“AMIGO-INIMIGOS”: A RELAÇÃO DE BRASILEIROS E BOLIVIANOS
EM UMA “ZONA DE FRONTEIRA”
Roberto Mauro da Silva Fernandes
Resumo: Esta
discussão será a respeito das aproximações, das interações, e dos contatos
fronteiriços entre bolivianos e brasileiros na cidade de Corumbá/MS, os mesmos
são amigos e inimigos porque, apesar de protagonizarem constrições, não podem
existir como sujeitos sem as contradições inerentes a suas relações. Tentaremos
demonstrar que na “zona de fronteira” do Brasil com a Bolívia, na qual está
localizada essa cidade, as relações dos indivíduos subvertem as caracterizações
oficiais criadas pelo Estado.
Palavras-chave: “zona de fronteira”; amigo-inimigo, Rodovia Bioceânica, imigrante
Resumen:
Esta
discusión
es acerca de los enfoques, las
interacciones y contactos entre Bolivia
y frontera con Brasil en la ciudad
de Corumbá / MS, son amigos y enemigos, porque a pesar de las limitaciones de escena, no puede existir como individuos, sin las contradicciones
inherentes a su las relaciones.
Vamos a tratar de demostrar que la
"zona fronteriza" entre Brasil y
Bolivia, que se encuentra en esta ciudad, la relación entre los individuos subvertir la caracterización creada por los funcionarios del Estado.
Palabras claves: "zona
fronteriza", amigo-enemigo, Bioceánico a la autopista, los imigrantes
Abstratc: This discussion is about the approaches, interactions, and contacts
between Bolivian and Brazilian
border in the city of Corumbá / MS, they
are friends and enemies
because although staged constraints, can not exist as individuals without the contradictions inherent
in their relations. We will try to demonstrate that the "border zone" between Brazil and Bolivia, which is located in this
city, the relationship between individuals subvert the characterizations created by state officials.
Keywords: "border zone", the friend-enemy, the Highway Bioceanic, immigrant
INTRODUÇÃO
Este artigo é parte da dissertação que estamos
desenvolvendo no Programa de Pós-Graduação em Geografia, nível Mestrado, da
Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, e que consiste em analisar as
interações espaciais que a rodovia bioceânica, provavelmente, vai ensejar na
“zona de fronteira” do Brasil com a Bolívia (Mato Grosso do Sul), na qual se
localizam as cidades de Corumbá e Ladário (Brasil) e Puerto Quijarro e Puerto
Soarez (Bolívia). Cidades-Gêmeas que são caracterizadas por processos de
intercâmbios materiais e imateriais, que possuem grande necessidade do
desenvolvimento de políticas públicas específicas para as localidades de
fronteira, nas áreas de educação, saúde, comércio etc., a materialização dessas
políticas pode vir a contribuir com os projetos relacionados aos processos de
integração econômica, política e social do continente
sul-americano.
Neste trabalho a área ou região de fronteira não possui o enfoque de
uma concepção ‘linear’, própria à noção de limite internacional. Segundo Brasil
(2005) o governo brasileiro reconhece oficialmente as “zonas
de fronteira” como:
[...] o meio geográfico que melhor caracteriza a zona de fronteira
é aquele formado pelas cidades-gêmeas. Estes adensamentos populacionais cortados
pela linha de fronteira – [...] apresentam grande potencial de integração
econômica e cultura assim como manifestações “condensadas” dos problemas
característicos da fronteira, que aí adquirem maior densidade, com efeitos
diretos sobre o desenvolvimento regional e a cidadania (BRASIL, 2005 (a),
p.152).
Conceito que converge com a Proposta de
Reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira,
desenvolvida pelo Ministério da Integração Nacional durante o governo do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e que define uma “zona de fronteira” da
seguinte forma:
[...] o conceito de zona de fronteira aponta para
um espaço de interação, uma paisagem específica, com espaço social transitivo,
composto por diferenças oriundas da presença do limite internacional, e por
fluxos e interações transfronteiriças, cuja territorialização mais evoluída é a
das cidades-gêmeas (PDFF, 2005 (b), p.21).
