Os
complexos agroindustriais na agricultura familiar: o caso
da fumicultura em Canguçu
DUTRA, Éder
Jardel da Silva
Resumo: Para efeitos de
análise destaca-se a agricultura familiar inserida na lógica de mercado
através da adesão aos complexos agroindustriais. O recorte espacial se
dá
no município de Canguçu. A análise utilizada foi a
descritiva, com foco na agricultura familiar e nos produtores envolvidos com a
produção fumageira. A
abordagem utilizada foi a
qualitativa, o
que não descarta o uso de dados quantitativos, constituindo-se em
estudo de
caso. É importante ressaltar a relevância que a fumicultura adquire no contexto
das propriedades familiares ao gerar empregos no campo e permitir a circulação
de recursos econômicos que refletem no meio urbano. Com os acordos
internacionais representados pela Convenção Quadro de consumo e controle dos
produtos oriundos do tabaco, geram-se incertezas na continuidade da produção de fumo, bem como na
permanência do homem no campo, podendo inclusive agravarem-se as consequências do êxodo rural.
Palavras-chave:
Agricultura Familiar. Complexos Agroindustriais.
Fumicultura.
The agroindustrial complexes in family farming:
the case of tobacco farming in Canguçu
Abstract:
For the purposes of analysis it is highlighted the family farm inserted in the
logic of the market by adhering to the agroindustrial complexes. The spatial
cut-out is the city of Canguçu. The analysis used was descriptive, focusing on
family farming and producers involved in tobacco production. A qualitative
approach was used, which does not exclude the use of quantitative data,
constituting a case study. It is important to emphasize the relevance that the
tobacco culture gains in the context of family properties generating jobs in the
field and allowing the movement of economic resources that reflect in the urban
environment. With the international agreements represented by the Framework
Convention of consumption and control of products from tobacco, are generated
uncertainties in the continuity of the production of tobacco, as well as the
permanence of man in the field, what may even worsen the consequences of rural
exodus.
Keywords:
Tobacco culture. Family agriculture. Agroindustrial
complexes.
1-Introdução
O município de Canguçu, localizado no sul
do estado do Rio Grande do Sul, conforme destaca a Fig.
1,
estrutura-se do ponto de vista econômico com fortes articulações rurais,
vinculado à
agricultura familiar, sua diversidade e complexidade. Desde o início da ocupação e povoamento, houve o predomínio do caráter familiar
da produção agrícola.
Figura 1: Localização do município de Canguçu;
Fonte: FIDENE – UNIJUÍ / ASC – Assessoria e
Serviços Comunitários / GEOP – Geoprocessamento e Análise
Territorial
Boa parte das terras do atual município de Canguçu permaneceu
com escasso povoamento até o início do século XX e eram ocupadas por remanescentes indígenas e
descendentes de portugueses que não chegavam a consolidar núcleos de povoamento.
No entanto, a partir do início do século XX começaram a chegar os primeiros colonos de origem
alemã, basicamente pomeranos provenientes das localidades próximas dos atuais
municípios de São Lourenço do Sul e Pelotas.
Nesse período a vinda de imigrantes de origem italiana compôs juntamente
com os colonos alemães a geração e instalação de importante polo de agricultura
familiar, em um primeiro momento com características de subsistência. No
entanto, com a evolução do município e da região muitos desses colonos passaram
a comercializar sua produção, fato que teve grande impulso a partir do
surgimento das indústrias conserveiras, especialmente localizadas no município
de Pelotas.
O ciclo econômico das conservas foi um dos fatores responsáveis por
várias alterações na economia local, com a demanda por produtos
agrícolas de propriedades rurais próximas. Mas é necessário destacar que a
pujança da cadeia conserveira implicou na exigência por trabalhadores nos
parques industriais e muitos dos habitantes de Canguçu migraram para a cidade de
Pelotas, ampliando os reflexos do êxodo rural, que ainda tem desdobramentos na
atualidade. A cadeia produtiva das conservas,
em especial ao longo da década de 90,
sofreu os reflexos da economia globalizada e acentuou a perda de competitividade
com a imposição de problemas aos produtores rurais que tinham neste setor uma
das principais fontes de renda.
