DOS TEMPOS DE ALEXANDER VON HUMBOLDT
AO MERCOSUL :
A "ESPECIFICIDADE BRASILEIRA" NA AMÉRICA
LATINA

Profa. Dra. Vânia Rubia Farias Vlach
Universidade Federal de Uberlândia
Departamento de Geografia
Uberlândia – MG – Brasil
- A propósito dos tempos de Alexander von Humboldt na América
meridional : desdobramentos políticos
Mito unitário X mito revolucionário : a desagregação dos
impérios ibéricos na América
A estadia de Alexander von Humboldt na América (1799-1804)
coincide com o final de dois grandes impérios coloniais : o Império espanhol e o
Império português. Duas décadas depois, o Império espanhol da América, que
possuía cerca de 13,5 milhões de quilômetros quadrados, se fragmentou de maneira
extraordinária em várias repúblicas ; o segundo, com cerca de 7,0 milhões de
quilômetros quadrados, não se fragmentou, mas deu continuidade a sua expansão
territorial, e foi substituído por um único Estado : o Império do Brasil.
Nesse sentido, talvez possamos situar o início de uma
"especificidade brasileira" na América Latina nas características que o processo
de independência política assumiu no Brasil, pois o ponto de partida dessa
última foi a chegada da família real portuguesa no continente americano, fato
que transformou a cidade do Rio de Janeiro em capital do Império português,
sinal indelével de que a antiga colônia americana começava a (se) governar.
Enquanto isso ocorria na vertente atlântica da América
meridional, a homogeneidade política, cultural e religiosa do Império espanhol
da América se enfraquecia. A substituição do futuro Fernando VII por Joseph
Bonaparte não tardou a incentivar as elites peninsulares a reivindicarem, em
nome do povo, o direito de exercerem a soberania em um contexto que ainda não
colocava em cheque a integração do "Reino das Índias" no Império espanhol ;
podemos falar que defendiam um "patriotismo espanhol".
Os membros das elites criollas, porém, como Alexander
von Humboldt observara pessoalmente, sentiam-se orgulhosos de serem "americanos"
: "desde la paz de Versalles y sobre todo a partir de 1789, los nativos
prefieren decir com orgullo : ‘Yo no soy espanõl en absoluto, yo soy americano’
" (Apud MINGUET, 1985 : 247).
Em 1810, as Cortes de Cadiz reconheceram a Espanha como um
Estado nacional unitário. Nesse momento, a "porção americana" deixou de ter os
mesmos direitos dos reinos europeus que compunham o Império espanhol, de maneira
que suas elites compreenderam que a Espanha não lhes concederia a autonomia
política que reivindicavam.
Por sinal, foi apenas após a proclamação de sua desigualdade
jurídica e política no seio do Império que os americanos passaram a utilizar o
termo colônia para designar o seu status vis-à-vis da Espanha. A
generalização desse termo (e de seu significado político) marcou,
definitivamente, a distância entre a Espanha e suas possessões americanas, e se
transformou em argumento central para sua emancipação completa. Essa emancipação
tomou a forma de guerras civis ; inúmeras vezes essas guerras atingiram uma
violência extrema.
Em outras palavras, o "furacão" Napoleão Bonaparte na Península
Ibérica acabou contribuindo para, de um lado, criar a união de todos os
americanos contra o inimigo espanhol comum, que logo se tornou o inimigo
estrangeiro comum. Inviabilizou-se, pois, a proposta que os representantes da
América espanhola defenderam nas Cortes de Cadiz : a transformação dos
Vice-Reinos americanos em várias "monarquias separadas" que permaneceriam
ligadas à Coroa espanhola, mas que possuiriam uma autonomia política, jurídica,
econômica e militar. E, de outro lado, contribuiu para que a Coroa portuguesa
reconhecesse o novo status do Brasil : referimo-nos à fundação do
Reino de Portugal, Brasil e Algarve em 1815, que instaurou a "monarquia
dual".
Como se traduziu, do ponto de vista do território e de sua
organização política, a ruptura do antigo Império espanhol da América ?
Após o início das guerras civis (1810), que estão diretamente
ligadas aos princípios aprovados pela Constituição de Cadiz (1812), o orgulho de
"ser americano" ganhou cores locais. Isto é, quando os seus deputados definiram
a Espanha como um Estado nacional unitário também provocaram a ruptura dos laços
que haviam ligado, até então, as possessões americanas entre si, de sorte que o
processo de independência política da colônia é praticamente concomitante ao que
podemos denominar de regionalização da idéia de "ser americano".