Mediante a
esses conceitos podemos verificar que a “zona de fronteira” não está dotada
da expressão de jure
semelhante ao conceito utilizado para se identificar a faixa de
fronteira, que faz alusão aos limites territoriais do poder do Estado. Essas
“zonas fronteiriças” são espaços de porosidades, de flexibilidades
espaços-temporais, em que se pode identificar, sobretudo, as “manifestações
condensadas dos problemas característicos da fronteira”; e principalmente os
antagonismos que são inerentes a esse “espaço social transitivo”. Vamos
verificar que esse espaço de transitoriedade e de condensações sociais são
conbstânciadas pelas relações do “ser” que vai em detrimento da
“ideologia da integração”.
Tal contexto pode ser percebido porque, apesar dessa “zona de
fronteira”ser caracterizada por
interações informais que vão além das concepções formais do Estado, acima de
tudo, os municípios envolvidos estão subordinados juridicamente aos seus
respectivos governos estatais. Dessa forma, os municípios de Corumbá/MS,
Ladário/MS, Puerto Quijarro e Puerto Soarez estão inseridos na dinâmica de
contradições de Estados distintos, possuem populações com interesses diversos,
que usufruem do território a partir de perspectivas subjetivas e que
identificam-se ou não com seus respectivos governos.
Esta
discussão será a respeito das aproximações, das interações, e dos contatos
fronteiriços inerentes ao município de Corumbá/MS. Tentaremos demonstrar que a
fronteira possui de certa forma, o poder de subverter as caracterizações
oficiais, que delas se convencionam, tanto como espaços de limites quanto como
“espaço-teste de políticas públicas de integração e cooperação” (PDFF,
2005, p.21). Porque algumas dessas
subversões ocorrem a partir das relações que o ser humano tem o dom de
estabelecer mediante suas perspectivas empíricas sobre a vida e acerca dos
desdobramentos que colhem das mesmas. Vamos analisar o que denominamos de
“espaço oximorizado”, ou seja, aquele que “consiste em aglutinar,
deliberadamente, os contrários para criar novas e vivas identidades” (HANCIAU,
2005, p. 129).
Para a elaboração deste trabalho utilizamos
levantamentos bibliográficos e documentais em livros, artigos, periódicos, anais
de seminários e congressos, revistas especializadas e publicações de grupos de
estudo que atuam em pesquisas sobre fronteira. Além de utilizarmos os dados
coletados em entrevistas e no trabalho de campo realizado no mês de janeiro de
2011. Porém, devemos frisar que a construção deste debate ainda se encontra no
inicio e que ao longo do desenvolvimento da pesquisa de mestrado esperamos ter
uma abordagem mais sólida do que está sendo aqui
proposto.
Pretendemos, assim, fazer uma breve discussão a respeito
das aglutinações produzidas pelas fronteiras através de relações que
mundo fronteiriço não se resumem as concepções jurídico-administrativas que o
Estado convencionou para a visualização do território. Entendemos aqui por
território o espaço imprescindível para a reprodução social, seja de um
indivíduo, de um grupo social ou de uma instituição (HAESBAERT, 2004, p.20), ou
seja, o território está relacionado ao uso e a posse dos sujeitos, assim como,
os mesmos podem ser o próprio território.
A intenção é averiguar algumas das flexibilidades
dessa “zona de fronteira”, na qual a cidade de Corumbá/MS está inserida, como
também os distúrbios sociais e orgânicos ensejados pelo caminhar dúbio das
relações dos indivíduos e dos seus grupos nesse espaço de aglutinações. Estas
que proporcionam a associação não somente dos territórios dos Estados boliviano
e brasileiro, mas também a simbiose dos sujeitos fronteiriços, dotados de
experiências e que dão uma inexorável mobilidade a esse “entre-lugar”, que
segundo Hanciau (2005, p.127), significa, “novos espaços, que, misturados às
virtualidades globais e às regionalidades enunciativas, atendem ao apelo de
instâncias subjetivas dos discursos em circulação”.
OS ESTRANHAMENTOS DE UMA “ZONA DE FRONTEIRA”: A RELAÇÃO
“AMIGO-INIMIGA” DE BRASILEIROS E BOLIVIANOS EM CORUMBÁ
/MS
A “zona de fronteira” é construída a partir da
experiência do próprio indivíduo, na qual existe “uma união sintética de
distância e presença, do estrangeiro e do íntimo” (HAESBAERT, 2004,17). Assim, é
vital demonstrar alguns discursos e contra-discursos que são inerentes a
dinâmica fronteiriça circunscrita aos relacionamentos de bolivianos e
brasileiros na cidade de Corumbá/MS, os indivíduos dessa sociedade, sendo ou não
originários dessa região de fronteira, convivem com os “não reconhecimentos” que
nela existem.
