TERRITÓRIOS REOCUPADOS: As rugosidades sociais na Pedra
Lisa
Edevaldo Aparecido
Souza
Professor Ms. na Universidade Estadual de Goiás,
doutorando pela
Universidade Federal de Uberlândia
Rosselvelt José
Santos
Professor Doutor, na Universidade Federal de
Uberlândia
RESUMO:
A proposta deste texto é evidenciar as
rugosidades marcadas pelos encontros e desencontros da modernidade com o
tradicional na Comunidade Pedra Lisa, uma das sub-regiões do Município de
Quirinópolis/GO, e tem como objetivo destacar a existência de
multiterritorialidades a partir das coexistências e ressignificações
constituídas pelos processos e temporalidades presentes nesse espaço. A
predominância fundiária na comunidade Pedra Lisa é de pequenas propriedades, com
atividade de gado leiteiro, com características tradicionais, embora atualmente
os produtores familiares convivam com a modernização no campo, sobretudo a
partir da expansão da cana-de-açúcar, em áreas vizinhas e em algumas áreas
dentro da própria comunidade. A partir do método da percepção, é possível
analisar como os modos de vida e de produção rural, tendo já incorporados
elementos recentes da sociedade moderna, a partir de novas tecnologias da
produção no campo, conseguem manter traços tradicionais em suas atividades de
produção e de organização da vida.
Palavras-Chave: Pedra Lisa, rugosidades sociais, identidades,
multiterritorialidades.
REOCCUPIED TERRITORIES: social differences and new
identities.
The proposal of this text is to highlight the differences marked with
the rights and failures of modernity in a traditional community named Pedra Lisa
in the City of Quirinópolis/GO. Also this paper has as objective to evidence the
existence of multiterritorialities, from the coexistences and resignifications constituted from the processes and temporalities found in the area.
The agrarian predominance in Pedra Lisa is based on small properties, with milk
production, traditional characteristics; even knowing tha familiar producers
coexists with modernization in the field, specially because of the expansion of
the sugar cane production in neighboring areas and some areas inside of the
proper community. From the method of perception, it is possible to analyze how
the ways of life and agricultural production, having already incorporated recent
elements of the modern society, from new technologies of production in the
field, they can keep traditional traces in its systems of production and life
organization.
Key Word: Pedra Lisa, social differences, identities,
multiterritoriality
Introdução
Este texto é parte da pesquisa e discussão de um capítulo de tese
para o Programa de Pós-Graduação da UFU, ainda em fase de elaboração do texto
final. Busca estabelecer um debate acerca das relações entre as atividades
cotidianas tradicionais e as necessidades impostas pela modernidade, existentes
nas comunidades rurais, com os homens e mulheres da terra, em especial da
comunidade Pedra Lisa,
município goiano de Quirinópolis. Relações essas que impõe redefinição das
identidades e o estabelecimento de novas
territorialidades.
O Município de Quirinópolis é interligado por
rodovias pavimentadas através da GO-164, ligando à BR-452 e GO-206, que dá
acesso à BR-384 (CORRÊA, 2010). A subregião Pedra Lisa, uma das 21
subdivisões do município,
é constituída, em sua grande maioria, por pequenas propriedades, tendo como
produção principal o gado leiteiro, com presença também de gado de corte.
Observa-se que o nível de sentimentos dessa população com o lugar imprime
identidades ímpares, entretanto, a coexistência de práticas sociais tradicionais
com outras tecnologias modernas são evidentes, sobretudo com a plantação de
cana-de-açúcar para produção de etanol, em três pequenas propriedades e duas
médias, conforme o mapa de uso e ocupação do solo.
Sabe-se que a sociedade e o espaço não são
homogêneos e nem delimitados por uma única lógica social, ambos estão em
constante transformação por forças exógenas. Entretanto, em sociedades
tradicionais como as organizações sociais da Pedra Lisa, o tempo pretérito é
parte do presente e em certas práticas sociais é venerado, sendo que os
símbolos, principalmente religiosos são valorizados, pois representam várias
experiências de vida. Nesta condição, contém e são contidos por tradições
inventadas por gerações. No cotidiano sustentam os modos de vida de uma
comunidade que se constituiu historicamente aprendendo e ensinando aos seus
descendentes a lidar com o tempo e o espaço (SOUZA,
2009).
Na comunidade, a reocupação do espaço e a
reestruturação dos processos produtivos pelo capital, influenciou disputas por
terras e propiciou aos produtores rurais convivências de diferentes lógicas
sociais. No tocante às relações econômicas e culturais, a comunidade agiu
ressignificando espaços, jeitos de obter a produção da vida nas suas várias
dimensões. As festas e relações familiares seguiram uma existência comunitária,
numa complexa e complicada relação de coexistência entre tradição e modernidade.
No que se refere aos hábitos, costumes e tradição
comunitárias, a presença dos representantes do setor sucroalcooleiro parece
ignorar essas humanidades. Na busca de áreas para cultivar a cana-de-açúcar, as
humanidades dos homens do Cerrado não fazem o menor sentido para o capital e,
por consequência, para o Estado. Nesta condição é preciso compreender bem que
nesta parte do Cerrado não existe somente a lógica capitalista. É necessário
reconhecer a coexistência de outras lógicas, inclusive aquelas concebidas pelos
povos tradicionais.
Metodologicamente, este capítulo está sendo
desenvolvido a partir do método da percepção. No campo estamos agindo de forma a
identificar, observar e analisar os elementos humanos e sócio-espaciais
envolvidos nas práticas tradicionais e os inseridos pela modernidade, sobretudo,
pela recente implantação de modelos tecnológicos da produção da
cana-de-açúcar.
Nesse caminho buscamos evidenciar quais são os
frutos culturais produzidos desse hibridismo, quais os modos de vida que foram
redefinidos a partir dessas relações. Nosso propósito é apresentar as novas
identidades que surgiram nessa relação entre elementos da modernidade e aqueles
que mantêm alguma característica do tradicional. Os procedimentos metodológicos
constituem-se de visitas a campo para observação e compreensão das relações
sociais; da leitura sistemática, bem como do debate teórico e metodológico
envolvendo as categorias território, lugar e
rugosidades.