É assim que, pouco a pouco, a heterogeneidade relativa da
América espanhola irrompe à luz da arena política, e desagrega o Império
espanhol da América ao longo do período que se estende de 1810 a 1830, sob a
forma de um extraordinário desmembramento político de seu território. Assim, a
antiga América espanhola passou da concepção de "nação espanhola" predominante
até a Constituição de Cadiz à concepção de "nação americana", e sobretudo ao
final das guerras civis, à concepção de "petite patrie", segundo a qual cada uma
das repúblicas que surgiu é uma nação (ou se tornará uma nação no futuro).
Para se compreender a heterogeneidade relativa da América
espanhola, é preciso considerar os seguintes aspectos :
- a administração de cada Vice-Reino tentou criar um imaginário próprio, que
pudesse definir sua identidade no seio do Império espanhol. O Vice-Reino da
Nova Espanha, por exemplo, escolheu a via religiosa em torno do culto à Virgem
de Guadalupe ;
- uma verdadeira rede de cidades se constituiu durante o período colonial, e
seus governadores se tornaram os atores por excelência da vida política
americana, o que explica porque, apesar da homogeneidade imposta pelo Império
espanhol, o particularismo local – ou regionalismo – não perdeu completamente
sua força ;
- a imensa superfície do império, e as dificuldades de transportes e
comunicações entre as possessões eram tais que a heterogeneidade predominante
durante o período pré-colombiano acabou coexistindo com uma certa autonomia
das diversas unidades administrativas, apesar da mestiçagem que caracterizou a
colonização espanhola.
O particularismo local, favorecido pela compartimentação
geográfica do território e pela mestiçagem, foi uma das armas da Espanha contra
as guerras pela independência, que se expandirem em toda a América espanhola a
partir de 1815. A situação da Venezuela ilustra bem como a Espanha soube se
valer politicamente da mestiçagem : em 1811, reconquistou a recém proclamada
República da Venezuela porque, tendo libertado os escravos, conseguiu o seu
apoio nas batalhas. A promessa de liberdade explica porque "les esclaves
choisissent en effet de lutter contre leurs ennemies traditionnels, c’est à dire
les grands propriétaires fonciers créoles, contre ceux qui les réduisent
en esclavage et les maintiennent dans l’exploitation et la misère" (BELROSE,
1990 : 89).
Podemos afirmar que as guerras civis pela independência da
América espanhola ganharam um caráter "etno-nacionalista". Na verdade, a idéia
de "ser americano" significava uma identidade americana branca, e essa concepção
era concomitante ao profundo menosprezo pelos indígenas e negros, considerados
como seres inferiores.
Nesse sentido, em uma e outra vertente da América meridional,
as elites que dirigiam o processo de emancipação política estavam de perfeito
acordo. Porém, se a independência política mantendo a escravidão foi possível na
colônia portuguesa (assim como ocorrera nos Estados Unidos), na América
espanhola a explosão dos conflitos existentes entre as diferentes formações
sociais foi inevitável.
Ao lado desses conflitos sociais, é preciso registrar que o
enorme esforço de caráter militar a favor da independência se generalizou na
América espanhola durante cerca de duas décadas. Por outro lado, os conflitos
entre as lideranças militares mais importantes não tardaram a aparecer. Por
exemplo, entre José de San Martín e Simón Bolívar ; o primeiro se retirou para a
Europa em 1822, provavelmente porque defendia o regime monárquico, e porque
discordou da anexação de um território localizado nas proximidades de Guayaquil,
que pertencia ao Peru, à República da Grande Colômbia.
Essa forma de particularismo é uma das múltiplas facetas dos
fenômenos que provocaram a fragmentação do imenso território da antiga América
espanhola (e é subjacente ao processo de militarização dos futuros Estados
independentes). Dessa maneira, o particularismo local atuou como uma "tectônica
de placas" eficaz e muito rápida : mais ou menos em 1825, 18 Estados
independentes (uns após os outros) se apresentavam na cena política mundial
solicitando seu pronto reconhecimento.
Compreende-se, pois, as colocações de um grande historiador da
América Latina : "L’Empire du Brésil surgissait sans douleur, en harmonie
avec une conjoncture mondiale hostile aux Républiques, et allait être souvent
proposé en modèle aux autres nations américaines, celles de la tubulente
Hispanoamérique. On aurait tendance à voir dans la couronne impériale la cause
de l’unité brésilienne conservée, face à la désintegration continuée de
l’Amérique hispanique. Il n’avait pourtant pas été facile de sauver le Brésil :
en 1824, le Nord se soulevait à nouveau, dans le cadre d’une confédération
républicaine ; puis c’était le tour de la Bande orientale, dans le Sud, où le
Brésil héritait d’une nouvelle province, la turbulente Cisplatina, formée de
terres jadis espagnoles" (DONGHI, 1972 : 85).