Neste ínterim, a fumicultura,
que estava presente na realidade canguçuense desde
os anos 60, passa a ocupar áreas maiores ampliando sua importância até
consolidar o município como um dos polos produtores de fumo da região Sul do Brasil, que se alicerça na agricultura familiar, para
consolidação dessa área como fonte produtora de matéria-prima. Por toda a importância que a agricultura familiar tem no
referido contexto, é importante buscar sua caracterização.
Tomamos como referência as palavras de Wanderley (1999),
para quem "a
agricultura familiar não é uma categoria social recente, nem a ela corresponde
uma categoria analítica nova na sociologia rural. No entanto, sua utilização com
o significado e a abrangência que lhe tem sido atribuídos
nos últimos anos assume ares de novidade e renovação".
É importante retomar as
palavras de Wanderley (1999) ao salientar que a agricultura familiar é um novo
personagem, diferente do camponês tradicional, que teria assumido a condição de
produtor moderno. Propõem-se políticas para seu estímulo fundadas em tipologias que se baseiam em uma viabilidade
econômica e social diferenciada. O ponto de partida é o conceito de agricultura
familiar, entendida como aquela em que a família, ao mesmo tempo em que é
proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento
produtivo. Torna-se relevante insistir que esse caráter familiar não é um mero
detalhe superficial e descritivo, ou seja, o fato de uma estrutura produtiva
associar família-produção-trabalho tem consequências fundamentais para a forma
como ela age econômica e socialmente. Assim definida, essa categoria é
necessariamente genérica, pois a combinação entre propriedade e trabalho assume,
no tempo e no espaço, uma grande diversidade de formas sociais.
Para Schneider (2003)
"a
afirmação da agricultura familiar no cenário social e político brasileiro
está
relacionada à legitimação que o Estado lhe emprestou ao criar em 1996 o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Esse
programa foi um dos marcos da consolidação da agricultura familiar no Brasil no
momento em que houve o provimento de crédito agrícola e apoio institucional às
categorias de pequenos agricultores que vinham sendo alijados das políticas
públicas ao longo dos anos 1980 e encontravam sérias dificuldades de manterem-se na atividade".
Sacco dos Anjos e Caldas
(2009) destacam "a
agricultura familiar como uma forma de produção que apresenta uma lógica
peculiar de funcionamento, cuja racionalidade orienta-se na busca por assegurar
reprodução social de seus membros".
Gasson e Errington (1993)
referem que a agricultura familiar pode ser definida a partir de alguns traços
comuns, quais sejam: i) a gestão é feita pelos proprietários; ii) os responsáveis pelo
empreendimento estão ligados entre si por laços de parentesco; iii) o trabalho é
fundamentalmente familiar; iv) o patrimônio pertence à
família; v) o patrimônio e os ativos são objeto de transferência intergeracional
no interior da família; vi) os membros da família vivem na unidade produtiva.
(SACCO DOS ANJOS e
CALDAS, 2009).
Como afirma Lamarche
(1993), "a
agricultura familiar não é um elemento da diversidade, mas contém nela mesma
toda a diversidade"
(WANDERLEY, 1999).
2- Metodologia
A pesquisa requer um
objeto e
ao mesmo tempo necessita da
delimitação espacial desse objeto. Adotando esse critério o estudo terá enfoque
local, constituindo-se em estudo de caso. Objetiva-se compreender as implicações
que a produção de tabaco gera no município de Canguçu. Segundo Raffestin et al. (1983),
''não se pode aceitar [...] que a pesquisa seja conduzida sem que a escala esteja claramente
especificada''.
Por suas especificidades, entender e compreender as transformações que se dão
na agricultura, é importante para uma área de estudo que tem na agricultura
familiar um de seus indutores do desenvolvimento. O município de
Canguçu,
por razões
específicas, teve nos últimos anos aumentos constantes na produção
fumageira realizada basicamente em estruturas de propriedades familiares, com
profundas implicações no desenvolvimento econômico. Ainda é necessário destacar
que essa produção realiza-se sob a égide de estruturação da cadeia produtiva via
sistema integrado de produção que articula diferentes escalas de ações.