Esta discussão envolve os imigrantes bolivianos
que se encontram nessa “zona de fronteira” e o choque dos mesmos com a realidade
dessa localidade, ou seja, com uma realidade que é caracterizada pela simbiose
da integração que também acontece a partir de laços informais, no comércio, na
cultura, e pelas relações históricas entre brasileiros e bolivianos, pautadas,
principalmente, pelo preconceito. A esse imigrante, além do preconceito, está
ligado o sentimento de solidariedade, esses dois elementos fazem parte da
conjuntura que desenha o quadro político-social dessa “zona de fronteira”. Fato
que denota ao imigrante boliviano, inserido nessa trajetória de aproximações e
dos afastamentos no interior dessa fronteira, um caráter de instituição. O que
queremos dizer é que o imigrante, a solidariedade e o preconceito podem ser
considerados “Instituições informais de fronteira” (RAMALHO JR. & OLIVEIRA,
2009, p.04).
Estas instituições, segundo Ramalho Jr. & Oliveira (2009), vão além
“das instituições, que cumprem suas funções, bem esclarecidas em seus estatutos
formais, sempre servindo a quem o criou, o Estado”:
A diferenciação
elementar entre essas duas categorias é que a primeira possui uma regulamentação
formal, com status jurídico próprio, enquanto a segunda se reproduz em tintas
invisíveis. As instituições próprias às fronteiras são formadas a partir de uma
apropriação de elementos que, embora não lhes sejam exclusivos, encontram
naquelas localidades, formas e expressões de manifestações que lhes são
peculiares. Trataremos aqui de três desses elementos: o imigrante, o preconceito
e a solidariedade, manifestas em Corumbá, MS (RAMALHO JR. & OLIVEIRA, 2009,
p.04).
Também de acordo com os autores essa dialética
entre o formal e o informal, está sincrética ao percorrer do preconceito e da
solidariedade, a última disfarçada em “tolerância”, constituindo-se num elemento
fundamental para verificarmos o contexto da relação de forças no interior dessa
sociedade fronteiriça, que emana algumas manifestações de cunho político,
concomitante aos atos xenófobos.
A solidariedade institucionalizada, disfarçada em
tolerância, manifesta-se com discursos explosivos, mas disfarçados pela sutileza
existente na retórica de que ”as fronteiras são porosas, que aceitam os
contrários”. Vamos observar a imagem nº 1, trata-se de uma mureta “pichada”,
paralela a chamada “escadinha da 15”, localizada na Avenida General Rondon, no
centro da cidade de Corumbá. A mensagem é uma manifestação de não-aceitação ao
“outro”, nesse caso, ao boliviano.
Figura 1- “Pichação” de manifestação contra o
boliviano
Fonte: RAMALHO JR, A.
L. & OLIVEIRA, M. A. M, 2009, p.13
Na mureta está escrito, num tom quase que não-identificavel, “Fora
boliviano”, esta manifestação em particular, foi passível de uma observação
interessante por parte de Ramalho Jr.(2009) e Oliveira (2009), segundo os mesmos
essa mureta está “localizada na Av. General Rondon, lugar turístico, de amplo fluxo
pelos moradores da cidade e palco dos principais eventos, entre eles o Festival
América do Sul que, curiosamente, tem como objetivo principal a integração dos
povos sul-americanos” (RAMALHO JR. & OLIVEIRA, 2009, p.08). Este é um
exemplo dos limites que ainda existem em relação ao “outro”, e que reflete uma
das condições do “entre - lugar” apresentado nessa “zona de fronteira”.
Este fato nos leva a pensar sobre a distinção
entre “a ideologia da integração”, que atualmente impulsiona os projetos que
envolvem a IIRSA (Iniciativa para Integração da Infra-estrutura Regional
Sul-Americana, cujo objetivo é o de reestruturar a infra-estrutura de transporte
do continente) e a integração a partir das relações históricas e reais das
populações que estão e estarão conectadas aos equipamentos dessa iniciativa.