A partir das noções de rugosidades e
ressignificações
sócio-espaciais compreendemos ser possível analisar as transformações
estruturais das famílias de pequenos produtores de leite desta sub-região. Neste
caminho daremos especial atenção às formas de organização do espaço vivido, da
estruturação dos modos de vida e das relações com o fenômeno da modernidade
tecnológica de produção, inseridas no lugar, reordenando territórios e
transformando paisagens rurais e culturais.
Rugosidades sociais e novas identidades
As rezas continuam. Essas foram pouco modificadas
pela introdução das lógicas capitalistas. Os encontros semanais acontecem cada
semana em uma casa diferente, marcando a próxima sempre ao final de cada reza.
Não são muitas famílias a freqüentarem, mas das famílias que participam sempre
tem um bom número e, embora nem todos tenham o costume de entrar na discussão,
no caso dos encontros de reflexão, sempre algumas pessoas se posicionam. No
período da quaresma de 2011, por exemplo, o tema discutido foi a degradação
ambiental, sobretudo a questão do aquecimento global. Uma temática muito próxima
da Ciência Geográfica. Gerou muitas concordâncias, mas também contradições,
principalmente no que se refere à introdução da cana-de-açúcar na região e suas
implicações.
O tempo das rezas continua. Essas práticas
sociais foram pouco modificadas pela introdução da lógica capitalista. Os
encontros de cunho religioso acontecem a cada semana em uma casa diferente,
marcando um ritual que de tão importante se revela como acordo tácito e que se
renova sempre ao final de cada reza. As famílias ao participarem deste ritual
tomam parte em bom número de membros. Embora nem todos tenham o costume de
entrar na discussão sobre o avanço da monocultura da cana-de-açúcar, no caso dos
encontros de reflexão religiosa, sempre há aqueles que emitem opinião e se
posicionam. No período da quaresma de 2011, marcado pela campanha da
fraternidade, por exemplo, o tema discutido foi a degradação ambiental,
sobretudo a questão do aquecimento global.
A preocupação dos camponeses com o ambiente
indica que o aquecimento global, também tem abrangência local. Mexe com a
subjetividade das pessoas, havendo inclusive manifestações que expressam
preocupações a respeito dos efeitos sobre a vida no lugar. Sem dúvida, uma
temática muito próxima da Ciência Geográfica. Como não poderia deixar de ser, a
posição dos camponeses gerou debates com argumentações que apontam para
contradições, principalmente no que se refere à introdução das grandes lavouras
de cana-de-açúcar na região e suas implicações na vida das
pessoas.
Normalmente os encontros religiosos são semanais,
todas as quintas feiras, com a reza do terço. Nos momentos que antecedem os
eventos mais marcantes do catolicismo, as novenas de natal, por exemplo, e da
quaresma que antecede a páscoa, são usadas, também como encontros para reflexão
de temas relacionados à Campanha da Fraternidade. Ainda é possível observar
algumas variações nas rezas, nos períodos que antecedem a procissão da
via-sacra, foto 1 e do natal.

Foto 1: Procissão da via-sacra na Pedra
Lisa
Fonte: Campo, abril de
2011
No âmbito do costume religioso dos membros da
comunidade Pedra Lisa, mensalmente, na segunda quinta feira de cada mês, há a
celebração da missa. Nesse evento, com a presença do sacerdote ou diácono,
tem-se pouca participação das pessoas. São encontros que diferem dos horários
tradicionais das reuniões entre famílias, geralmente à noite. Como a missa
acontece às dezessete horas, em horário de trabalho camponês, essa situação tem
ocasionando dificuldades de participação, sobretudo dos homens da
comunidade.
Nesses encontros é costume o consumo de café. A
garrafa térmica é usada para manter a bebida aquecida. Assim, antes mesmo de
iniciar os rituais religiosos os convidados degustam o café, enquanto conversam
à respeito dos acontecimentos que cercam o cotidiano. Como de costume, ao chegar
à casa onde se realiza o terço, os membros das famílias, após os cumprimentos se
organizam para reproduzir uma cena com papéis demarcados. Nela há uma espécie de
segregação espacial que se define a partir do gênero. As mulheres se estabelecem
em uma parte da casa, geralmente na varanda, onde vai acontecer a reza, e os
homens se juntam do outro lado do mesmo espaço.
Ao iniciar a reza, todos se ajeitam para
continuarem o ritual, mas de forma fiel a separação de gênero. Ao término das
orações, homens e mulheres retomam as conversas sempre em espaços separados.
Poucos são os momentos em que homens e mulheres se misturam, mesclando assuntos.
Aparentemente são estabelecidos diálogos com temas de interesse de cada
gênero.
Com o encerramento da reza, a família anfitriã,
segue o costume de oferecer um jantar reforçado, às vezes, com quitandas e
doces. Nesses encontros revela-se também uma rede social familiar constituída em
sua maioria por irmãos, primos, tios, dentre outros parentes. Sendo um encontro
que reúne tradição e costume, o grupo social que se reúne motivado pela
religiosidade, reforçam na sociabilidade camponesa os seus vínculos
territoriais. No lugar a comunidade foi se constituindo a partir de divisão de
terras por heranças e também por famílias vindas de outros lugares que ali se
estabeleceram. Quase que ao final do encontro, como uma forma de celebração, a
cachaça, produzida na própria comunidade, por um dos proprietários participante
das rezas, está servida.
Todos participam da fartura camponesa oferecida
na janta, alguns degustam a cachaça ou o refrigerante, às vezes também tem
cerveja. Como as bebidas são servidas durante o jantar, elas fazem parte da
descontração e, nessa condição, todos prosseguem nas conversas nutridas pelo
cotidiano. Como pequenos produtores agrícolas, principalmente de leite, esses
encontros também servem para estabelecerem seus acordos e negociações
necessárias para se obter a produção. Aos poucos a aproximação dos gêneros
começa a acontecer, fato que se explica pelo horário de ir embora, para o
repouso merecido.
A religiosidade nesta comunidade é parte de uma
identidade que motiva encontros, reinventa e refaz relações sociais. Nela se
estabelece, além de acordos tácitos envolvendo reciprocidade, arranjos e
estratégias produtivas. O modo de vida camponesa vai se revelando na vida
doméstica, no lazer e na capacidade de coexistência entre o divino e o profano.