Portanto, uma diferença política fundamental opõe as duas
vertentes da América meridional pós-independência em sua caminhada rumo à
modernidade : o Brasil realizou sua transformação na continuidade, o que
favoreceu a implantação do regime monárquico, a construção de uma unidade
política e de uma integridade territorial na vertente atlântica (as elites
dirigentes do Brasil não tardaram a colocar em prática esse projeto político
unitário). Na vertente do Pacífico, o processo de independência proclamou várias
repúblicas, traço evidente de modernidade do ponto de vista do regime político.
Porém, a ruptura passado colonial não foi completa : a abolição da escravidão
não eliminou as estruturas sociais e políticas implantadas pela colonização
espanhola.
O fracasso do Congresso de Panamá (1826) demonstrou que a idéia
de se construir uma união hispano-americana não tinha futuro no continente,
apesar de todos os esforços de Simón Bolívar. Uma outra idéia, porém, prosperará
: o projeto de construção de um Estado nacional, cujo êxito esteve associado,
muitas vezes, ao aparecimento, durante as guerras civis pela independência, de
um novo sujeito político : o caudillo. Durante tais combates, as relações
entre as elites urbanas e rurais tornaram-se muito tensas, o que explica porque
as últimas aliaram-se aos militares, cujos chefes mais importantes receberam,
posteriormente, essa designação.
Os caudillos, em geral de origem popular, conseguiram
mobilizar as forças políticas de uma região e, a partir disso, as forças de toda
uma república (pelo menos em alguns casos) exatamente porque eram capazes de
dialogar com o povo. Seu prestígio decorre de sua identificação com as camadas
populares, e do fato que, "plus pragmatiques et sans grands visions, ils
réussissent là où San Martín et Bolívar échouent : fonder des Etats"
(CHEVALIER, 1993 : 88).
A irrupção dos caudillos foi facilitada pelo vazio
político que caracterizou as jovens repúblicas (inclusive aquelas em que as
elites criollas conseguiram implantar um projeto de confederação). Os
caudillos modificaram de tal maneira a arena política que provocaram a
derrota de todas as tentativas em torno da idéia de se fundar uma confederação
americana na vertente do Pacífico (e no Mediterrâneo americano) e, dessa forma,
tornaram irreversível a formação dos Estados hispano-americanos. E desempenharam
um papel de primeira importância em sua posterior consolidação.
O fato é que até o final do século XIX, a desordem e a anarquia
se alternaram com a ordem que os caudillos conseguiram impor em várias
repúblicas. As guerras proliferaram durante décadas na América meridional de
origem espanhola, seja por causa da definição de fronteiras, seja porque os
jovens Estados republicanos, todos originários do mesmo conjunto político,
cultural e religioso, se defrontavam com a seguinte questão : como afirmar uma
identidade nacional e se constituir como uma nação autônoma ?
Na busca de uma identidade nacional própria, o antigo
particularismo local – ou regionalismo – acabou por se impor definitivamente sob
a forma de uma "nova nação" : as elites criollas transformaram suas
"antigas comunidades" em "novas nações". Isso explica porque a origem dos
Estados hispano-americanos remete às antigas unidades administrativas, seja uma
cidade importante, uma capitania geral, ou a capital de um dos Vice-Reinos das
Índias Espanholas.
A vontade de singularização de cada um dos novos Estados foi
marcada pela valorização da cultura pré-colombiana (os Incas, no Peru, por
exemplo), e reforçada pelo culto e celebração de seus respectivos heróis
(aqueles que morreram pela pátria nos campos de batalha). A celebração dos
heróis nacionais é, certamente, a base da personalização do poder na América
Latina, um traço que tão bem a representa ainda hoje.
Por outro lado, os dirigentes políticos dos novos Estados, que
tentaram descartar, por todos os meios, os indígenas, os negros e os mestiços do
processo de emancipação política, se viram confrontados, e isso desde 1830, à
necessidade de formarem um único povo, uma única nação a partir de uma sociedade
que apresentava um elevado índice de mestiçagem (biológica e cultural). Dados de
1825 estimam que a América espanhola independente possuía uma população de 16
785 000 de habitantes, dos quais 45% eram índios, 32% mestiços, 19% brancos e 4%
negros (entre escravos e homens livres).