A “zona de fronteira” em questão está diretamente
relacionada a um dos eixos de integração da IIRSA (Eixo interoceânico
Brasil-Bolívia-Chile), proporcionando uma aproximação física mais contundente
dos territórios boliviano e brasileiro, o equipamento rodoviário pode
futuramente estreitar em maior grau as relações econômicas entre Brasil e
Bolívia, mas não garante uma aproximação entre os “povos” desses Estados, e
muito menos dos municípios de Corumbá/MS, Ladário/MS, Puerto Quijarro e Puerto
Soarez.
Apesar de existir um projeto que visa
reciprocidades estatais, e que incide diretamente sobre essa “zona de
fronteira”, tal processo ainda é incipiente, e como se tratam de aglutinações
entre dois Estados distintos, no que se refere aos seus quadros institucionais e
principalmente sociais, serão necessárias políticas específicas para essa região
de fronteira, já que nessas localidades, as contradições dos diferentes setores
dos Estados se manifestam abruptamente em alguns casos. No caso da manifestação
xenófoba apresentada, a mesma concerne às relações históricas entre brasileiros
e bolivianos nessa localidade.
Segundo Marco Aurélio Machado de Oliveira o lado
boliviano da fronteira começou a crescer demograficamente a partir dos anos 80,
conjuntura que provocou o surgimento de novas localidades, fazendo quadruplicar
sua população em uma década (OLIVEIRA, 2005, p.355). Dessa forma, o crescimento
do lado boliviano se deu com a ausência de infra-estrutura citadina mínima, com
habitações de mau aspecto, inadequações na coleta de lixo, no tratamento de
água, originando assim gritantes assimetrias, realidade que, segundo Tito Carlos
de Oliveira, fez os brasileiros desviarem para o lado boliviano o sentido de
culpa (OLIVEIRA, T.C.M., 2009, p.39).
O contato dessas assimetrias criou margens para
essa “tolerância” na convivência entre brasileiros bolivianos, e os reflexos
desse sentimento se transformam num dos motivos dos mesmos se encontrarem
íntimos e distantes ao mesmo tempo, a manifestação apresentada anteriormente,
mistura-se aos anseios políticos dos diferentes grupos que atuam nessa
sociedade, principalmente por parte dos brasileiros, que ao se posicionarem em
favor dos seus interesses, utilizam-se da imagem criada à respeito do boliviano,
na qual ele é o culpado pelos problemas dessa “zona de fronteira”,
exteriorizando discursos tão xenófobos quanto aquele que demonstramos na imagem.
O jornal Correio de Corumbá, em sua edição 2503, de janeiro de 2011, um dos
jornais de maior circulação no município de Corumbá/MS, apresentou aos seus
leitores uma crônica intitulada “BOM DIA PARA VOCÊ! Um passeio à Bolívia”, vamos
reproduzi-la na integra:
Era domingo, 8 horas da manha. Para aproveitar o
ar fresco que ventilava o nosso rosto, saímos, Josefina e eu, para um passeio.
Achamos que seria agradável uma volta
pela fronteira e, quiça, até uma cidade próxima em território boliviano.
Assim pensamos e assim procedemos. Naquele tempo a passagem pela fronteira
era difícil, dado o péssimo estado de conservação do local. E por ter sido
assim, casualmente o espelho retrovisor externo do meu carro tocou de leve no
braço de um policial que por ali passava. Nada de mais. Dei-lhe toda atenção que
merecia e ele correspondeu com a mesma gentileza. Quando já ensaiava reiniciar o
passeio, eis que surge uma terceira
pessoa que, pela roupa que usava e que devia estar usando há mais de 10
dias, devia ser policial também.
Por favor – disse-me! Saia do carro – o que dizia numa tonalidade de voz
nada amigável.
“Chiii – acho que o bicho vai pegar – disse a
minha acompanhante.” E não deu outra: “ acompanhe-me até o escritório” – o que
dizia mostrando um casebre próximo do local. A casa era de uma única peça. Seu
interior cercado de poeira por todos os lados. Um apequena mesa que mal se
aquentava sobre as quatro pernas. Sobre a mesa um livro. Devia ser o Livro da
Lei, imaginei. A folha já estava aberta na página 43. O guarda quis disfarçar
tentando fechar o livro que, por conta própria, se abria sempre na página 43.
Ah, aqui está – disse o policial – docientos bolivianos. E eu, com a cara mais
idiota da paróquia, sim: docientos bolivianos. E daí? Hay que pagar, ES La
penalidad! – E onde vou encontrar 200 bolivianos a esta hora? Ainda estão todos
dormindo! Meu carro é pequeno não cabe mais do que 3 pessoas por viagem. O que
devo fazer? A essa indagação o policial não gostou. Achou que eu estava gozando.