Se já não há mais encontros de mutirões visando a produção, há a ressignificação
dos encontros religiosos. Na carência de tempo, as costumeiras visitas aos
vizinhos vão dando lugar para as práticas do religioso e nele, esse camponês vai
inventado espaços para refletir sobre a vida em suas várias
dimensões.
Fabiana Rosa Moraes et al. (2010, p. 225), relembra que na
época dos carros-de-boi era comum
um vizinho em apuros com a roça ser ajudados pelos compadres, se reunindo
em mutirão.
Enquanto eles [homens] capinavam as mulheres
preparavam a ‘boia’; era fartura que não acabava mais: arroz com carne de sol,
carne de porco, mandioca, guariroba, cará, mangarito (inhame), batata doce
cozida; a ‘merenda’ (lanche) era sempre apetitosa: carimã (espécie de doce feito
de polvilho, leite e açúcar) arroz doce, biscoito de pagode (assim chamado
porque era servido nos pagodes), café, chá da casca de abacaxi e leite.
Trabalhava-se muito, porém ninguém saía de barriga
vazia.
Rosselvelt José Santos (2008a, p. 121) comenta
ser possível, a partir da religiosidade, perceber que as identidades reagiram
aos efeitos da reocupação dos cerrados. De acordo com esse autor, as práticas
religiosas fazem emergir, entre os grupos sociais, “uma clara demonstração de
identidade territorial, constituído-se em uma forma de neutralizar o sentimento
de inferioridade, incerteza e estranhamento perante a redefinição dos valores e
práticas sociais que se instalam em nome do desenvolvimento tecnológico e
econômico do cerrado”.
A religiosidade camponesa, mesmo afetada, motiva
reuniões. No convívio com a modernidade, com as influências que vem do mercado e
do espaço há, sem dúvida, mutações em uma série de hábitos e costumes dos homens
e mulheres da terra na comunidade Pedra Lisa. O encontro/desencontro do
tradicional com o moderno, no que diz respeito às atividades produtivas, mas
também dos equipamentos de consumo doméstico, promove tensões entre os saberes e
fazeres desses sujeitos, que vão incorporando novos hábitos e novos
conhecimentos, vindos das cidades e fetichizados nas mercadorias industriais que
deveriam facilitar a vida cotidiana.
Santos (2008b, p. 57) em outro texto reforça essa
idéia ao dizer que os “modos de vida não se encontram isolados das influências
do mercado, das velocidades do mundo moderno, das dessacralizações, mas
apresentam suas particularidades em relação às racionalidades, religiosidades,
às celebrações das suas ‘conquistas’ no cerrado”. Por não estar isolado,
torna-se passível de transformações. De acordo com
Santos:
Esses homens são metamorfoseados pelas imposições
sociais advindas do processo de produção e reprodução capitalista, mas essas
imposições têm seus limites, seus contornos, não são totais, no sentido de que
não chegam a perpassar todos os momentos da vida, embora exista tal tendência.
Os produtores, em grande medida, carregam sentimentos religiosos, modos de
encarar e resolver problemas que vêm do passado. Mesmo que a transformação
tecnológica os tenha ligado aos grandes mercados, não os distanciou, por
completo, de alguns costumes, hábitos, da gratidão e da moral religiosa
camponesa (SANTOS, 2008b, p. 58)
Sem dúvida há inúmeras interferências da
modernidade para a vida desses sujeitos; para a Geografia, é necessário conhecer
as implicações desse processo nos modos de vida tradicionais. Como geógrafos,
precisamos compreender os fatos a partir de categorias do pensamento geográfico.
No caso em estudo, é necessário analisar como o espaço, o território e o lugar
são metamorfoseados dentro de um processo que impõe relações, geralmente
conflituosas entre o tradicional e o moderno.
Um exemplo característico do saber-fazer próprio
das famílias camponesas e que está se perdendo é o conhecimento medicinal do
Cerrado para a cura de várias enfermidades. Como quase não há mais Cerrado, os
saberes tradicionais tendem a desaparecer, pois a escassez de ervas medicinais
se evidencia com a expansão, em larga escala, do agronegócio. A quase eliminação
do anjiqueiro, jaracatiá, gabiroba (guaivira), jatobá, goiabinha do Cerrado,
cajuzinho, mama cadela, marmelo, chapéu de couro, sucupira e muitas outras
árvores e arbustos do Cerrado comprometem em muito o saber fazer e os estudos
desses conhecimentos do lugar, no lugar e para o
lugar.
Para Eguimar Felício Chaveiro e Denis Castilho
(2010), o Cerrado é visto como um “patrimônio integrado de vida em que
participam [não apenas] as classes de vegetação, [mas também] as bacias
hidrográficas, o relevo, o solo, o seu espaço, a sua cultura, os seus símbolos,
a sua gente, a sua arte, os diferentes modos de vida que aqui se constituiu”.
Para esses autores, o Cerrado é “um arquivo vivo e dinâmico de cores, sabores,
sons, espessuras, cantos e relevos. (...) E hoje se apresenta solapado”
(CHAVEIRO e CASTILHO, 2010, p. 2).
Com a perda do saber medicinal e da
biodiversidade do Cerrado, as pessoas, na comunidade Pedra Lisa, por mais
simples que seja a enfermidade, ficam dependentes dos medicamentos químicos e
dos agentes de saúde que visitam as propriedades. São três as agentes de saúde
responsáveis pela sub-região Pedra Lisa. Duas dessas profissionais têm
propriedades na comunidade e uma delas também visita os camponeses nas
sub-regiões (Guariroba e Limeira). A terceira tem propriedade na sub-região
Alegre e sua área de atuação abrange ainda as famílias do Córrego Bebedouro que
se localiza dentro da sub-região Pedra Lisa.
A agente de saúde, ao visitar as casas, primeiro
conversa sobre os fatos ocorridos no cotidiano. Depois mede a pressão das
pessoas, sobretudo aquelas que possuem idades mais avançadas; faz entrega de
remédios e colhe as assinaturas nas fichas de visitação. Cercados pelas grandes
lavouras, privados da biodiversidade do Cerrado e agora assistidos e tutelados
pela medicina do mercado/Estado, esses sujeitos vão perdendo aos poucos a
sabedoria adquirida nas suas práticas sociais.