Nem todos os
acontecimentos ou fenômenos ocorrem na mesma escala. A geografia busca superar a
deficiência histórica que são as delimitações rígidas e arbitrárias. Segundo
Raffestin et al. (1983), "os geógrafos adquiriram, apesar de tudo, o hábito de postular que
todos os comportamentos estudados, todas as ocorrências, que observam, medem e
correlacionam, se manifestam praticamente numa só escala".
Parte-se da
necessidade de delimitação da área de estudo, que neste caso é o município,
especialmente a agricultura familiar envolvida com a produção fumageira. É
importante destacar que o presente trabalho constitui-se
em estudo de caso, com abordagem qualitativa. Para Chizzotti (1995) a abordagem
qualitativa parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo
real e o sujeito, uma interdependência viva entre sujeito e o objeto, um vinculo
indissociável entre o mundo subjetivo e a subjetividade do objeto.
Entende- se
que:
O conhecimento
não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria explicativa.
O sujeito observador é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta
os fenômenos, atribuindo um significado. O objeto não é um dado inerte e neutro;
está possuído de significados e relações que sujeitos concretos criam.
(CHIZZOTTI, 1995, p.79)
É preciso entrever "que algumas pesquisas qualitativas não descartam a coleta de dados
quantitativos", principalmente na etapa exploratória de um campo ou nas etapas em que eles podem mostrar uma relação mais extensa entre fenômenos
particulares (CHIZZOTTI, 1995).
Utilizam-se ainda dados obtidos de fontes secundárias, a partir da base de dados de órgãos como o Sindicato da Indústria do Tabaco (SindiTabaco) e Associação
dos Fumicultores do Brasil (AFUBRA).
O presente
trabalho divide-se em cinco partes: Introdução, Metodologia, A fumicultura no
Brasil, As consequências da modernização no campo e Considerações finais. Na ‘introdução’ faz-se uma breve
explanação sobre a área de estudo e as relações com a agricultura familiar. Na
‘metodologia’ descrevem-se o tipo de abordagem utilizada e o recorte espacial adotado.
Em ‘A fumicultura no Brasil’ aborda-se a trajetória do fumo no Brasil,
destacando-se nos últimos anos a ligação da fumicultura com os complexos
agroindustriais. Em 'As consequências da modernização no campo’ destacam-se os processos
modernizantes presentes no campo e a integração que passa a existir em
diferentes setores da produção agrícola.
3- A
FUMICULTURA NO BRASIL
O fumo é uma cultura
agrícola cultivada em estruturas fundiárias de propriedades familiares, com
emprego intensivo de mão-de-obra. A cultura do tabaco já estava presente na agricultura colonial,
mas até o inicio do século XX era pouco expressiva. O fumo foi considerado
planta mágica pelos indígenas, dotada de características alucinógenas. No
passado, mesmo tendo seu consumo proibido, disseminou-se pelo mundo, não
restando alternativa aos governos que não fosse taxá-lo com altos impostos
(ETGES, 1991).
Nas palavras de Etges (1991) com
base em Jean Batiste Nardi, durante os três primeiros quartos de século XVI, os
colonos portugueses obtiveram o fumo dos índios por meio de um sistema de
escambo, entretanto, com os inúmeros confrontos entre índios e portugueses, os
colonizadores optaram por cultivá-lo, tendo em vista o florescente
comércio.
Numerosas eram as
variedades cultivadas nas diferentes províncias, algumas importadas e outras
obtidas a partir de cruzamentos feitos pelos próprios colonos, mas basicamente
podem ser classificados em dois ramos, a saber: i) fumos escuros e ii) fumos claros. Os fumos claros só deram resultado
efetivo no estado do Rio Grande do Sul, mais precisamente aqueles importados de Cuba e dos Estados Unidos da América.
Nas três primeiras décadas
do XX, a concentração espacial se acentuou basicamente no estado do Rio Grande
do Sul e na Bahia. O estado da Bahia continuava produzindo fumos escuros para a
confecção de charutos. No Rio Grande do Sul, houve a especialização em fumos
claros, particularmente na
variedade Virginia, bastante importante a partir do surgimento do processo de
industrialização (ETGES, 1991).