E estava mesmo! “Mira: ou ud se comporta ou vou detê-lo até segunda-feira”.
Desculpe, senhor, é que no entiendo nada sobre bolivianos,. Soi brasilero e
... metido a engraçado – completou o
policial. Percebi, até, que ele já me olhava com ar de simpatia. Mas não me
liberava para prosseguir com o passeio planejado.
Su nombre y profissión?
Disse-lhe meu nome, acrescentando: funcionário
público municipal.
Estão usted és funcionário municipal – indagou o
policial. E trabalha adonde? – na prefeitura. Junto ao Prefeito. Dr. Éder
Brambilla.
A partir dessa revelação notei a mudança de
comportamento do policial. Tornou-se mais simpático, mais risonho.
- Quer decir que usted é funcionário de Dom
Éder?
Por favor, sente-se! (até então estava
conversando de pé). Uma vez que o senhor é funcionário da prefeitura e do nosso
amigo Dom éder, vamos dar o assunto por encerrado. Desejo, ainda, pedir-lhe
desculpas pelo incidente. Meu nome é ...
Peço recomendar-me a su chefe, Dom Éder
Brambilla.
A
ocorrência atrasou-nos em 1 hora para o passeio. Já cansados e transpirando por
todos os poros de tanto blá-blá- meio ao português e o boliviano, retornamos
dali mesmo para a nossa casa, esgotados por uma ocorrência que alterou aquela
que seria nossa deliciosa manhâ de domingo (NETO, 2011,
p.11).
Essa crônica demonstra a visão do autor sobre o que ele pensa da
“fronteira” e sobre o boliviano. Uma percepção espaço-temporal sobre “zona de
fronteira” que é resultado das relações históricas entre brasileiros e
bolivianos, no qual o segundo sempre possui a má índole, a péssima conduta, e
sempre será o errado nas histórias. É muito preocupante quando esse tipo de
posicionamento é disseminado a partir de um meio de comunicação, sobretudo,
quando se trata de um jornal lido por muitos corumbaenses, narrativas desse
nível contribuem para a perenização de alguns estereótipos. Por exemplo, quando
afirmou “surge uma terceira pessoa que, pela roupa que usava e que devia estar
usando há
mais de 10 dias, devia ser policial também”, será que estava tentando
dizer que o policial boliviano era um “sujo”, que não era asseado? Subentende-se que sim, mas que também
todos os bolivianos também. Observa-se que além de, aparentemente, afirmar que o
boliviano é “sujo”, que “não toma banho”, ao criticar a suposta conduta política
corrupta do ex-prefeito da cidade de Corumbá, Éder Brambilla, utilizando-se da
estória do policial boliviano corrupto tentando suborná-lo, ressaltando a sua
ligação com o ex-prefeito, o autor dessa crônica, em outras palavras, também
deixa a entender para o leitor que todo boliviano é corrupto.
Durante o trabalho de campo que realizamos no município de Corumbá/MS,
constatamos que parte da população realmente pensa que todo boliviano é “sujo”,
é “corrupto”, que o lado de lá da fronteira (municípios bolivianos) é perigoso.
São olhares condicionados por posicionamentos do nível da crônica apresentada.
Esse tipo ativismo político, em que se cria um estereótipo para boliviano,
corrobora no sentido de poder levar parcelas da população a pensar da mesma
forma e, principalmente, a reproduzir discursos semelhantes, como o caso da
frase “Fora boliviano” pichada naquela mureta.
Nota-se também que vários grupos da sociedade em
questão ainda não tomaram consciência do contexto em que “também” vivem (ou não
querem), na qual a relação entre brasileiros e bolivianos ultrapassa os limites
jurídicos do território. Quando o autor afirma que iria dar “uma volta pela
fronteira e, quiçá, até uma cidade próxima em território boliviano”, o mesmo
percebe somente o limite estabelecido juridicamente para convencionar que seriam
os territórios boliviano e brasileiro, o autor não poderia dar “uma volta pela
fronteira”, pois ele já está nela.
As interações que ocorrem nessa “zona de
fronteira”, como já ressaltamos, vão além dos limites convencionados pelo o
Estado, brasileiros e bolivianos se cruzam diariamente nos centros comerciais,
nas feiras públicas, nas casas bancárias, etc. Como podemos estabelecer os
limites para esse contato? Até que ponto a existência de um limite jurídico pode
estabelecer que lá ou aqui é a fronteira?
