
dessas considerações iniciais, procuraremos demonstrar nossa tese de que a idéia
de território marcou/marca profundamente o Brasil, qualquer que seja a
perspectiva de análise que privilegiemos.
Convém lembrar que, às vésperas da
independência da ex-colônia portuguesa (1822), o Brasil possuía cerca de 7,5
quilômetros quadrados, onde se distribuíam de maneira muito desigual 5 milhões
de habitantes aproximadamente, dos quais 2 milhões eram brancos (na verdade,
mestiços em sua maior parte), 1,5 milhão eram escravos africanos, 500 000
indígenas “integrados” à economia, e 1 milhão eram indígenas isolados. O fato de
que o “norte” do Brasil era sobretudo habitado por mestiços, e o “sul” por uma
maioria branca – tendência que o processo de imigração européia aprofundou ao
longo da segunda metade do século XIX – explica porque os dirigentes políticos,
temendo uma divisão do território brasileiro em dois (“o norte” e “o sul”),
decidiram transformar essa enorme superfície em “o grande império da
América”.
Para realizarem essa ambição
política, as elites políticas e intelectuais elaboraram um projeto nacional (na
linguagem de nossos dias) que não hesitou a conciliar uma monarquia
constitucional apoiada nos princípios liberais do século XIX com uma instituição
que, na prática, negava esses mesmos princípios: a escravidão, pois, a seu ver,
esse era o preço a pagar para evitar qualquer tentativa de separatismo por parte
de algumas oligarquias regionais. Sem nenhuma dúvida, esse projeto político
conferiu prioridade à formação de um Estado no território luso-brasileiro.
Registre-se, por outro lado, que os Estados Unidos só aboliram a escravidão na
década de 1860, após a Guerra de Secessão, que ameaçou inclusive a integridade
territorial desse Estado-nação.
A
constituição inicial de um Estado explica porque a construção de uma nação
brasileira foi um processo muito lento, ao contrário do que ocorreu nos Estados
Unidos e, guardadas as devidas proporções, ao que também ocorreu na América
Meridional de origem espanhola, onde os vários Estados republicanos afirmaram,
cada qual, sua unidade nacional por meio de uma forte oposição aos vizinhos mais
próximos. Não poucas vezes tais oposições implicaram em rivalidades políticas
sobre territórios disputados por duas ou três repúblicas, o que levou à guerras
entre elas. Essas guerras contribuíram para criar e, posteriormente, consolidar
a identidade nacional de cada um desses jovens Estados.
Pensamos que a idéia de território se tornou a “chave” da política e da
geopolítica do Estado-nação brasileiro sobretudo a partir da década de 1920. De
um lado, isso significa que a instauração do regime político republicano no
Brasil (1889) não havia, até então, conseguido construir uma nação brasileira, o
objetivo que os republicanos haviam definido como prioritário; de outro lado,
que o antigo projeto de fazer do Brasil “o grande império da América” corria o
risco de se esvaziar, caso o Estado não definisse uma política que levasse em
conta as necessidades materiais e as aspirações do povo.
Desde o início da década de 1920, as elites intelectuais e os dirigentes
brasileiros compreenderam, finalmente, que a manutenção da unidade política do
Brasil (por muitos entendida como a maior realização do Império do Brasil) não
podia mais adiar a construção de uma nação brasileira, tarefa muito complexa se
consideramos as profundas diferenças entre suas formações sociais.
Paralelamente, aqueles que introduziram a geopolítica no Brasil fizeram da
manutenção da unidade nacional do Estado brasileiro o objeto privilegiado de sua
reflexão.
Assim, podemos afirmar que, ao defender a proposta de transferência da
capital do litoral em direção ao interior do país no decorrer da década de 1920,
Everardo Backheuser lançou o primeiro movimento de idéias geopolíticas no
Brasil. É preciso lembrar que tal transferência foi uma das estratégias que ele
apontou como necessárias à manutenção da unidade político-territorial do Estado
brasileiro. Nas décadas de 1930 e 1940, apresentou outras estratégias tendo em
vista o mesmo objetivo: 1) uma divisão regional do Estado brasileiro; 2) a
criação de territórios federais nas fronteiras do Brasil. Por sua vez, o governo
Vargas colocou em prática uma política territorial de caráter geopolítico: a
“marcha para o oeste” (iniciada em 1938). Backheuser qualificou essa proposta de
ocupação e povoamento da região centro-oeste como o “programa geopolítico”
desse governo.