O florescimento da
indústria fumageira nas ultimas décadas do século XX é importante no estado do
Rio Grande do Sul, ao englobar setores da produção rural (agentes de crédito,
fornecedores de insumos e
ocupação da mão-de-obra, entre outros) com geração de empregos e renda nos meios urbano
e rural. Essa expansão,
no caso da fumicultura,
está
vinculada diretamente à
constituição dos complexos agroindustriais (CAIs).
Embora a adesão não seja
hegemônica, a agricultura familiar procura integrar-se ao mercado, ao passo que
a agricultura de subsistência fica limitada a grupos de agricultores específicos
(quilombolas, indígenas, entre outros). A origem da integração
agricultura-indústria surge com maior intensidade a partir da década de 1980,
diante do aprofundamento do processo de modernização, quando os agricultores
tiveram que 'optar'
por culturas e/ou criações melhor remuneradas pelo mercado.
A fumicultura como componente dos complexos
agroindustriais surge no
contexto da década de 1980. Nesse período os agricultores enfrentaram
dificuldades de remuneração e renda na agricultura baseada na produção de
cereais, tubérculos e frutas. A saída encontrada para muitas famílias rurais
brasileiras foi o êxodo. Para outras, a ligação com os complexos
agroindustriais.
O estímulo à produção de
tabaco na região Sul do Brasil teve a participação direta e decisiva da indústria
fumageira, com incentivos de Estado,
dessa forma gerando as condições creditícias necessárias para o desenvolvimento
da produção. Dessa forma, transformou-se em alternativa para parte dos agricultores familiares, em razão
de que a cadeia produtiva do leite enfrentava problemas; a avicultura e a
suinocultura consistiam em sistemas seletivos do ponto de vista técnico e
financeiro, geralmente exigiam razoável aporte financeiro inicial, que as
indústrias desses setores não disponibilizavam naquele período histórico, em que
a agricultura familiar ou a atividade agropecuária de pequeno porte estava
excluída do sistema oficial de crédito rural.
De
acordo com Abramovay (1992), a
previsão de Marx de que a grande empresa capitalista se generalizaria na
agricultura tanto quanto na indústria possui a virtude histórica. As formas de
produção familiar existentes á seu tempo exprimiam sobrevivências de um passado
que o desenvolvimento capitalista se encarregaria de remover.
Com
base na política de incentivos fiscais, os grupos econômicos passaram a fomentar
a expansão da lavoura de fumo através do sistema integrado de produção. A partir
da existência desse
sistema, importantes áreas agrícolas outrora destinadas a cultivos agrícolas
(como milho, feijão e
hortaliças, entre outros) passaram a ser incorporadas à
fumicultura, onde predominam exigências de produtividade e qualidade com o
estabelecimento de metas a serem cumpridas pelos produtores, demonstrando e
impondo uma lógica diferente, típica dos processos de modernização ‘forçada’.
Os processos de
modernização no campo foram bastante diferenciados. Enquanto regiões interagiam e adaptavam-se rapidamente aos influxos
desse processo, outras permaneciam à
margem. Surgem nesse momento as noções que iriam nortear a formação dos
complexos agroindustriais.
O final dos anos 60 é
considerado como marco de constituição do chamado CAI brasileiro, denominado por alguns
autores como arrancada do processo de
industrialização do campo. Esse processo se caracteriza pela implantação no
Brasil de um setor industrial de bens de produção para a agricultura.
Paralelamente, desenvolve-se ou moderniza-se, em escala nacional, um mercado
para produtos industrializados provenientes da agropecuária, dando origem
à
formação simultânea de um sistema de agroindústrias, em parte voltado para o
mercado externo (DELGADO, 1985).
Os complexos
agroindustriais foram formados a partir da introdução da lógica capitalista no
campo, capaz de transformar a produção em agronegócio (industrialização da
agricultura), sendo incorporados ao processo produtivo tratores, colheitadeiras,
produtos químicos e
sementes selecionadas, cuja produção foi orientada para uma demanda de origem
urbana e industrial. Esse é o caso da produção de soja, laranja, café,
cana-de-açúcar e
fumo, entre outros produtos. (MARAFON, 2009).