Entretanto, no momento de formação do Estado-nação, o
patrimônio cultural das civilizações pré-colombianas foi utilizado em favor dos
interesses das elites criollas, que não respeitaram nenhuma das
aspirações autóctones. Afinal, "quelle que soit l’explication choisie pour
les origines de la nation, il subsiste un formidable écart pendant tout le XIXe
siècle entre l’évocation des Indiens mythiques du passé et l’oubli pratique, la
gêne, ou le mépris devant l’Indien réel, élément hétérogène ou survivance de
l’Ancien Régime, dans une nation moderne que l’on aimerait homogène et la plus
européenne possible" (GUERRA, 1994 : 21). É preciso registrar que os
dirigentes do Império do Brasil pensavam e agiam da mesma maneira !
No processo de construção do Estado e, posteriormente, de uma
nação ao longo do século XIX na América Latina, além da diferença quanto ao
regime político adotado, o Brasil se diferenciou por outras razões :
- A ambição de conquistar uma posição privilegiada no continente americano.
Os dirigentes brasileiros (ou pró-brasileiros) logo elaboraram
um ambicioso projeto político : transformar o único império do continente em "o
grande Império da América". E, para realizá-lo, lançaram-se de corpo e alma na
construção da unidade política e territorial do Brasil, combatendo ferozmente
todas as tentativas separatistas das oligarquias regionais.
2) A estabilidade política do Império do Brasil.
O regime monárquico não foi o único elemento que contribuiu
para essa estabilidade. Contrariamente ao que ocorreu nas repúblicas
hispano-americanas, a arena política brasileira (nas escalas nacional ou
regional) não caiu sob o controle dos caudillos.
3) O importante papel que o negro africano desempenhou na
composição das formações sociais brasileiras.
Apesar da chegada ininterrupta de escravos africanos até o
final do comércio negreiro (1850), a população branca é predominante no Brasil.
De um lado, porque a imigração portuguesa foi significativa durante a
colonização, e, no último quartel do século XIX, os cafeicultores deram
preferência à mão de obra européia. De outro lado, a administração colonial
portuguesa impediu, de fato e de direito, o isolamento dos escravos africanos.
Podemos afirmar que "l’existence des quilombos entraîna l’instauration
d’une pratique répressive qui criminalisait toute concentration autonome des
Noirs. Ainsi, les menaces permanentes qui pesaient sur un retour à la nature
tropicale condamanaient les Noirs à s’intégrer à la culture coloniale.
Cette situation accentuait le phénomène d’acculturation et de métissage des
Noirs brésiliens" (ALENCASTRO, 1979 : 396-397).
Se, no Brasil, a contribuição dos negros se distinguiu de uma
maneira particular, nos Estados de origem espanhola a presença do negro esteve
diretamente ligada à cultura de produtos tropicais (ilhas da América Central e
Venezuela), e a presença indígena foi predominante (à exceção da Argentina,
Chile e Uruguai).
Sem dúvida alguma, a mestiçagem (biológica e cultural) é um
traço comum importante da América meridional. Porém, as autoridades
governamentais brancas do Império e das Repúblicas mantiveram os negros, índios
e mestiços à margem da vida política. Essa é a razão pela qual esses Estados
enfrentaram enormes obstáculos quando precisaram construir suas respectivas
nações a fim de legitimarem sua participação no "concerto das nações", onde o
liberalismo político e econômico da sociedade moderna se impunha.
Elites brasileiras e elites criollas no poder : dois resultados
geopolíticos opostos
É preciso registrar que a família real trouxe consigo a maior
parte da burocracia do Império português. No Rio de Janeiro, esse aparelho
administrativo incluiu funcionários da Coroa (nascidos ou instalados no Brasil),
dirigentes políticos e intelectuais brasileiros, a maior parte dos quais formada
em Coimbra.
A formação jurídica das autoridades governamentais brasileiras
em Coimbra contrastava violentamente com a formação das elites criollas :
seus membros se formaram em uma das (25) universidades disseminadas nos
Vice-Reinos e nas capitanias gerais do Império espanhol da América. O fato de
que os principais líderes políticos e militares da independência foram formados
em uma universidade de uma de suas unidades administrativas contribuiu,
decisivamente, para agravar os particularismos (locais ou regionais) do império.