Ao destacar o
significado simbólico do território na política do Brasil, Backheuser deu às
suas propostas um caráter geopolítico. Esse primeiro movimento de idéias
geopolíticas culminou no que seria, posteriormente, conhecido como a “escola
brasileira de geopolítica”, cujo ponto de partida foi dado pelo capitão Mario
Travassos em 1930. Não há a menor sombra de dúvida que o livro Projeção Continental do Brasil (1935),
de sua autoria, expõe os fundamentos políticos e geográficos dessa escola.
Interessado
no engrandecimento do Estado brasileiro, Travassos propôs que o governo de
Getúlio Dorneles Vargas (sem citá-lo !) definisse uma infra-estrutura no setor
de transportes baseada “nas linhas
naturais ou geográficas de circulação do próprio território e contendo as
adaptações ou variantes que as possibilidades humanas põem hoje ao serviço dos
homens de Estado para a consecução das finalidades políticas das coletividades
que dirigem” (TRAVASSOS, 1935:186). A sintonia entre as propostas de
Travassos e os objetivos do governo Vargas pode ser resumida pelo seguinte
“quarteto” : unidade nacional – crescimento econômico – defesa militar –
influência regional (na América Latina).
De fato, o
“Estado Novo” se organizou, e organizou a atividade política em torno da defesa
do nacionalismo. Do ponto de vista da política externa, as medidas tomadas
procuraram efetuar uma adequação entre o “tipo continental” do território
brasileiro e a sua ambição de exercer hegemonia política na América do Sul (a
“projeção continental do Brasil”). De qualquer maneira, ao término da ditadura
de Vargas (1945), uma nação brasileira havia se constituído (não obstante a
cidadania incompleta), e o Brasil era o único Estado-nação da América Latina que
efetivamente se destacava na cena política mundial.
Quando
Juscelino Kubitschek de Oliveira tornou-se presidente do Brasil (1956), decidiu
colocar em prática a disposição da Constituição de 1946 segundo a qual a capital
do Brasil deveria ser transferida do litoral para o Planalto Central Brasileiro.
A construção da nova capital constituía a “meta síntese” de seu programa
político, o “Plano de Metas”. Por conseguinte, a idéia de território voltou a
ocupar uma posição de primeira importância no discurso e na prática política do
Estado brasileiro. A força simbólica desse idéia foi reforçada pelo presidente
ao apresentar a construção de Brasília como “o instrumento” por meio do qual “o brasileiro poderia tomar posse do seu
imenso território” (KUBITSCHEK, 1975:9). A representação geopolítica de
incompatibilidade física entre governo e povo (o Palácio do Catete, no Rio de
Janeiro, havia sido palco de várias manifestações da insatisfação popular),
permitiu às lideranças políticas defenderem a transferência da capital para o
interior como um “imperativo nacional”: garantir o povoamento e a ocupação de
imensas áreas, até então praticamente abandonadas a sua própria sorte. Em outras
palavras, a idéia de território serviu de suporte à uma decisão do Estado, cujos
dirigentes o impuseram à nação sem provocar maiores contestações: é dever do
Estado-nação manter a unidade do vasto território; levar “ordem e progresso” às
regiões brasileiras; concretizar a “marcha para o oeste” do governo Vargas;
fazer de Brasília o centro político de um Estado moderno, em condições de
exercer hegemonia na América Latina.
A “escola brasileira de geopolítica”
Por outro
lado, deve-se destacar que os militares marcaram a geopolítica brasileira com a
lógica própria de seus argumentos e estratégias de uma maneira tão forte que,
até muito recentemente, a geopolítica foi entendida como um instrumento do
Estado para controlar, politica e militarmente, a nação brasileira. Isso explica
as inextrincáveis relações entre os geopolíticos e os fundadores do pensamento
autoritário brasileiro: Alberto Torres e Oliveira Vianna.
Os
geopolíticos encontraram na Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em 1949, um
espaço privilegiado para exposição, discussão e disseminação de suas idéias e
projetos políticos. Por isso mesmo, Carlos de Meira Mattos não hesitou a afirmar
que “é a ESG responsável por uma doutrina
política essencialmente brasileira, fundamentada na dinâmica da aplicação do
poder nacional” (MATTOS, 1975:60). A originalidade da “escola brasileira de
geopolítica” está em que ela se estruturou a partir de uma reflexão a respeito
das estratégias e meios necessários para a consolidação do poder (interno e
externo) do Estado brasileiro.