As noções de complexo
agroindustrial, em suas conexões e interações espaciais, forma uma rede que
possibilita a produção em bases modernas. Nesse processo de expansão dos
complexos agroindustriais no território brasileiro, não podemos subestimar o
papel do Estado no financiamento da produção e pesquisa para a implantação de
logística no território que permite a realização e circulação da produção
(MARAFON, 2009).
Nessa perspectiva, a
produção agrícola destinada principalmente ao mercado externo e integrada aos
grandes complexos agroindustriais expandiu-se, beneficiada pelas linhas de
crédito e ocupando grandes áreas de terras, uma forma imposta de gestão
e comercialização em escala mundial (MARAFON, 2009).
Nas suas particularidades o
campo brasileiro tem enorme diversidade de formas de produção, organização,
atores e estratégias de reprodução social. Isso indica o sinônimo de
pluralidade. Ao mesmo tempo estão colocados exemplos da agricultura empresarial,
agricultura de subsistência... ora evidenciando a cooperação, ora demonstrando as contradições e
idiossincrasias.
Em razão dessa diversidade convivem setores agrícolas altamente
tecnificados que lograram inserir-se na lógica de mercado, enquanto outros
continuam, com escassos recursos tecnológicos, vivendo e sobrevivendo no campo.
Os casos específicos comprovam a existência de enormes disparidades entre
setores.
Radomsky (2009),
com base em Graziano da Silva (1998),
explicita que a modernização da agricultura brasileira foi seletiva em vários
aspectos, tais como grupos sociais (privilegiaram-se as classes abastadas e
empresariais do campo) e produtos (os que compunham a pauta de exportações da
nação como, por exemplo, a laranja e o café). Muitos agricultores familiares
que entraram nesse processo sentiram os efeitos da modernização, uma vez que ela
foi determinante das transformações sociais no meio rural entre as décadas de
1960 e 1980.
O surgimento e consolidação do complexo
agroindustrial suscita o surgimento de novos interesses sociais comprometidos
com o processo de modernização; conforma um novo bloco de interesses rurais com a participação do
capital industrial, do Estado e dos grandes e médios proprietários rurais. Esse bloco evolui
para novas formas e alianças, em que novamente o capital industrial, o
Estado e a propriedade territorial estarão presentes, numa articulação
de interesses que marcaria a forma integrada de capitais a nível intersetorial
(DELGADO, 1985).
Dando continuidade
à
discussão:
Todo esse processo de modernização se realiza com
intensa diferenciação e mesmo exclusão de grupos sociais e regiões econômicas.
Não é, portanto, um processo que homogeneíza o espaço econômico e tampouco o
espaço social e tecnológico da agricultura brasileira. (DELGADO, 1985 p 42)
O campo brasileiro é sensível às mudanças nas bases técnicas de produção.
Não seria diferente com o setor familiar da produção agrícola, que sofreu os
influxos da modernização, especialmente a partir da consolidação dos sistemas
integrados de produção que são um dos principais pilares da agricultura em
várias áreas do Brasil. A implantação e consolidação dos sistemas integrados se verificam na
produção de suínos, aves, leite e fumo entre outros produtos..
4- AS
CONSEQUÊNCIAS DA MODERNIZAÇÃO NO CAMPO
O campo brasileiro passou
nas ultimas décadas por intenso processo de modernização e transformações.
Alterou-se a base técnica na qual se alicerça a produção;
agricultores integraram-se aos complexos agroindustriais, enquanto outros
permaneceram à margem. Pode-se
falar em uma modernização que conserva seus efeitos ‘perversos’ e o seu caráter
‘conservador’.
O estudo do espaço agrário
brasileiro durante o século XX, em especial da
agricultura familiar, exige compreender a evolução da economia, visto que a
agricultura é um importante setor. O Estado é o principal ator que formula e
executa as políticas públicas para a agricultura brasileira e também passou por
transformações.
O seu papel
desenvolvimentista de Estado-empresa, inspirado nos preceitos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(CEPAL),
passou a enfrentar dificuldades financeiras e políticas. O colapso do
socialismo, a ascensão de múltiplos polos hegemônicos mundiais e
as crises do petróleo são fatores que lançaram grandes incertezas no plano
mundial. No contexto interno, as pressões políticas para a
redemocratização e
a convocação da Constituinte que elaborou a Constituição de 1988 são
direcionamentos que puseram em dúvida o modelo de Estado
que vigorava.