Em relação a ultima indagação, o grande limite
nessa “zona de fronteira”, não está lá nem aqui, o que limita e separam
brasileiros e bolivianos é a maneira como observam uns aos outros. Solange Gomes
da Silva em seu trabalho de monografia, cujo título é “Bolivianos e Brasileiros
em Corumbá, MS: Preconceitos e Cooperação e Mútuos”, na tentativa de explicar a
relação da população corumbaense com os bolivianos, o que ela denominou
“alegoria da vizinhança”, em uma de suas entrevista relata a visão de uma
corumbaense à respeito dos seus “vizinhos”, “eu os considero como considero meus
vizinhos, mal cumprimento meus vizinhos, não tenho intimidade, são indiferentes
para mim” (SILVA, 2004, p. 12 apud
OLIVEIRA, 2005, p.355). Nota-se uma “proximidade-distante”, ou seja, os
indivíduos dessa fronteira estão aglutinados em suas relações e distantes ao
mesmo tempo.
Mas, como afirma Claude Raffestin, “A fronteira
nasce da diferença”, e é a partir delas que podemos identificar seus aspectos
contraditórios, ou seja, a existência dos “estranhamentos” entre os
fronteiriços, assim como, é através dos antagonismos que devemos pensar em
mecanismos de convergência, que ao menos mitiguem os choques, que nunca vão
deixar de existir entre aqueles que convivem numa região de permissividades, de
porosidades e de flexibilidades que é a “zona de fronteira”.
O IMIGRANTE BOLIVIANO: UMA FRONTEIRA NA “ZONA DE
FRONTEIRA”
Os
bolivianos, é preciso ressaltar, atuam no comércio de Corumbá há mais de vinte
anos, predominando no comércio informal, nas feiras livres, nas calçadas e na
chamada “feirinha boliviana” que está situada atrás de um dos cemitérios do
município (OLIVEIRA, 2005, p.355). São “fronteiras” no interior de uma “zona de
fronteira”, pois além de estarem presentes fisicamente trazem consigo sua
cultura, seus anseios, seus medos e os fazem explícitos para os corumbaenses.
Dessa forma, como fronteiras, são protagonistas na relação de forças que
caracteriza a localidade fronteiriça em questão.
A
condição “amigo-inimiga” de brasileiros e
bolivianos na cidade fronteiriça de Corumbá/MS acirra-se na medida em que alguns
setores do comércio formal se
mobilizam aqueles que estão na informalidade. Na mesma edição de janeiro
de 2011 do jornal Correio de Corumbá, através da seção denominada “Torpedos”
encontramos a seguinte notícia:
Estão ficando cada vez mais intransitáveis as
calçadas das ruas centrais de Corumbá, que mesmo algumas sendo largas, com sua
ocupação por parte de vendedores diversos, principalmente bolivianos que
esparramam pelas mesmas cestas com vários produtos, os pedestres ficam
prejudicados na sua caminhada, sendo obrigados a circularem pelas ruas, correndo
o risco de serem atropeladas. O local favorito para esse comércio “ilegal”
(grifo nosso) é a calçada do nosso principal jardim público, ou seja, na praça
da independência, defronte ao colégio CENIC, na rua Frei Mariano, continuando
pela principal via pública da cidade e tomando conta também da 13 de junho e
Delamare, entre as ruas Antônio João e 15 de Novembro. Um verdadeiro absurdo
(YUNES, 2011, p.03).
Está explicito que a denuncia do “verdadeiro
absurdo” relaciona-se diretamente aos interesses dos comerciantes “legais”
(todos nós sabemos que imprensa se manifesta mediante aos interesses de
terceiros, na maioria dos casos de quem paga mais), o autor da matéria, também
ressalta:
Se já não bastasse a feirinha boliviana atrás do
cemitério, que prejudica o comércio estabelecido no centro da cidade, ainda
temos os bolivianos expondo acintosamente suas mercadorias sobre as calçadas da
área central da Capital do Pantanal. Façamos isso lá na Bolívia e seremos presos
ou levaremos uma surra dos comerciantes do vizinho país (Idem, p.03)
Realmente, inúmeros comerciantes bolivianos estão
atuando na informalidade, e quando se caminha pelas principais ruas do centro do
município, isso é visível, principalmente nas ruas citadas pelo jornalista.