Como grandes
defensores da manutenção da unidade político-territorial do Estado brasileiro,
desde a década de 1950 os geopolíticos militares privilegiaram a estratégia de
efetiva integração entre suas regiões. Assim, a política d’aménagement du territoire, colocada em
prática independentemente do caráter civil ou militar dos governos do Brasil,
permitiu a valorização econômica de regiões que não tinham praticamente relação
com o centro político e econômico do Brasil, hoje representado pelo eixo São
Paulo-Rio de Janeiro-Belo Horizonte (Brasília é apenas o centro administrativo).
Essa política acentuou a unidade política e territorial do Estado brasileiro. A
manutenção de tal unidade aumentou, seja no seio das elites em geral, seja no
seio das camadas populares, o sentimento de orgulho nacional.
À medida que
a integração nacional se consolidava, o Estado brasileiro aumentou sua
influência política, econômica e militar na América Latina, bem como sua
participação no mercado mundial e nos principais órgãos das instituições
políticas internacionais (a exemplo da Organização das Nações Unidas-ONU). Esse
conjunto de fenômenos explica porque seus dirigentes reivindicavam, para o
Estado brasileiro, o direito de ocupar uma posição privilegiada junto aos
Estados mais poderosos do mundo, e porque o consideravam em condições de exercer
uma hegemonia regional. Assim, os generais Golbery do Couto e Silva e Carlos de
Meira Mattos, os maiores expoentes da “escola brasileira de geopolítica” (depois
de Travassos) não hesitaram à reivindicar, para o Brasil, a posição de “grande
potência”, sobretudo durante o período do “milagre econômico brasileiro”
(1968-1974).
É preciso
assinalar que, de meados da década de 1960 até meados da década de 1980, quando
controlados por aparelhos militares, os Estados brasileiro e argentino
exacerbaram sua rivalidade em torno do exercício de uma hegemonia na América
Latina. O caráter geopolítico dessa rivalidade contribuiu para explicar porque,
na América Latina de uma maneira geral, e no Brasil, em particular, a
geopolítica se tornou sinônimo de uma prática política militar e dos militares.
Em meados dos
anos 1980, porém, o retorno da democracia tornou-se uma realidade no Brasil,
onde Golbery do Couto e Silva foi, também, o mentor de seu retorno ao Estado de
direito, o que é perfeitamente compreensível se levamos em conta sua concepção
de que o poder do Estado depende de um equilíbrio dinâmico entre movimentos de
“sístole” e “diástole”; isto é, concentração/centralização e descentralização,
respectivamente. Nesse contexto de reconquista de direitos políticos e de
liberdade de expressão, a geopolítica deixaria de ser uma corrente de pensamento
e uma prática política desenvolvida essencialmente por militares, com o objetivo
de expansão territorial de um Estado, ou com a finalidade de controlar o povo de
um Estado.
A força simbólica da idéia de território na cena mundial de fins do
século XX: uma nova concepção de geopolítica
De fato, os
impasses políticos, econômicos, militares e diplomáticos que afligiam muito
vários povos no início da década de 1980, mostraram a um grupo reduzido de
especialistas e não especialistas que a metodologia predominante nas correntes
de esquerda – uma abordagem científica
baseada nas relações entre as classes sociais criadas pela sociedade
capitalista e moderna – não era mais
capaz de explicar satisfatoriamente a crescente mundialização da economia, e
muito menos os impasses políticos que, pela primeira vez, haviam conduzido
Estados “socialistas” a se fazerem a guerra.
Se os
jornalistas foram os primeiros a empregar o termo “geopolítica” – proscrito na
Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial – , para explicar a guerra entre
o Camboja e o Vietnã (1979-1989), um geógrafo foi o primeiro a registrar, de
maneira pertinente, que essa guerra pelo contrôle de um território (uma parte do
delta do rio Mekong), exigia uma nova abordagem científica. Em suas palavras:
“la façon de poser les problèmes en
termes économiques et politiques ou de rapports de classes était pour la
première fois spectaculairement mise en cause par une autre représentation,
celle qui donnait de l’importance aux territoires et aux enjeux économiques,
stratégiques et surtout symboliques qu’ils représentaient pour des Etats et pour
des peuples” (LACOSTE, 1993:15).