Até então o Estado era o único vetor de poder. O território
brasileiro era a base geográfica onde ele impunha e exercia o seu poder,
mediante as políticas territoriais e setoriais. O que ocorre com o Estado
brasileiro é pontual:
Conflitos
entre forças internacionais e nacionais, entre grupos sociais que
compõem a
formação social e entre segmentos do próprio Estado, ressaltam a importância da
instância política e demonstram que o aparelho governamental não é mais o
instrumento único de poder. (BECKER, 1986, p.6)
As principais mudanças são
o surgimento de múltiplos vetores de poder; a multidimensionalidade do poder,
onde os diversos atores atuam relacionados com o Estado; o ressurgimento
do território ''não apenas como espaço próprio do Estado-nação, mas sim dos
diferentes atores sociais, a manifestação do poder de cada um sobre uma área
precisa'' (BECKER, 1986).
A inserção brasileira e
sul-americana na economia global foi acelerada pela adoção de políticas
liberais em resposta à crise fiscal do Estado desenvolvimentista. O seguimento
às doutrinas de organismos internacionais, fundamentadas em políticas
econômicas, que tinha como palavras-chave: i) estabilizar,
ii) desregular e iii) privatizar,
levou ao mundo capitalista ocidental a mensagem de que o mercado era o único
mecanismo competente de regulação econômica e social.
Essas são as condições
sobre as quais se dá a formulação de políticas públicas pós-democratização. O
Brasil encontrava-se inserido numa posição periférica na economia global e enfrentava
uma grave crise fiscal. Esses fatores enfraqueceram o planejamento e
a ação desenvolvimentista do Estado. De outro lado, houve surgimento de inúmeros atores sociais que passaram a atuar
como parceiros do Estado, fazendo valer as suas aspirações e objetivos; o seu
poder. Pode-se apontar a presença dos grupos transnacionais na economia
brasileira, os movimentos sociais (a própria agricultura familiar), os estados e
municípios.
Os grupos empresariais
transnacionais, atores econômicos com origens e atuações múltiplas, sem apego
territorial ou nacionalista, interessados em ocupar espaços deixados pelo
Estado,
se encarregam (indústria, comércio, produção,
serviços etc.) de propiciar condições para que grupos sociais marginalizados e/ou
excluídos das políticas de Estado integrem-se (momento em que a agricultura familiar encontrava-se excluída) e insere-os
de forma submissa e periférica aos interesses
econômicos.
O surgimento e a posterior
consolidação da fumicultura no sul
do Brasil ocorreu nessas circunstâncias. Entretanto, é necessário salientar que
a fumicultura já existia antes da acentuação dos reflexos da modernização. O
fato é que o impulso proporcionado pela modernização da agricultura, por meio da
forte atuação da indústria fumageira (predominantemente de capital
multinacional),
organizou e consolidou a atividade dentro do segmento da agricultura
familiar.
Muitos agricultores familiares acabaram se integrando à cultura do
fumo. É importante enfatizar que a existência da fumicultura não significa que
nessas propriedades se pratique a monocultura do fumo. Em praticamente todos os
casos, nas propriedades onde é desenvolvida a fumicultura, são realizadas ao
mesmo tempo outras atividades, embora o fumo traga maior aporte financeiro à
propriedade.
A atividade fumageira é um tema polêmico. Nos últimos anos está
sendo articulado o tratado internacional que visa regulamentar a atividade,
sobretudo o consumo de produtos derivados do tabaco. Esse tratado foi denominado
Convenção Quadro para o
controle e consumo do tabaco e congrega interesses de mais de 170 países. A
discussão desenvolvida pela Convenção Quadro envolve a academia, os produtores,
os sindicatos, a indústria e
o sistema de saúde, entre outros atores. Surgem argumentos que defendem a
atividade (geração de emprego e renda, atividade adequada para as propriedades
familiares) e,
como contraponto, os argumentos que questionam a atividade (malefícios à saúde,
trabalho infantil, desmatamento).