Dessa forma, não pagam impostos, e em alguns casos, vendem o mesmo produto dos
chamados comerciantes “legais”.
Mas, esses comerciantes bolivianos, acima de
tudo, estão numa condição de desterritorializados, não pelo fato de muitos
desses imigrantes bolivianos deslocarem-se das suas regiões de origem para essa
“zona de fronteira” (verificamos em nosso trabalho de campo que maior parte dos
bolivianos que trabalham em Corumbá/MS, não são originários de Puerto Quijarro e
de Puerto Soarez, muitos são oriundos do interior da Bolívia), mas, porque os
mesmos encontram-se em condições precárias, são minorias que tiveram que se
adequar a uma nova condição de vida.
Durante o nosso trabalho de campo, também tivemos
a oportunidade de entrevistar André Ramalho Junior, professor da rede de ensino
particular do município de Corumbá/MS e discente do Programa de Mestrado de
Estudos Fronteiriço da UFMS - Campus do Pantanal, cuja pesquisa é, justamente,
sobre os imigrantes bolivianos que se encontram nessa “zona de fronteira”,
segundo o mesmo:
O que não podemos perder de vista são as
condições de inserção, primeiramente, alguns imigrantes bolivianos que chegam
aqui, ainda mais se ele vem do altiplano, falam muito pouco o espanhol, somente
vão falar o espanhol ao invés do quéchua ou outro dialeto indígena, caso ele se
origine de uma região de fronteira com outro país que também fala o espanhol,
então, na verdade o que algumas pessoas falam sobre a vocação do boliviano para
o comércio, não é uma vocação, é uma necessidade da pessoa que chega aqui,
possui pouca instrução, possui pouca inclusão social, assim o que resta para ele
é o comércio informal. Por exemplo, existem bolivianos que estão há mais de
vinte anos em Corumbá, que se tentarem exercer outra profissão na cidade, não
conseguem. Imagine você chegar num lugar onde não consegue se incluir no mercado
de trabalho e nem consegue o acesso ao código lingüístico local, o indivíduo vai
se aproximar daquilo que está mais próximo daqueles já estavam anteriormente no
lugar, que nesse caso é o comércio.
Dessa forma, é um pouco complexo afirmar que as
atividades econômicas exercidas por esses imigrantes bolivianos soam somente
como “ilegal”, como afirmara o jornalista na matéria (obviamente o mesmo tem
todo o direito de se manifestar politicamente como quiser). O conceito de ilegal
ou ilegal, nesse caso como discurso político, servem somente para ampliar as
visões xenófobas que já existem em relação ao boliviano, pois as convenções
jurídicas que relugamentam a noção do que é ilícito e do que é licito, não
consegue ser aplicada de forma plena nessa relação do imigrante boliviano com o
município de Corumbá/MS. Até porque, o discurso do jornalista, sendo parcial,
não explicita “o porquê” desses “ilegais” se encontrarem em tal condição.
A imagem nº 2, por exemplo, apresenta alguns
comerciantes bolivianos no centro da cidade de Corumbá/MS e a conexão dos mesmos
com o ambiente citadino corumbaense. Os limites físicos dessa cena são
absolutamente evidentes, mas, a estética que circunda esse cenário não é
suficiente para se fazer uma análise do que está implícito em tal
materialização, ou seja, os comerciantes informais, estão no quadro do ilícito
para as normas jurídicas do Estado (que também servem de discurso político), mas
a doutrina que define as ilicitudes nesse tipo de contexto, não consegue
identificar que a essas atividades comerciais ditas “ilegais” esta conectada a
inserção precária desses indivíduos na sociedade corumbaense.
Figura 2 – Comerciantes informais bolivianos na Rua
Frei Mariano, cruzamento com a Rua Delamare.
Fonte:
FERNANDES, 2011, Imagem de campo.
Assim, contextos semelhantes ao apresentado na
imagem são comuns nessa cidade, o aparente contraste visual, na realidade é mais
uma das materializações que envolvem as relações fronteiriças entre os moradores
dessa “zona de fronteira”, na qual se integram preconceitos e aceitações e que
emanam inúmeros fragmentos, sujeitos a várias interpretações. Contudo, as
interpretações relativas ao que é legal ou ilegal, somente poderão chegar a um
denominador comum, quando forem criadas leis específicas que consigam atender as
demandas relacionadas ao setor de trabalho dessa
localidade.