Registremos,
pois, que a geopolítica é essa maneira de observar o mundo a partir de
rivalidades de poder suscitadas por um território. Ao contrário do que havia
caracterizado essa corrente de pensamento até então (cf. item anterior), a
geopolítica passou a ser objeto de
debates abertos aos cidadãos (ou propostos pelos cidadãos) de um Estado-nação,
de uma região, ou de uma cidade a respeito de problemas relacionados ao seu
território, e que afetam o seu cotidiano.
Essa é a razão pela qual a política ocupa um lugar central nessa nova
concepção de geopolítica. Deve-se precisar que a política não se limita mais aos
debates no interior da polis, como na
antiga Atenas, onde os políticos, os intelectuais e os indivíduos reconhecidos
como cidadãos discutiam (e resolviam) seus problemas de maneira democrática na
praça pública.
Essa nova
concepção de geopolítica é indissociável da liberdade de opinião e da liberdade
de imprensa, cujo recente fortalecimento na cena política (nacional e mundial)
depende da existência, e relativa generalização, de um regime democrático. É
apenas em um contexto democrático que os meios de comunicação podem disseminar,
no tecido social de um Estado (ou de uma nação), as idéias que líderes políticos
(ou religiosos), individualmente ou como representantes de um povo, se fazem de
um território que é objeto de disputa vis-à-vis de outro Estado ou povo (ou de
outros Estados ou povos), ou vis-à-vis de outras minorias (étnicas ou
religiosas). A razão e a paixão que a disputa pelo mesmo território suscitam nos
vários grupos envolvidos favorecem
o aparecimento de idéias que representam os pontos de vista de cada povo,
minoria ou Estado interessado nessa disputa. Dessa maneira, cada povo, minoria
ou Estado procura justificar sua reivindicação à posse ou controle desse
território recorrendo às idéias segundo as quais esse território lhe pertence
com base, por exemplo, em antigos direitos históricos, ou com base nas
conquistas militares de seus antigos líderes políticos. Algumas vezes, cada
grupo lança mão até de mapas (verdadeiros ou falsos, pouco importa) em que o
território objeto de disputa aparece no interior das fronteiras geográficas que
cada grupo político reconhece como as de seu povo, de sua nação ou de seu
Estado. Seguindo a proposta de Yves Lacoste, podemos denominar as idéias
construídas para reivindicar ou justificar os direitos de cada povo, minoria ou
Estado ao território disputado, de representações geopolíticas.
Não obstante
os “ventos democráticos” haverem igualmente atingido a geopolítica brasileira no
decorrer da década de 1980, dentre os especialistas civis, apenas um reduzido
número de geógrafos (ou outros) continuou, ou tem-se mostrado interessado, em
realizar pesquisas na área da geopolítica. De qualquer maneira, suas análises
corroboram o papel central que a idéia de território desempenha nos atuais
conflitos políticos e econômicos que marcam o Estado brasileiro internamente
(e/ou externamente).
Coexistência entre o princípio de
territorialidade e a lógica da rede
O processo de
crescente mundialização da economia desde a década de 1980 foi apresentado como
um processo recente, irreversível e como o fenômeno que marcaria o início de uma
nova ordem mundial. Essa nova ordem mundial descaracterizaria o Estado-nação e
seu elemento fundador, o princípio de territorialidade. A caracterização da
mundialização como um processo recente tentou encobrir o fato de que o
Estado-nação não limitou o desenvolvimento das atividades econômicas às
fronteiras de seu território; muito pelo contrário. A partir de fins do século
XIX, exportações de capitais e investimentos produtivos fora do continente
europeu tornaram-se as grandes estratégias da Grã-Bretanha para impor sua
hegemonia ao mundo.
Em outras
palavras, os fluxos de capitais que partiram da Grã-Bretanha e se dirigiram aos
quatro cantos do mundo (mas principalmente para os Estados Unidos) em fins do
século XIX foram os precursores do atual processo de mundialização ... da
economia (é bom precisar !).