Nessa condição, o camponês perde espaços para
continuar desenvolvendo seus conhecimentos, inclusive medicinais, a sociedade
também perde, pois aquilo que existia desaparece com os seus sujeitos. Na
comunidade, as capacidades políticas organizacionais, festivas e também as
práticas produtivas vão se encolhendo. Surgem, a partir dessas perdas,
ressignificações sociais, que como conseqüência, aparecem outras identidades,
novos hábitos e costumes, alterando sobremaneira, valores humanos expressados em
tradições centenárias.
Santos (2008b, p.56), discutindo as grandes
lavouras de cereais, implantadas pelo otimismo do espaço e do mercado e
administradas pelos gaúchos no Triângulo Mineiro, compreende que “as lavouras e
a infra-estrutura proporcionada pela sua expansão criaram imposições sociais,
redefiniram hábitos, costumes, interferiram na consciência dos homens [...]”.
Entende ele que “essas lavouras e fazendas têm importância como criadoras de
paisagens, nesta parte do cerrado, como também do modo de vida das pessoas”.
Grandes lavouras de soja não diferem das grandes lavouras de cana-de-açúcar,
indicando que essas imposições e criações também ocorrem no Cerrado goiano e, em
especial, na sub-região Pedra Lisa.
O conceito de rugosidade, de acordo com Santos
(1988), traz a idéia de que a produção do espaço é, ao mesmo tempo, construção e
destruição de formas e funções sociais. Pelo viés do pensamento de caráter
evolutivo desigual das técnicas, entende-se que há encontros e desencontros
entre o antigo e modernidade. Segundo o autor, essas técnicas sempre se
concretizam no lugar, ocorrendo a integração destas com a vida, e retirando-as
de sua abstração empírica, lhes atribuindo efetividade histórica (SANTOS,
1988). Para este
autor:
As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou arranjos. É
dessa forma que elas são uma parte desse espaço-fator. Ainda que sem tradução
imediata, as rugosidades nos trazem os restos da divisão do trabalho já passados
(todas as escalas da divisão social do trabalho), os restos dos tipos de capital
utilizados e suas combinações técnicas e sociais com o trabalho (SANTOS, 2004, p. 140).
Considerando, como discute Milton Santos, o
trabalho como elemento transformado, modernizado, porém, com traços ainda
tradicionais, ou restos do passado, como cita, a produção de leite na Pedra Lisa
apresenta exatamente os contrastes e as contradições do que é novo e/ou velho.
Algumas propriedades têm, em seus equipamentos de trabalho e em suas práticas,
as mesmas rusticidades de décadas anteriores, como 1960, 1970 (Foto 2),
aparecendo as rugosidades dentro da região. Outras evidências apontam o
hibridismo do rústico e do moderno na mesma propriedade (essas em maior número),
apresentando as rugosidades dentro de um mesmo espaço familiar (Foto
3).

Foto 2: Pequena propriedade com equipamentos
rústicos para produção de leite na Pedra Lisa
Fonte: Campo, abril de
2011
Na área em estudo, além das relações de
trabalho/produção, da sociabilidade das famílias, o conceito de rugosidade se
estende e se aplica ao universo simbólico camponês. Carlos Rodrigues Brandão
(2009, p. 47) entende que “o que trocamos nos diferentes tempos-espaços dos
diversos mercados possíveis, são símbolos e significados, valores e sentidos de
vida [...]”.
Samuel Silveira (2007) trabalha as rugosidades
espaciais como a conexão material do presente com o precedente. Busca evidenciar
a continuidade espaçotemporal, como ele escreve, “o novo nascer velho”.
Significa, em sua concepção, que “há conectividade de um momento espaçotemporal
específico (local e global), concreto para o surgimento (nascimento) de um novo
espaço. Como se o novo fosse viciado ao velho, ao anterior, preservando e
respeitando (pois o velho é um fator-instância) algumas de suas manias”
(SILVEIRA 2007, p. 25).

Foto 3: Evidência das rugosidades na Pedra Lisa.
Curral e ordenha tradicionais e relações de produção e comercialização
modernas
Fonte: Campo, abril de
2011
O estudo das rugosidades e das metamorfoses
ocorridas no Cerrado, neste
estudo, é considerado não apenas enquanto representação de grupos sociais que se
relacionam com o bioma, mas principalmente num sistema relacional de identidades
marcantes que, na comunidade Pedra Lisa, pelas especificidades sócio-espaciais,
culturais e religiosas, possibilita apresentá-lo como território. O conhecimento
e entendimento das metamorfoses das relações sociais dos produtores
tradicionais, bem como de suas identidades, revelam as formas e os conteúdos
culturais que ligam esses sujeitos ao uso da terra.
Considera-se que a reocupação e reestruturação
dos processos produtivos do Cerrado tem proporcionado disputas e convivências de
diferentes lógicas sociais, no tocante às relações econômicas e culturais,
ressignificando espaços, modos de produção, festas e relações familiares, numa
relação complexa de coexistência entre tradição e modernidade.
O processo de obter produção a partir de uma
pecuária (ou mesmo agricultura) tecnológica (Foto 4), implementado pelas
empresas capitalistas modernas e pelo Estado, representa os interesses de grupos
empresariais e impõe, de forma abrupta, as condições de produção capitalistas
sob uma orientação economicista, modificando substancialmente a paisagem e a
cultura do Cerrado da área de estudo (Foto 5).

Foto 4 - Tanque de resfriamento de leite em uma
das pequenas associações, na comunidade Pedra Lisa
Fonte: Campo, abril de
2011

Foto 5: Mudança de paisagem - a cultura
canavieira e a indústria de álcool Boa Vista ocupam o espaço que antes era
pastagem ou Cerrado
Fonte: Campo, abril de
2011
Diante da persistência dos produtores camponeses,
há que considerar a possibilidade de que a existência de conteúdos da cultura
tradicional esteja imprimindo, nos lugares habitados por eles, ritmos e relações
de produção, ainda baseados em suas tradições. Contudo, trata-se de existências
que derivam de metamorfoses entre o antigo e o moderno, pois, por exemplo, a
pecuária leiteira é praticada incorporando elementos da modernidade, inclusive
aqueles trazidos pela cultura canavieira.