Na discussão de interesses
de cada categoria, a questão central e que deve preponderar são as perspectivas
da agricultura familiar no horizonte próximo diante do quadro de incertezas
quanto à continuidade da atividade fumageira. Nesse momento se visualiza que não é
possível o governo brasileiro assumir compromisso internacional sem avaliar as
consequências que essa postura causará a milhares de agricultores familiares
brasileiros, sobretudo na região Sul do Brasil, em condições históricas peculiares (colonização,
propriedades familiares) e num ambiente natural que impõe limitações por suas
especificidades climáticas.
No estado do Rio Grande do
Sul, por exemplo, entre os municípios com maior número de estabelecimentos
produtores e área ocupada,
destacam-se: i) áreas tradicionais
(Santa Cruz do Sul, Venâncio Aires, Sinimbu e Vera Cruz) e ii) áreas novas (Canguçu, São Lourenço do
Sul, Pelotas, Morro Redondo, Arroio do Padre, Camaquã e Dom
Feliciano),
que tiveram nos últimos anos aumento nas áreas plantadas (SINDITABACO, 2009).
Conforme expressa a tabela 1, os estados da região Sul do Brasil
possuem relevância na produção fumageira, envolvendo grande número de famílias produtoras e expressiva produção.
Tabela 1 - Evolução da Fumicultura na Região Sul do
Brasil
Safra |
Famílias
Produtoras |
Hectares plantados |
Produção (t) |
1979/1980 |
94.080 |
171.080 |
286.090 |
1989/1990 |
127.400 |
201.940 |
367.960 |
1999/2000 |
134.850 |
257.660 |
539.040 |
2000/2001 |
134.930 |
253.790 |
509.110 |
2001/2002 |
153.130 |
304.510 |
635.110 |
2002/2003 |
170.830 |
353.810 |
600.540 |
2003/2004 |
190.270 |
411.290 |
851.060 |
2004/2005 |
198.040 |
439.220 |
842.990 |
2005/2006 |
193.310 |
417.420 |
769.660 |
2006/2007 |
182.650 |
360.910 |
758.660 |
2007/2008 |
180.520 |
348.720 |
713.870 |
2009/2010 |
185.160 |
401.703 |
669.619 |
2010/2011 |
186.810 |
372.930 |
832.830 |
Média |
163.999 |
330.383 |
644.349 |
Fonte: SindiTabaco, 2012. (Organizado pelo autor)
Os números apresentados dão
conta da importância e significação que a fumicultura adquiriu no sul
do Brasil nas safras 2010/2011 pelo número de famílias envolvidas (186.810)
para o mesmo período considerado com total de 372.930 hectares plantados. Isso
demonstra, sem equívocos, a
dinâmica e relevância da cultura do tabaco na agricultura familiar e
principalmente na economia dos municípios produtores.
Um dos principais fatores a
ser analisados envolve as possibilidades que a fumicultura propicia na geração
de renda nas zonas rurais em pequenas propriedades, dessa forma
movimentando
a economia de vários municípios, como é o caso de Canguçu, objeto de nossa
pesquisa. Ainda é importante destacar que a dinamização da economia de
municípios do sul
do Rio Grande do Sul via fumicultura contribui decisivamente para reduzir os
efeitos do êxodo rural, tão presente na realidade estudada.
Conforme evidencia a
Fig. 2, a fumicultura é uma atividade que utiliza em uma das suas etapas
de produção mão-de-obra do grupo familiar.
Figura 2 - Colheita de Fumo no Município de Canguçu.
Fonte: Acervo do autor, 2009.
Pelo que se evidencia, a fumicultura desenvolve-se tendo como
âncora as pequenas propriedades e como componente a mão-de-obra dos integrantes
da família. A tabela 2 destaca a produção fumageira entre os anos de 2000 a
2010, no município de Canguçu, um dos expoentes da cultura de tabaco no Brasil.
Enfatizam-se aspectos como área plantada e produtividade para o período
analisado.