Tais fluxos de capitais correspondiam ao que hoje podemos denominar de lógica da
rede, a lógica do processo de mundialização da economia. A rede, em poucas
palavras, pode ser definida como “um
conjunto de nós interconectados” (CASTELLS, 1999-I:498), que configuram
estruturas abertas, flexíveis, virtuais e/ou reais, um espaço de fluxos (desde
os fluxos do capital até os simbólicos) e práticas sociais de tempo
compartilhado à velocidade da luz, o que mostra seu caráter altamente dinâmico.
Durante o
apogeu do Estado-nação como a instituição política responsável pela ordem
mundial, ocorreu uma coexistência pacífica entre o princípio de territorialidade
e a lógica da rede. Pelo menos até
meados do século XX, tal coexistência não provocou problemas maiores à
dinâmica da ordem mundial. Na década de 1990, porém, desenvolveu-se uma
verdadeira oposição entre essas duas lógicas: vários especialistas enfatizaram
apenas as contradições entre o território – estático por sua localização, mas
dinâmico pela vida de relações que a sociedade lhe imprime – , e a rede – cuja
dinâmica libera o espaço e o tempo de quase todos os obstáculos, e torna os
meios materiais que a veiculam imateriais – , ignorando que ambas podem atuar de
maneira complementar, como ocorreu/ocorre de fato; considere-se o caso dos
Estados Unidos. Suas lideranças políticas e o empresariado souberam aliar as
vantagens de um vasto território com as vantagens oferecidas pela flexibilidade
e mobilidade da rede, quer deslocando estabelecimentos industriais de suas
multinacionais em todos os continentes a partir de 1930, quer disseminando sua
tecnologia no mundo (mas mantendo os laboratórios de “pesquisa e
desenvolvimento” em seu território !), quer por intermédio de suas redes de
influência financeira, cultural, diplomática e militar no mundo inteiro, de
sorte que, ao término da bipolaridade, “le leadership américain conservait une part
essentielle de ses moyens grâce à ses réseaux d’influence, à sa maîtrise des
circuits monétaires, à sa capacité de mobiliser et d’entraîner l’économie
mondiale” (BADIE, 1995:147).
Os adeptos da
mundialização querem nos fazer crer que as empresas transnacionais se
mundializaram, de maneira que não atuariam mais a serviço dos interesses de seus
respectivos Estados nacionais. Porém, dados estatísticos mostram que, em meados
da década de 1990, as maiores transnacionais americanas, alemãs e japonesas
realizavam apenas 15% de suas atividades tecnológicas fora de seus territórios
nacionais. Por conseguinte, o desenvolvimento da tecnologia de ponta não se
mundializou. As atividades que geram o maior valor adicionado produzido pelas
transnacionais continuam sendo realizadas em suas bases nacionais, onde também
continuam sediados a maior parte de seus empregados, sobretudo aqueles que
participam das decisões que definem e redefinem as estratégias dessas empresas.
No início da década de 1990, 70% do emprego total das transnacionais americanas
se concentrava no território dos Estados Unidos, e 78% do total dos bens dessas
empresas correspondia a ativos nacionais.
Em outras
palavras: as transnacionais não transferiram seus laboratórios de “pesquisa e
desenvolvimento” para fora do território de seus Estados-nações de origem. Esse fato é um aspecto de primeira
importância na análise do processo de mundialização, pois sua dinâmica se apoia
fortemente no desenvolvimento da tecnologia, particularmente nos setores de
ponta (eletrônica, microeletrônica, informática, computação,
telecomunicações/radiodifusão, optoeletrônica, engenharia genética etc.).
Afinal, “uma revolução tecnológica
concentrada nas tecnologias de informação está remodelando a base material da
sociedade em ritmo acelerado” (CASTELLS, 1999-I:21).
À exceção do
setor financeiro, muito próximo de se tornar um mercado efetivamente
mundializado, parece-nos que o mercado mundial é, antes de mais nada, um mito. A
força desse mito estaria em sua tentativa de eliminar o Estado-nação da arena
política e da arena econômica, e substituí-lo pelo mercado, como se o mercado
fosse capaz de resolver todos os problemas em um mundo finalmente homogeneizado
pelas suas únicas leis. Terminada a guerra fria, o mercado mundial ocuparia o
lugar de gendarme em um mundo sem
conflitos. Os defensores da mundialização parecem ignorar que, diante da
desorganização do sistema econômico mundial proposto pelo acordo de Bretton
Woods (1944), o governo americano tomou a decisão política de expandir os
mercados financeiros internacionais para poder reafirmar a supremacia do dólar
na década de 1970. Deve-se assinalar que a expansão ininterrupta desses mercados
acabou originando o atual mercado financeiro mundial. Por outro lado, a atuação
econômica das transnacionais mostra que se trata de poderosas empresas nacionais
cujas operações têm o mundo como palco de suas atividades (produtivas ou de
prestação de serviços). A empresa transnacional é, pois, um outro mito da
mundialização.