As transformações que vem ocorrendo na Pedra Lisa
não são apenas desse início de século, há que considerar pelo menos um período
de aproximadamente 1/4 de século. Na década de 1980 os grandes projetos de
capital estatal e privado promoveram a reocupação do Cerrado, tal como o
Jica/Prodecer, introduzindo novas racionalidades produtivas. Recentemente, no
que se refere às questões econômicas, sociais e culturais, houve mudanças
profundas nas formas de produzir matéria-prima, protagonizadas pela cultura da
cana-de-açúcar para obtenção do etanol e açúcar.
São diversos sujeitos com lógicas diferenciadas,
antagônicas ou não, que Rosselvelt Santos (2008a, p. 112) expressa como sendo a
“primazia das relações sociais, contratuais e formais, quando efetivada por uma
pluralidade de atores em parceria”. De acordo com esse pesquisador, essa ação
cria rupturas de modos de vida, vinculada às raízes essenciais de comunidades
locais, praticado e reconhecido como identidades culturais
tradicionais.
Retomando a discussão de rugosidade, há que
relacionar os encontros e desencontros à esse conceito. De acordo com Santos
(1980), “as rugosidades nos oferecem, mesmo sem tradução imediata, restos de uma
divisão de trabalho internacional, manifestada localmente por combinações
particulares do capital, das técnicas e do trabalho utilizados”. Significa que
as rugosidades equivalem à formas e funções do passado produzidas e reproduzidas
em outros períodos, neste caso específico, em tempos de reestruturação econômica
sob a lógica da flexibilização do capital.
Brandão (2009, p. 47), estabelecendo diálogo a
respeito das rugosidades, afirma que, “os bens da terra são produzidos
observando uma mescla de tecnologias patrimoniais (nada indica que a venda de
enxadas tenha diminuído no mercado brasileiro) e tecnologias modernas
importadas”. Ainda introduz a questão da relação rural urbano, que implica,
substancialmente nas aparições de rugosidades, como também do fenômeno abandono
do sitio, por parte dos filhos. De acordo com o
autor:
[...] Mesmo no mundo rural tradicional, os
horizontes da vida se tornam cada vez mais voltados para o ‘mundo da cidade’
[...]. Espaços urbanos tendem a ser, cada vez mais, o lugar de destino dos
filhos dos homens e das mulheres da terra, quando não, deles próprios. E as
músicas sertanejas que versejam sobre a ‘saudade da minha terra’ são o mais
triste e dolente testemunho disto (p. 47).
Essa realidade está muito presente na Pedra Lisa.
Não apenas a saída de vizinhos tem sido sentido pelas famílias que ficam, mas
também os filhos e até irmãos. Quando os pais morrem, os filhos vão vendendo as
partes que lhes cabem por herança. Às vezes fica apenas um dos irmãos. Vai
ficando um vazio, segundo relato das pessoas.
Um dos camponeses diz que tinha a mãe e os irmãos
residindo e trabalhando no local (Córrego do Bebedouro), mas com o tempo, com a
morte dos pais, os filhos foram vendendo e migrando para a cidade. Ficando
apenas ele e a esposa, uma vez que também seus filhos já estão na cidade. Santos
(2008b, p. 53) corrobora ao evidenciar que no Triângulo Mineiro “[...]
desapareceram as casas da vizinhança. Partiram os meeiros, os parceiros, de modo
que a Casa Grande dos fazendeiros não é mais circundada pelas habitações
daquelas pessoas”.
Se somar a modernização nos equipamentos de
produção, a influência da cidade (principalmente trazida pelos filhos), e a
incorporação da luz elétrica e dos meios de comunicação de massa, como aponta
Brandão, “onde o ‘assistir televisão’ se associa e compete com o antigo costume
de ‘ouvir o rádio’ [...]” (BRANDÃO, 2009, p. 47), compreende-se as
transformações substanciais nos modos de vida e no sistema organizacional dos
camponeses.
Se somar a modernização nos equipamentos de
produção, a influência da cidade (principalmente trazida pelos filhos), e a
incorporação da luz elétrica e dos meios de comunicação de massa, como aponta
Brandão, “onde o ‘assistir televisão’ se associa e compete com o antigo costume
de ‘ouvir o rádio’ [...]” (BRANDÃO, 2009, p. 47), compreende-se que as
transformações substanciais, no espaço rural, da Pedra Lisa, ocorreram nos modos
de vida e no sistema organizacional daqueles
camponeses.
Há que entender que as transformações do espaço
ou da paisagem pode se realizar a partir de uma área ou de uma região.
Entretanto, mudanças na cultura, nos hábitos e nos costumes, enfim, nos modos de
vida de uma determinada população, reelaborando territórios, ocorre com mais
propriedade no lugar. Pedra Lisa constitui-se um lugar que existe nas
metamorfoses sócio-espaciais, envolvendo as relações culturais tradicionais. No
lugar, percebe-se a incorporação de elementos modernos e coexistência de antigas
práticas sociais, nessa relação os sujeitos sociais vão se envolvendo com várias
lógicas sociais e evidenciando novas
territorialidades.
Nesse viés de pensamento, Santos (2008a, p. 108)
afirma que a tradição e o comunitário podem apresentar alguma “resistência às
imposições tecnológicas do mercado, mas também é preciso reconhecer a
dificuldade de se opor, sempre, aos efeitos socioeconômicos que as migrações de
pessoas e capitais introduzem nos contextos
locais”.
Dentre os vários elementos tradicionais que não
se encontram mais em uso no espaço agrário brasileiro, também na Comunidade
Pedra Lisa, destaca-se o monjolo, instrumento tão utilizado para limpar
alimentos como arroz e café. Apenas dois ainda se fazem presentes na Comunidade
Pedra Lisa, porém, em desuso, amarrado, permitindo que a água da bica corra
livremente, bica esta que, em conjunto com o rego d’água, encontramos em muitas
propriedades. Resta apenas a lembrança na memória e nas miniaturas (Foto 6)
feitas por alguns artesãos, como um dos camponeses da Pedra Lisa. A praticidade
do mundo moderno, aliada à renda que conseguem obter com a pecuária, lhes
permite adquirir vários produtos, tais como o arroz e o café, assim como os
outros alimentos e utensílios, nos supermercados da
cidade.