Assim, a formação homogênea das elites brasileiras desempenhou
um papel de primeira importância na elaboração de um projeto político de unidade
territorial, e contrasta radicalmente com a fragmentação política do antigo
Império espanhol da América. De fato, a semelhança das elites brasileiras (ou
pró-brasileiras) no poder com as elites criollas se situa ao nível do
papel primordial que umas e outras desempenharam no processo de evolução
histórica de seus respectivos Estados. A semelhança pára aí porque as primeiras,
na função de autoridades governamentais, fizeram tudo para construir uma unidade
político-territorial nas antigas possessões portuguesas da América, enquanto as
últimas fizeram explodir a unidade do antigo Império espanhol da América em
vários Estados republicanos.
O papel das elites na construção da unidade
político-territorial do Estado brasileiro
Construir um Estado forte e centralizador, uno e indiviso !
Se considerarmos o fato de que o processo de colonização havia
engendrado o que se convencionou designar de "arquipélago econômico brasileiro",
podemos afirmar que a firme vontade política (e ambição) das autoridades
governamentais brasileiras (ou pró-brasileiras) foi decisiva para transformar o
seu projeto em algo real. Afinal, "tratava-se realmente de construir quase do
nada uma organização que costurasse politicamente o imenso arquipélago
social e econômico em que consistia a ex-colônia portuguesa" (CARVALHO, 1988
: 139). De acordo com um recenseamento da época, o Brasil possuía uma população
de 3,7 milhões de habitantes em 1822, dos quais quase 1 milhão de escravos
africanos (os índios nem foram recenseados !).
A partir desse momento, a idéia de território será valorizada
pelas autoridades do governo central, e se tornará, como força simbólica, o
princípio fundador da futura unidade política brasileira. Nesse sentido, o
primeiro argumento considerado foi a vasta superfície : com cerca de 7,0 milhões
de quilômetros quadrados, o Brasil era o mais vasto Estado à oeste de Greenwich
; em 1846, os Estados Unidos possuíam 6,3 milhões de quilômetros quadrados. Em
segundo lugar, tais autoridades entenderam que, se conseguissem estabelecer uma
única ordem política nesse imenso território, o Império do Brasil se sairia tão
fortalecido que a unidade político-territorial poderia tornar-se o instrumento
para realizarem o seu projeto político : transformarem-no em "o grande Império
da América".
Podemos afirmar categoricamente que as autoridades
governamentais brasileiras (ou pró-brasileiras) desempenharam um papel
primordial no processo de construção do Estado brasileiro. Esse processo se
apoiou em duas bases : o regime monárquico que elas haviam escolhido, e a sua
determinação de construírem uma unidade política que abrangesse o imenso
território. Em outras palavras, tais lideranças pretendiam que o "novo gigante"
desempenhasse um papel de primeira importância na América meridional, e que ele
pudesse reivindicar um lugar de destaque no "concerto das nações".
Dentre os vários aspectos que caracterizam as autoridades
governamentais imperiais, deve-se destacar que a prática da mobilidade
geográfica fazia parte de suas funções. Além disso, ao longo de sua carreira,
haviam ocupado postos diferentes nas diversas províncias do império ; caso algum
de seus membros tivesse sido eleito senador ou tivesse ocupado um posto na
magistratura, era obrigado a permanecer parte do tempo no Rio de Janeiro (a
capital). Alguns haviam mesmo atingido o mais elevado nível da burocracia
imperial : o Conselho de Estado que, em geral, subsidiavam as decisões do poder
moderador, de uso exclusivo do imperador.
Essa prática política comum explica porque podemos afirmar que
as autoridades governamentais tinham uma visão dos problemas do Estado
brasileiro segundo uma perspectiva "nacional". Isso contribuiu, sem nenhuma
dúvida, para diminuir os conflitos oligárquicos regionais ; algumas oligarquias
regionais se insurgiram fortemente contra a construção de uma unidade nacional
no Brasil. A mobilidade dessas autoridades no vasto "arquipélago econômico
brasileiro", com suas vilas e núcleos de povoamento dispersos e muito distantes
uns dos outros, oligarquias regionais mais ou menos poderosas, e sem nenhum
corpo político efetivamente organizado e implantado em todo o território,
constituiu-se no verdadeiro "cimento" da futura unidade nacional.
A forte coesão interna dos dirigentes políticos não eliminava a
existência de conflitos, mas era a expressão de um profundo conservadorismo,
certamente necessário à estabilidade do regime monárquico e para a construção da
unidade nacional. Por outro lado, essa coesão praticamente impediu a
participação de representantes de posições ou opiniões opostas às do Estado, de
maneira que as reivindicações do povo não eram levadas a sério. É preciso
lembrar que as lideranças políticas dependiam, assim como o próprio Estado, dos
rendimentos gerados pela agricultura, que empregava a mão de obra escrava. Esses
rendimentos representavam 70% dos rendimentos do Estado imperial.