Se a
mundialização mostra que há uma crescente interdependência dos pontos de vista
das finanças e da produção propriamente dita, e se, nesse processo, o poder
representado pelo Estado-nação foi bastante “arranhado”, parece-nos exagerado
afirmar que o Estado-nação perdeu completamente sua razão de ser. É preciso
lembrar que o Estado-nação foi um dos primeiros a promover o desenvolvimento das
redes econômicas, de maneira que ele é, há algum tempo, um dos agentes da
mundialização. E não se trata de um agente qualquer: trata-se do agente que
define as condições de implantação das empresas transnacionais aqui, acolá, ou
estabelece os termos de uma concorrência internacional, que propõe uma
“unificação” econômica, política e militar de antigos Estados-nações em torno de
um projeto de reconquista da hegemonia mundial (a exemplo da União
Européia), ou a criação de um
mercado regional (ou a integração a um mercado já existente).
O princípio
de territorialidade, certamente “arranhado” pelas novas relações de poder
representadas pela(s) rede(s), não significa o fim do Estado-nação.
Redimensionado, o Estado “prolifera sob a
forma de governos locais e regionais que se espalham pelo mundo com seus
projetos, formam eleitorados e negociam com governos nacionais, empresas
multinacionais e órgãos internacionais. A era da globalização da economia também
é a era da localização da constituição política. O que os governos locais e
regionais não têm em termos de poder e recursos é compensado pela flexibilidade
e atuação em redes. Eles são o único páreo, se é que existe algum, para o
dinamismo das redes globais de riqueza e informação” (CASTELLS,
1999-III:435).
A organização
das instituições da União Européia, para citarmos um exemplo, permite-nos falar
em um Estado em rede, pois o poder (sentido amplo) é compartilhado “de forma que nenhum nó, nem o mais poderoso,
pode ignorar os outros, nem mesmo os menores, no processo decisório”
(CASTELLS, 1999-III:407).
Entre a idéia de território e a lógica da rede
no Brasil: uma reflexão
À medida que
se intensificaram os debates políticos para o restabelecimento da democracia, o
território brasileiro (seja como valor simbólico, seja como objeto de interesses
precisos) ocupou, novamente, um
lugar privilegiado, e permitiu o surgimento de inúmeras representações
contraditórias a respeito de seu significado na política do Estado brasileiro.
Foi assim que
o referendo a respeito do regime e
da forma de governo, realizado em 1993, deu margem ao debate “parlamentarismo x
presidencialismo”, um debate que ganhou um caráter geopolítico. Em primeiro
lugar, porque as implicações de ordem político-administrativa colocadas pelo
tamanho do território brasileiro receberam uma atenção especial por parte de
todos os interessados (parlamentaristas, monarquistas, republicanos, de direita
ou de esquerda). Afinal, como garantir que todos os brasileiros tivessem acesso
à informação, pudessem participar desse debate, e manifestar nas urnas uma
escolha realmente independente? Apenas o rádio e a televisão poderiam atingir
todos, mas ... não se pode esquecer o monopólio que a rede Globo exercia nas
comunicações brasileiras. Em
segundo lugar, porque no bojo das discussões que permitiram a aprovação de “uma emenda comum propondo o plebiscito a
favor do parlamentarismo e da monarquia” (ALENCASTRO, 1993:67), criou-se
mais um Estado federal: o Estado de Tocantins, o que nos permite assinalar, mais
uma vez, a importância do território na História do Brasil. Aqui se concretizou
uma idéia de território: os criadores de gado do norte do Estado de Goiás
votaram a favor dos parlamentaristas em troca do apoio político para a formação
do Estado de Tocantins (1988). Em terceiro lugar, porque a unidade
político-territorial do Brasil foi, mais uma vez, contestada pelo aparecimento
de alguns movimentos separatistas, alguns na região Sul (a exemplo da República
do Pampa Gaúcho, no Rio Grande do Sul), um na cidade de Rio Claro, no Estado de
São Paulo (A República de São Paulo), e outro na região Nordeste (República
Federativa do Nordeste). Porém, o povo, de uma maneira geral, não aceitou
nenhuma das propostas separatistas. Isso nos permite afirmar que a manutenção da
unidade política constitui o maior patrimônio do Estado brasileiro (elites e
povo estão de acordo a esse respeito).