A carroça é outro instrumento de trabalho
raramente encontrado em uso na comunidade estudada. Em desuso encontra-se também
a montaria em cavalo, tornando-se uma raridade encontrar, nas estradas da
comunidade, camponeses montados a esses animais. As facilidades para comprar
veículos automotores, associados à boa qualidade das estradas, fizeram com que a
carroça e o cavalo fossem substituídos por motos com carretas (Foto 7) ou até
mesmo camionetas de pequeno porte para escoamento da produção. O que restou dos
antigos meios de transportes está encostado embaixo de árvores ou da pequena
área contígua do antigo paiol, agora utilizado como
despensa.

Foto 6: Miniatura de monjolo produzido por um
camponês da Pedra Lisa. Colocado funcionar no tanque da varanda, a partir do
impulso da água da torneira.
Fonte: Campo, abril de
2011

Foto 7: Carreta acoplada à moto para carregamento
dos galões de leite até o tanque de resfriamento
Fonte: Campo, abril de
2011
Assim como
o monjolo, o carro de boi permanece apenas na memória do caboclo ou nas
miniaturas elaboradas por artesãos. Concretamente, talvez por puro romantismo
camponês, restam na comunidade, apenas dois carros de boi. Um, sem utilização,
está depositado embaixo de uma árvore, ilustrando o verso da música “Reino
Encantado” de Valdemar Reis e Vicente F. Machado, na voz
de Lourenço e Lourival, que atualmente reviveu o sucesso após a regravação com
Daniel: “Hoje ali só existem três coisas, que o tempo ainda não deu fim, a
tapera velha desabada, e a figueira acenando pra mim. E por último marcou
saudade, de um tempo bom que já se foi. Esquecido embaixo da figueira, nosso
velho carro de boi”.
A roda d’água é um dos instrumentos tradicionais
ainda muito presente na Pedra Lisa, devido a necessidade de levar água até as
residências, uma vez que há grande quantidade de córregos. Também proporciona
uma paisagem belíssima no terreiro de casa com um rego d’água a correr pela bica
que, com o frescor das árvores que existem se complementa ambientando o local
com um micro-clima agradável.
É notório o fato de que as atividades
tradicionais das comunidades camponesas se caracterizam como sendo fortemente
imbricadas com os recursos naturais. Na Pedra Lisa, a atividade predominante
desenvolvida é a pecuária de gado leiteiro para o mercado, havendo também, em
menor proporção, uma produção voltada para uma economia de consumo, como
enfatiza Brandão (2009).
Alia-se a esta atividade a preservação do Cerrado
Strictu sensu, através das reservas e
da mata ciliar, visto ser uma área rica em recursos hídricos. Essa vegetação
oferece possibilidades de reprodução da fauna e flora que tanto encanta o homem
do campo. O gado ocupa grande parte da área já sem o Cerrado, mas convive com os
animais silvestres – tamanduá, cachorro do mato, lobo, macaco, além de aves como
o pássaro mutum, a seriema, o jaó e muitos outros.
Como descrevem Janne Mary e João Batista de Paiva
(2010, p 43), “ao entardecer começa a se desenhar a tranquilidade, os pássaros e
outros animais deslocam-se para os esconderijos e se faz presente as maravilhas
que existem ali”. Caindo o dia, depois de uma labuta árdua, chega a noite e
antes das pessoas partirem para o descanso, ainda reunidos, “surgem às histórias
e estórias, os bate-papos, as piadas e se vai, noite
adentro”.
No campo, na companhia de camponeses,
principalmente quando retornávamos das rezas, observávamos a beleza das noites,
especialmente no ciclo da lua cheia. Ela, como parte da paisagem noturna
expressa a beleza pela claridade que rompe a escuridão, que refletida na areia
branca, traz uma sensação de conforto e prazer. Motta e Paiva (2010, p. 43)
dizem que “é nesta hora que se houve ao longe o cantar do urutau, que se reveza
com a perdiz, o curiango e muitos outros que fazem da noite uma festa na mata,
maravilhando os amantes da natureza”. Nas luas, cheia minguantes e crescente
também o céu reserva o espetáculo das estrelas, como declamam Vitor e Léu na
música “Deus e eu no sertão”: “de noite um show no céu, deito pra
assistir”.
Chega o amanhecer. Os pássaros fazem a algazarra,
como quem tem a responsabilidade da alvorada e o despertar de todos.
Complementam Motta e Paiva (2010, p. 43-44) que neste momento “chegam as gralhas
pretas, os mutuns, as juritis, as rolinhas que fazem a maior algazarra (...),
enquanto isto, em todas as vizinhanças, o galo canta anunciando que o dia já iniciou, o sol logo vai despontar e que
todos devem se levantar”.
Antes mesmo que sol apareça para estabelecer mais
um dia, os camponeses já estão no curral, com uma canequinha para o leite, sem
contudo, esquecer de levar a garrafa de café e, para alguns, o rádio. Assim rompem o restante da
noite à espera do dia, ao som dos pássaros, dos berros das vacas e bezerros, do
rádio e do leite batendo no balde, espirrado das tetas das vacas, ao serem
flexionadas.
No entorno das residências, por vezes muito
próximo das edificações, passeiam os animais silvestres que ali habitam, como
por exemplo, as seriemas. Para os camponeses, o seu canto é maravilhoso, que
perto ou distante ecoa como uma dupla de cantores sertaneja muito afinada,
trazendo alegria e gosto para os que já estão na lida ou os que ainda curtem o
restante da noite na cama. Ao longe se houve também o som que o bico do pica-pau
retira da madeira do Cerrado, além de sons diversos dos variados pássaros e sons
de corredeiras dos córregos, em meio ao verde dos pastos, das reservas e matas
ciliares. Toda essa orquestra silvestre regem os elementos necessários para a
constituição do lugar do homem e mulher do campo na Pedra
Lisa.