Em relação ao Império do Brasil (1822-1889), há unanimidade em
torno de suas principais realizações :
- continuação da expansão territorial do período colonial ;
- construção de um Estado dotado de uma extraordinária unidade
político-territorial.
Essa unidade é o resultado de uma escolha das autoridades do
governo central, que contaram com um regime monárquico dotado de uma
constituição (a de 1824) autoritária e centralizadora. A concordância entre dois
elementos – monarquia constitucional e estrutura centralizadora – contribuiu
para afrontar as fortes resistências das oligarquias regionais que se estenderam
até meados da década de 1840.
Ao final do império, com um território ainda em expansão, o
Brasil já figurava entre os mais vastos Estados do mundo, e, fato a ser
destacado, era governado por civis. Na verdade, o exército desempenhou um papel
menor durante o período imperial (excetuando-se os momentos de contestação do
poder central e de conflitos nas fronteiras).
O Império do Brasil encontrou os meios necessários à sua
política de construção e consolidação da unidade político-territorial no arsenal
que o poder moderador lhe colocava à disposição. Sua exclusiva utilização pelo
imperador acabou propiciando a alternância, no governo, dos dois principais
partidos políticos (Liberal e Conservador), a posição de árbitro em suas
disputas, a continuidade administrativa e o respeito à Constituição. Dessa
maneira, "l’alternance imposée ou garantie par l’empereur évitait que les
tensions politiques ne deviennent insuportables. Elle évitait surtout au
gouvernement la continuité d’un clan politique, le caudillisme ou la
dictature hors de voies constitutionnelles, avec tous les risques à prévoir pour
la paix du pays" (CHEVALIER, 1993 : 656).
Poder civil contra poder militar : o Império e as Repúblicas da
América Latina
A estabilidade administrativa do Império do Brasil, resultado
do poder moderador, favoreceu a construção e a consolidação da unidade política
em todo o território, apesar das distâncias que separavam cada núcleo de
povoamento (principalmente no interior do território), a precariedade dos
recursos humanos qualificados e a insuficiência de recursos materiais. Sob
regimes militares, as repúblicas da América hispânica enfrentavam profundos
conflitos que, às vezes, se transformaram em verdadeiras guerras civis, de
maneira que a instabilidade política as caracterizava (o que favoreceu o
caudilhismo).
À parte o Chile e o Paraguai, a instabilidade política se
disseminou nessa parte da América. Por exemplo, na Argentina, os conflitos entre
o governo central e os caudillos se estenderam até 1860 ; na Colômbia, os
caudillos de Medellín e Calli nunca aceitaram a autoridade do governo
central instalado em Bogotá ; na Venezuela, entre 1859 e 1864 os conflitos
gerados pelo final de uma aliança entre os caudillos e os grandes
proprietários rurais mataram 3% de sua população em uma guerra civil que se
estendeu até 1869 ; no México, conflitos entre liberais, conservadores e a
hierarquia da Igreja católica, agravados pela intervenção de Napoleão III e a
perda de cerca de 2 000 000 de quilômetros quadrados para os Estados Unidos
também provocaram muitas guerras civis (essas contribuíram para manter o
caudillo Porfírio Diáz no poder de 1876 a 1911).
Portanto, o contraste era flagrante entre a estabilidade
política do Império do Brasil, e a violenta instabilidade política predominante
nas repúblicas hispano-americanas, que tinham governos militares, em geral
controlados pelos caudillos.
II. Nos tempos do Mercosul : é possível uma unidade política
na América Latina ?
A "escola brasileira de geopolítica" e o sonho do "Brasil
Grande Potência"
A Escola Superior de Guerra (ESG) foi fundada em 1949. O
contexto internacional, marcado pela guerra fria, e o contexto nacional, marcado
pela tendência a um agravamento das diferenças econômico-sociais e regionais,
nos permite compreender porque o "estudo dos problemas brasileiros" merece
atenção especial nessa escola. Entre seus alunos, conta com a participação de
militares (geralmente tenentes-coronéis e coronéis) e civis (geralmente membros
da máquina administrativa do Estado) ; entre seus professores, encontram-se
civis (alguns dos quais simpatizantes da esquerda) e militares, de diferentes
áreas do conhecimento científico e geralmente pertencentes às classes dominantes
e elites intelectuais.