O fato de que
o poder do Estado brasileiro é muito marcado pela força simbólica da idéia de
território, e de que a população inteira se orgulhe da manutenção de sua
singular unidade nacional, nos permite compreender porque a crescente
mundialização da economia é interpretada sobretudo como um desafio que deve melhorar a performance do
aparelho de Estado no setor de políticas públicas de caráter social, e resolver
a questão da terra no campo. Um dos argumentos mais utilizados para justificar a
melhoria da performance do Estado brasileiro é aquele segundo o qual um
território tão vasto pode favorecer a resolução de conflitos regionais (e
outros) no interior de suas fronteiras; por conseguinte, sem ameaçar sua unidade
política.
É nesse
sentido que a modernidade que se quer dar ao aparelho de Estado brasileiro se
baseia, entre outras razões, na vontade política de lhe oferecer os meios para que seus
representantes oficiais (civis e militares) possam estar presentes em todo o
território nacional, e que as políticas do governo possam incluir efetivamente o
tecido social da nação. Se levamos em conta a dimensão do território, as
profundas diferenças sociais e regionais que o caracterizam, o montante de
recursos materiais para subsidiar a organização dos grupos de trabalho
necessários para fazer com que o aparelho de Estado esteja presente no interior
do país, sobretudo nas fronteiras da Amazônia, podemos compreender porque as
recentes reformas do Estado brasileiro privilegiam a reconstrução de um Estado
democrático e forte para manter a ordem sobre um tão vasto território (o que
coloca a questão da soberania nacional, objeto de recente e acirrada polêmica),
e para promover o bem público para a nação (o que lhe garante a legitimidade
política).
Por outro lado, a mundialização não é sinônimo de homogeneização, nem dos
grupos sociais, nem dos Estados-nações, nem do espaço geográfico mundial. Na
verdade, a mundialização é indissociável do lugar, ou dos lugares, isto é, das
especificidades de cada grupo social, de cada Estado-nação, de cada território
nesse limiar do século XXI. Mais do que isso: os lugares se mundializam, e a
mundialização se realiza por meio da dinâmica político-social dos lugares,
simultaneamente diferentes e complementares entre si. Por meio de suas
lideranças políticas, econômicas, intelectuais, o território de cada
Estado-nação continua desempenhando um papel político (e geopolítico) da maior
importância: o de realizar a mediação entre o mundial e o local, entre o local e
o mundial, enfim, entre o mundo e o lugar.
No que diz
respeito ao Brasil, o maior desafio dessa mediação, sobretudo no plano interno,
ainda é a conquista de uma cidadania plena. Essa conquista é indissociável do
lugar, ou, em outras palavras, de uma luta política que se desenrola no
território nacional, governado por um aparelho de Estado cuja legitimidade
depende, cada vez mais, de uma reforma ampla em suas instituições políticas.
Essa reforma, porém, depende do desenvolvimento de políticas públicas de caráter
social, o que exige uma solidariedade não necessariamente existente nesse tecido
social marcado por tantas desigualdades, por tantas diferenças
sócio-econômico-regionais.
A atual
violência, no campo e nas grandes cidades brasileiras, criaria condições para
viabilizar a tão sonhada solidariedade nacional? Uma solidariedade nacional é
incompatível com a mundialização? A mundialização eliminou de fato o território
nacional como o lugar em que o Estado-nação ganha sua configuração
verdadeiramente geográfica (e histórica) ... por conseguinte, política (e
geopolítica) ? Não seriam esses os desafios maiores de uma reflexão a respeito
do Brasil, “situado” entre Território e Rede, “compartimentado” entre Lugar e Mundo
... para tentar compreender como
esses fenômenos se relacionam entre si, e qual a especificidade do Brasil nesse
espaço geográfico fragmentado em lugares mundializados?
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Conferencia dictada durante el Segundo Encuentro Internacional
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