Nesse mesmo período também entrevistamos o
Gerente do Centro Integrado de Assistência ao Trabalhador (CIAT) de Corumbá/MS,
José Renato Kassar. Ao ser perguntado se existia algum projeto que atendesse as
demandas de geração de empregos na fronteira, de qualificação profissional, de
legalização daqueles que atuam na informalidade, tanto para brasileiros quanto
para bolivianos, o mesmo foi categórico em afirmar que: “Infelizmente eu
desconheço esse projeto, atualmente eu desconheço, derrepente eu posso estar até
errado, mas...”, ou seja, por essas palavras intui-se que ainda não existe um
projeto para o mercado de trabalho que possa atender as conjunturas futuras de
aumento populacional nessa localidade fronteiriça, abrigando bolivianos e
brasileiros. Assim, a visualização do comércio “ilegal” e a sua utilização como
discurso político por alguns setores da sociedade corumbaense permanecerá dando
margens para os distanciamentos entre a população boliviana e brasileira nesta
“zona de fronteira”, contribuindo dessa forma para ações radicais de ambos os
lados.
Mas, apesar dessa realidade de antagonismos, é
importante afirmar que todas as conjunturas apresentadas são fragmentos
característicos dessa massa orgânica unívoca inerente a essa “zona de
fronteira”, e que criam liames entre brasileiros e bolivianos, engendrando os
seus estranhamentos, mas sempre sincréticos as aproximações que as originam. Os
símbolos, os signos, os sujeitos que materializam o “não querer”, “o tolerar”,
as cooperações veladas pelo preconceito estão conectados uns aos outros e
interdependentes. Bolivianos e brasileiros naquela “zona de fronteira” possuem,
acima de tudo, uma “amizade-inimiga” porque entrelaçam sentimentos e ações, que
permitem ao “outro” mergulhar num cotidiano de reciprocidades, criando
mecanismos capazes de falsear relações solidárias, como também conseguem
alicerçar relações de bem-estar a partir da realidade que vivem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Brasileiros e bolivianos são amigos e
inimigos concomitantemente nessa “zona de fronteira”, pois se conhecem, as vezes
se odeiam, mas não podem existir como sujeitos sem o outro. A inimizade aqui
citada nada tem haver com as teorias realistas que envolvem o dilema da
segurança, ou seja, do conflito bélico entre dois Estados. São amigos-inimigos
porque, ainda, não existe uma norma específica que atenda essa localidade de
fronteira em suas distintas esferas, assim a relação dos indivíduos que residem,
trabalham, e atuam em diferentes dimensões se dá a partir da dialética
estabelecida nessa “zona de fronteira” e que está além da idealização daqueles
normatizam as concepções do Estado.
Enquanto não forem criadas políticas específicas
levando em consideração a realidade dessa “zona de fronteira” as celeumas sempre
estarão suplantando as reais necessidades da população dessa localidade. Assim,
não basta materializar um equipamento rodoviário somente para escoar
determinados tipos de produção, o que facilita o estreitamento das relações
econômicas, sem criar mecanismos que ensejem o estreitamento das relações
humanas entre os indivíduos dessa “zona de fronteira”. O que queremos dizer que
é necessário a criação de um processo que reeduque os indivíduos, num sentido de
fazê-los perceber como realmente se caracteriza o
“outro”.
“O meu amigo é o meu inimigo” porque o primeiro
sabe dos nossos sonhos, dos nossos anseios e principalmente do que precisamos,
dessa forma, o primeiro a nos prejudicar, seria supostamente, nosso próprio
amigo. Mas, antes de fazê-lo (caso faça) possui um conhecimento prévio sobre
nós, o que significa que o nosso amigo pode também não nos prejudicar, mas
tentar se beneficiar com as nossas virtudes, corrigindo nossos
defeitos.
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Bolívia. In: CORREIO DE CORUMBÁ. Edição nº 2503,
Janeiro de 2011.
¹ Aluno do Programa de Pós-Graduação – nível Mestrado – em Geografia,
da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), orientando do Professor/ Doutor Adauto de Oliveira
Souza – roberto_mauro.78@hotmail.com
Ponencia presentada en el XIII Encuentro
Internacional Humboldt. Dourados, MS, Brasil - 26 al 30 de setiembre de 2011.