Os militares que dirigem a ESG têm pretensões políticas de
caráter nacional ; não se trata de "copiar" o pensamento ou as diretrizes
americanas. De um lado, pretende-se valorizar a contribuição dos primeiros
brasileiros que, pela originalidade de suas reflexões políticas a respeito do
Brasil, haviam introduzido a corrente de pensamento chamada geopolítica ; de
outro lado, pretende-se fazer avançar a corrente geopolítica de tal maneira que
se possa propor uma "teoria" brasileira. Cerca de 25 anos mais tarde, um dos
geopolíticos brasileiros mais conceituados assinalou que, "em 1949 com a
criação da Escola Superior de Guerra, o pensamento político brasileiro começou a
se estruturar em bases realistas e científicas. É a ESG responsável por uma
doutrina política essencialmente brasileira, fundamentada na dinâmica da
aplicação do poder nacional" (MEIRA MATTOS, 1975 : 60). É assim que uma
"escola brasileira de geopolítica" não tarda a ganhar corpo em seu seio.
Mas a Escola Superior de Guerra não tem apenas pretensões
teóricas : seus fundadores têm "a consciência de que o Brasil possuía os
requisitos para chegar à grande potência" (MEIRA MATTOS, 1975 : 60). Em
outras palavras, é a partir de sua fundação que as elites militares (com o apoio
das elites civis que ocupam os mais altos postos da burocracia do Estado) tomam
em mãos a execução do projeto "Brasil grande potência". Esse projeto agravou as
tensões entre Brasil e Argentina que, desde a emancipação do jugo colonial,
disputavam entre si a hegemonia na América Latina.
Mercosul : rumo à uma unidade política via uma concepção nova
da geopolítica ?
Em 1985, quando o Estado de direito se reinstalou no Brasil (e
progressivamente na América Latina) após 21 anos de um regime militar que
"manchou" a absoluta predominância de governos civis que caracteriza nossa
trajetória histórica (excetuadas a proclamação da República e seus primeiros
governos), os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín (Argentina) assinaram a
Declaração de Iguaçu. Essa declaração colocou um ponto final na disputa pelo
exercício da hegemonia na América Latina entre os dois Estados cujas histórias,
até então, tinham sido marcadas por uma verdadeira oposição de caráter
geopolítico. Esse fato tornou possível a criação do Mercado Comum do Sul
(Mercosul), em 1991 (Tratado de Assunção).
Os Estados brasileiro e argentino acirraram a disputa pela
hegemonia na América Latina de meados dos anos 60 a meados dos anos 80, quando a
geopolítica se caracterizava como instrumento de dominação a serviço de Estados
militares, ou de Estados com governos civis com forte participação da corporação
militar. Convém destacar que a geopolítica foi entendida durante décadas
sobretudo como uma prática militar que tinha em vista a expansão territorial de
uma nação (ou de um Estado), ou o controle da população por parte de um Estado
autoritário (governado ou não por militares). Nesse caso, o Estado utilizava a
estratégia de organização do território para controlar a população ; essa
estratégia, proposta por militares brasileiros, argentinos e chilenos, foi
particularmente utilizada pelos governos brasileiros (civis e militares). Porém,
todas essas concepções negativas da geopolítica (utilizadas como argumento para
eliminá-la do seio das universidades), sofreram uma alteração fundamental a
partir da década de 1970.
No inicío da década de 1980, diante dos impasses políticos,
econômicos, militares e diplomáticos que atingiam muitos povos no mundo, um
grupo reduzido de especialistas e não especialistas constatou que a metodologia
predominante no seio das correntes de esquerda – a abordagem científica baseada
nas relações entre as classes sociais – não era mais capaz de explicar
satisfatoriamente nem mesmo a crescente mundialização da economia e, muito
menos, os impasses políticos que, pela primeira vez, levaram "Estados
socialistas" a se fazerem a guerra.
Se os jornalistas foram os primeiros a empregar o termo
geopolítica (proscrito na Europa desde o fim da Segunda Guerra mundial) para
explicar a guerra entre Camboja e Vietnã, um geógrafo foi o primeiro a
registrar, de maneira pertinente, que essa guerra pelo controle de um território
(o delta do Mékong) exigia uma nova abordagem metodológica. Em suas palavras :
"la façon de poser les problèmes en termes économiques et politiques ou de
rapports de classes était pour la première fois spectaculairement mise en cause
par une autre représentation, celle qui donnait de l’importance aux territoires
et aux enjeux économiques, stratégiques et surtout symboliques qu’ils
représentaient pour des Etats et des peuples" (LACOSTE, 1993 : 15).