Práticas diversas de respeito ao ser humano, às tradições e costumes
e ao meio ambiente, são encontradas nesses sujeitos do Cerrado rural, como
aquela apresentada por Chaveiro e Castilho (2010), de valorizar as táticas de
vida de passarinhos com a diversidade de seu canto. Ou de espaços rurais que
precisam preservar veredas úmidas, “averiguar os saberes de sua gente, suas
trajetórias e a sua criatividade, suas crenças, seu modo de relacionar com o
outro e consigo mesmo” (CHAVEIRO e CASTILHO, 2010, p. 9). Prosseguem os autores
relatando as relações desses ecossistemas com
as gentes e suas tradições:
A ligação do monjolo com a bica, o ritmo
compassado das batidas do pilão, os trieirinhos no imenso pomar, a mangueira, a
goiabeira, os meandros dos córregos, os chapadões, os buritis elegantes, a
familiaridade do cachorro de estimação com os donos, e também as ações sociais
de fraternidade como o mutirão, a marca, o terço da roça, a novena para chover,
os tapetes formados de folhas secas no inverno, a saliência dos ipês amarelos
nas bordas dos vales – e outros tantos gradientes dos ambientes do cerrado –
montam paisagens belas (CHAVEIRO e CASTILHO, 2010, p.
9).
Debatendo o conceito de lugar, é importante, como
afirma Ana Fani Alessandri Carlos, compreendê-lo como sendo o local conquistado
no espaço, ou seja, onde os homens, os habitantes buscam o enraizamento e os
estruturam como referência do seu modo de vida. “É o mundo vivido, onde se
formulam os problemas da produção no sentido amplo, isto é, o modo como é
produzida a existência social dos seres humanos”. Podemos dizer então que o
lugar é o espaço conquistado, é neste lugar fixado no espaço que as formas de
relações acontecem de várias maneiras (CARLOS, 1996, p.
26).
A autora escreve também que o lugar é “produto
das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por relações sociais que se
realizam no plano vivido”. Isso garante a construção de uma rede de
“significados e sentidos” elaborados pela própria história e cultura da
comunidade, produzindo a “identidade, posto que é aí que o homem se reconhece
porque é o lugar da vida” (CARLOS,
1996, p.29).
As festividades e lazer também se incluem nas
atividades de constituição do lugar. Conforme Andréia Cristina da Silva e Sônia
Aparecida da Silva (2010, p. 205), para a valorização dos hábitos é fundamental
“o sentimento de pertencer a alguma coisa e, principalmente, a preservação de
valores e tradições” e entende-se que são elementos fundamentais para a
constituição do lugar. Dentre as tradições do Município de Quirinópolis,
destaca-se:
A festa da padroeira cuja origem remonta a muitos
anos, mais especificamente à segunda metade do século XIX, quando alguns devotos
veneravam a imagem de Nossa Senhora D’Abadia em uma pequena e rústica capela às
margens do Córrego Capelinha (afluente do Rio das Pedras) (SILVA; SILVA, 2010,
p. 205).
Ainda nos dias de hoje as festas em devoção à
Nossa Senhora D’Abadia ocorrem próximo do dia 15 de agosto, com momentos de
devoção e louvor, incluindo missas, novenas e quermesse. Dessas atividades, a
população rural engrossa à urbana nas manifestações da religiosidade e
festividades, no qual a comunidade Pedra Lisa se faz
presente.
De qualquer modo, a produção do lugar está
veiculada indissociavelmente à produção da vida, buscando preservar identidades
estabelecidas ou estabelecendo novas identidades. Stuart Hall (2006) atesta que
as identidades são construídas a partir de lugares, portanto é preciso valorizar
mais a dimensão espacial, como referência em sua dimensão físico-natural e
simbólico, necessária na formação da identidade e
diferença.
Contextualizando a categoria lugar, Motta e Paiva
(2010), consideram que estudá-lo pode ser fundamental para compreensão do
processo de reestruturação econômica que transforma relações socioeconômicas e
socioculturais, ressignificando modos de vida e promovendo as rugosidades
sociais. É no lugar que se evidencia o particular, as diferenças, o singular.
Por isso é importante estudar, conhecer e entender o lugar de vivência – neste
caso Pedra Lisa se constitui no lugar dos sujeitos pesquisados – visto que novas
funções metamorfoseiam as antigas e se impõem, causando estranhamentos. Perde-se
as singularidades e as significações, ou promovem-se ressignificações.
Percebe-se, nas propriedades rurais da comunidade
em estudo que, costumes e tradições não são estáticos, estão em dinamismo com a
contemporaneidade do seu lugar na relação com o mundo moderno. Nessa relação é
importante destacar o respeito para com o ser humano, com seus valores, e em
certa medida, com a fauna e flora. As reservas e matas ciliares estão sendo
consideradas e preservadas. O manejo do solo não é tão agressivo quanto o faz o
agronegócio. O respeito, sobretudo com os vizinhos, acontece no cotidiano desses
grupos, e uma das práticas preservadas que valoriza essas relações é a religião,
sobretudo as rezas e festas da religião popular, como o terço, a novena, as
folias de reis.
Moraes et
al. (2010, p. 225) descreve as festas das décadas de 1950/60, destacando,
dentre elas, os famosos pagodes que eram tradição nas fazendas e as festas de
Santos Reis, comemorada na passagem do dia cinco para seis do mês de janeiro. A
comida era preparada para cerca de 300 pessoas. “Todos saboreavam carne de vaca
cheia, almôndega, arroz branco, feijão caldeado, mandioca e os doces eram de
leite, queijo, mamão, cidra e também estavam presentes o biscoito de pagode, a
brevidade, a broa de doce, o bolo de cará e outras
variedades”.
No processo de reocupação do espaço, há também
reestruturação dos processos produtivos, não apenas do grande capital,
personificado no agronegócio. Na
comunidade Pedra Lisa estabelece-se disputas e convivências de diferentes
lógicas sociais, no tocante às relações econômicas e culturais, ressignificando
espaços, modos de produção, festas e relações familiares, numa complexa e
complicada relação de coexistência entre tradição e modernidade. Na medida em
que os encontros e desencontros vão se estabelecendo, temos nas rugosidades e
nas ressignificações sociais, os processos de reconstrução dos territórios e das
territorialidades, talvez multiterritorializações.