Tabela
2- Produção de Fumo no Município de Canguçu
Anos* |
Produção em toneladas |
Hectares plantados |
Produtividade kg/h |
2000/2001 |
6.840 |
3.800 |
1.800 |
2001/2002 |
8.360 |
3.800 |
2.200 |
2002/2003 |
10.186 |
4.630 |
2.200 |
2003/2004 |
12.960 |
7.200 |
1.800 |
2004/2005 |
20.900 |
9.500 |
2.200 |
2005/2006 |
21.542 |
10.771 |
2.000 |
2006/2007 |
25.005 |
11.366 |
2.199 |
2007/2008 |
22.000 |
10.000 |
2.200 |
2009/2010 |
16.547 |
7.906 |
2.092 |
2010/2011 |
S/D |
S/D |
S/D |
Média |
16.371 |
7.664 |
2.077 |
Fonte: SindiTabaco,
2012. (Organizado pelo autor)
*Para os anos
2010/2011, dados a serem divulgados.
Ao observarem-se os dados colocados,
pode-se ver que,
apesar das oscilações que são comuns em culturas agrícolas como o fumo, de um
modo geral destaca-se a significação que a produção adquire na realidade
estudada, especialmente em um contexto de predomínio das propriedades
familiares, com áreas de pequenas propriedades e emprego intensivo da
mão-de-obra. A situação posta é de muitas incertezas frente às imposições
evidenciadas pela Convenção Quadro de consumo e controle dos produtos oriundos
do tabaco. Não bastam discursos fáceis e clientelistas que propõem a ‘simples’
reconversão produtiva, mas estudos aprofundados que permitam o diagnóstico da importância socioeconômica do
setor.
No sul do estado do Rio
Grande do Sul houve iniciativas pontuais que visavam a substituir as lavouras de fumo por outras variedades agrícolas (canola, girassol, entre outras),
situações essas
que tiveram aporte de recursos do Pronaf,
que tinha como uma das possibilidades a produção de biodiesel e que se mostrou
inviável do ponto de vista econômico.
É importante, ao pensar-se o planejamento rural e da agricultura
envolvida com a fumicultura, que se possa vislumbrar alternativas à
cultura do fumo, entretanto isto deve levar em conta a opinião das diferentes
instâncias envolvidas, mas fundamentalmente dos agricultores familiares,
que são os que mais sofrem com as decisões inadequadas, tomadas a partir de
relatórios tecnocráticos.
Considerações
Finais
Muitos agricultores
familiares acabaram ingressando na modernização agrícola e por sua vez aderiram
aos pacotes tecnológicos, em casos representativos como o frango, os suínos, o
leite e o fumo. Em Canguçu houve
adesão dos produtores familiares ao sistema integrado de produção, conduzido e
coordenado pelas fumageiras, com reflexos na economia local, colocando situações
novas, ao introduzir a lógica de mercado. O município de Canguçu,
um dos maiores polos de agricultura familiar do Brasil,
insere-se em uma lógica capitalista. Assim, o camponês tradicional tende a ter
alterada
sua relação com o mundo moderno, uma vez que os produtores buscam subsidiar o
sustento de suas famílias em produções que possuam remuneração e inserção no
mercado.
A desestruturação da cadeia
conserveira na região como um todo e,
logicamente, no município contribuiu para que a fumicultura ganhasse espaço e
tivesse a importância econômica dimensionada ao envolver muitas famílias no meio
rural com
consequente desdobramentos no meio urbano como, por exemplo, a implantação de lojas especializadas para atender
à
atividade.
Estudar e compreender as
implicações da expansão da fumicultura em Canguçu é relevante pela inserção de
um município que passa a fazer parte das escalas de relações internacionais,
uma vez que o tabaco produzido tem seus mercados de consumo em outros países. A
interação da escala global implica diretamente na configuração local, com
alterações que se processam no rural em um primeiro momento, mas que
possuem seus desdobramentos no urbano.
Analisar os reflexos da
produção fumageira em Canguçu é uma atividade que requer debate e
envolva as diferentes instâncias (produtores, sindicato rural e
comerciantes,
entre outros) em razão de ser um processo em desenvolvimento, com consequências
já aparentes, mas que carecem de diagnóstico. Desse
modo, buscou-se um ensaio que aponte o que são e como estão se
desdobrando os fenômenos representados pela expansão dos complexos
agroindustriais,
especialmente com a cultura do fumo e as incertezas para os produtores
familiares colocadas pela Convenção Quadro, da qual o Brasil é signatário.
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