Essa maneira de ver e de analisar o mundo a partir das disputas
de poder sobre o território é a nova concepção da geopolítica a que nos
referimos nesse item de nosso trabalho. Ao contrário do que havia caracterizado
essa corrente de pensamento até então, hoje a geopolítica é objeto de debates
abertos aos cidadãos (ou por eles propostos) de uma cidade, de uma região, de um
Estado membro de uma federação, ou de um Estado-nação a respeito de problemas
ligados ao território, e que afetam seu cotidiano. Isso explica porque a
política ocupa um lugar central na reflexão geopolítica. Deve-se precisar que a
política não se limita mais aos debates democráticos no interior da pólis, onde
os políticos, os intelectuais e os indivíduos reconhecidos como cidadãos
discutiam seus problemas na praça pública (como na antiga Atenas). Na verdade, o
Estado-nação se impôs como a arena dos debates políticos mais importantes ao
longo de todo o século XX.
Foi nesse contexto de profundas mudanças da década de 1980 que
o governo brasileiro decidiu levar adiante uma proposta de efetiva mudança em
suas relações com o Estado argentino : cessada a antiga rivalidade, mais ou
menos admitida publicamente, era preciso colocar em prática uma estratégia que,
ao lhes permitir juntar forças para resolver problemas comuns, pudesse acabar
com as velhas desconfianças e, – por que não ? – que fosse capaz, um dia, de
aproximar os dois povos.
A estratégia que acabou se revelando como a mais promissora foi
a criação do Mercosul, que provocou importantes repercussões na região. Brasil,
Argentina, Uruguai e Paraguai, os quatro primeiro signatários desse mercado, não
tardaram a contar com a adesão de outros Estados latino-americanos, dentre os
quais o Chile (1996) e a Bolívia (1997) são membros associados. Assim, esse
mercado conta com cerca de 220 000 000 de consumidores, e se estende por uma
área de quase 14 000 000 de quilômetros quadrados. Em 1998, seu PIB atingiu a
cifra de US$ 859,8 bilhões.
É preciso destacar que o acordo de associação do Chile com o
Mercosul contribui, de um lado, para manter a paz no Cone sul, pois estreita os
laços com a Argentina, e, de outro lado, favorece o Brasil, pois possibilita a
criação de corredores de exportação ligando os portos da região Sul aos portos
do norte do Chile (dessa maneira, o Estado brasileiro ganha acesso ao Pacífico).
Além disso, as autoridades chilenas admitem que essa associação econômica
"representa um compromisso político superior, baseado em uma estratégia de
integração econômica, física e cultural que pretende a criação de um sistema de
interdependência no Cone sul da América" (MUNÕZ, 1996). Podemos afirmar,
pois, que a sua adesão faz parte de uma estratégia mais ampla : a construção de
uma unidade política na América latina, pelo menos no Cone sul.
A tradicional singularidade do Estado brasileiro na América
latina, isto é, a "especificidade brasileira", reforça o papel primordial que
ele desempenha no seio do Mercosul, onde, por exemplo, não abandona a língua
portuguesa não somente porque possui a população mais numerosa, ou porque a
performance de sua economia não encontra nenhum rival à sua altura, mas também
porque a língua portuguesa falada e escrita no Brasil traduz as singularidades
de seu povo no que diz respeito à sua organização enquanto um Estado dotado de
forte consciência nacional. E, ao mesmo tempo, voltado para o exterior, isto é,
tendo a ambição de exercer uma hegemonia regional e uma importante influência
política no mundo.
No início, a singularidade brasileira criou dificuldades no
seio do Mercosul ; alguns de seus participantes não hesitaram o criticar o que
denominaram de "auto-centrismo brasileiro". Porém, os dirigentes políticos do
Cone sul, assim como os empresários cuja cultura é de origem espanhola, hoje
compreendem o papel que a "especificidade brasileira" desempenha em sua
liderança nesse mercado, assim como compreendem o interesse brasileiro de fazer
do Mercosul um instrumento político da e para a América Latina, sobretudo em
seus confrontos com os Estados Unidos.
Por outro lado, é preciso assinalar que o êxito do Mercosul
colocou fim à prática política de Estados que, durante quase dois séculos, "se
deram as costas". Durante esse período, o Brasil foi quase sempre olhado com
desconfiança, e como se ele não fizesse parte da América Latina ; é verdade,
porém, que o Estado brasileiro sempre procurou seguir o exemplo da hegemonia
exercida pelos Estados Unidos na região e no mundo. A antiga ambição brasileira
de exercer hegemonia na América Latina não poderia ceder lugar à uma tentativa
de unificação política da América Latina ? A "especificidade brasileira" na
América Latina continuará a se desenvolver no século XXI ?
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