As festas de pagodes ainda são freqüentes entre a
população rural de Quirinópolis. Mensalmente é realizado um pagode no barracão
da venda do “Zé Major” na Pedra Lisa, e quando tem bailes de pagode nas
sub-regiões vizinhas, sobre tudo na venda “Lá no Vaca”, muito próximo à essa
comunidade, ou mesmo na cidade, muitas pessoas da Pedra Lisa vão lá
festar.
As folias de Santos Reis também são tradicionais
no município, tendo várias delas espalhadas no espaço rural (Foto 8). Wanderléia Silva Nogueira, para
compreender a dicotomia da permanência e mutações da Folia de Reis na Pedra
Lisa, provavelmente a mais antiga do município, afirma necessário “analisar a
dicotomia e também a aproximação que existe entre tradição e modernidade dentro
dos diversos rituais e práticas que estão inclusos dentro do processo da Folia
de Reis”. Prossegue destacando que “é preciso compreendê-las e contextualizá-las
dentro de todo o contexto regional, uma vez que estas estão inseridas no
contexto comunitário” (NOGUEIRA,
2011, p. 75). Sobre a Folia de Reis da Pedra Lisa, a autora assim
descreve:
Obrigatoriamente a Folia de Reis tem seu início
na noite de Natal. Os Foliões, seus familiares e a população da região (Pedra
Lisa) se reúnem em um local determinado – no caso da região da Pedra Lisa o
local de saída da Folia e da realização da Festa é sempre a Venda do Zé Major –
para a oração do terço e também os rituais próprios de cantoria da Folia, bem
como para a confraternização de Natal com o jantar, a dança e a bebida (NOGUEIRA, 2011, p. 75).

Foto 8: Chegada de duas Folias de Santos Reis na
Venda do Zé Major, na Pedra Lisa
Fonte: Campo, abril de
2011
Normalmente quem assume a bandeira de Santos Reis, o faz para
agradecer alguma graça recebida dos Santos Reis. Para 2012, o festeiro que
assumiu o evento fará a festa em
agradecimento por Santos Reis livrar sua filha da morte de um parto cesariano
que se complicou devido a um erro médico. Ainda em recuperação, mas já fora de
perigo, ela cuida do bebê que nasceu saudável. Por isso, seu pai deve cumprir
o voto, e, ser o próximo festeiro.
São acordos que envolvem o homem com o sagrado.
Nessa relação revelam-se costumes e tradições que permanecem no cotidiano desta
comunidade, mesmo com modernidades, tecnologias e novos estilos de vida tendo
sido incorporados ali. Esse hibridismo acontece na relação cotidiana desses
sujeitos e continuará a ocorrer nas possibilidades que eles criarem para
continuarem existindo. É importante entender que algumas inovações são
recusadas, outras têm aceitação imediata. Mas é fundamental compreender também
que algumas delas são impostas de forma a impossibilitar às famílias a ter
escolhas.
De acordo com Santos, Kinn e Souza (2010, p. 4),
“A precarização da vida, para essas pessoas, e a indiferença com respeito à
história, à cultura, são maneiras de perceber o movimento, as contradições e as
superações, nas relações entre os produtores tradicionais”. Para os autores, o
capital tende a cercar e a capturar os resultados das praticas sócias. Dessa
forma, as condições vivenciadas pelos produtores tradicionais, geram
possibilidades de incorporação da produção sem que para isso seja necessário
alterar ou negar as lógicas sociais que operam nos processos produtivos
tradicionais.
É fundamental reconhecer a cultura do lugar, para
perceber as origens dos sujeitos. O que identifica um grupo social é, em grande
parte, os valores, do qual incluem sua história, suas tradições e costumes. Para
Chaveiro e Castilho (2010), o Cerrado é visto como um “patrimônio integrado de
vida em que participam as classes de vegetação, as bacias hidrográficas, o
relevo, o solo, o seu espaço, a sua cultura, os seus símbolos, a sua gente, a
sua arte, os diferentes modos de vida que aqui se constituiu” (CHAVEIRO e
CASTILHO, 2010, p. 2).
Portanto, é importante que o capital e o Estado
respeitem não apenas o Cerrado enquanto meio ambiente, mas, sobretudo, o Cerrado
constituído de um “arquivo vivo e dinâmico de cores, sabores, sons, espessuras,
cantos e relevos”, conforme Chaveiro e Castilho (2010, p. 2).
Considerações finais
Através de décadas, as famílias da sub-região Pedra Lisa, com seus
hábitos e costumes de rusticidade e simplicidade, têm se relacionado com os
processos de modernização, tanto no que se refere aos processos produtivos no
campo, como aos novos hábitos de organização e consumo, influenciados pela
cultura urbana e pelas necessidades de ampliação de espaço da produção de
industrializados. Entretanto, é neste início de século que o confronto entre o
tradicional e o moderno se intensifica. As investidas do capital, de forma
particular, o agronegócio da cana-de-açúcar, fascinam uns, pressionam outros, de
modo que os produtores, grandes, médios e pequenos se sentem estimulados pelo
marketing do desenvolvimento e da modernidade, alterando sobremaneira os territórios.
A desconstrução de um determinado espaço
condiciona a reconstrução do lugar. O lugar aparece como a materialização das
formas e funções, a partir das relações entre sujeitos e objetos, que constroem
e reconstroem o território e o próprio espaço (também a paisagem). Essa
reconstrução ocorre a partir do aparecimento de novas funções que se adaptam às
formas antigas, ou ainda a partir da criação de novas formas, ressignificando
também as funções. Essa ressignificação passa, consequentemente, pelas
estruturas culturais das famílias e do território ou dos
territórios.
Assim sendo, ao desenvolver novos padrões de
organização do espaço e a reconstrução do lugar na Pedra Lisa, surgem novas
territorialidades, uma vez que os interesses e lógicas diferenciadas estão
sobrepostas no mesmo espaço. Significa que, ao surgir os territórios do
agronegócio, não necessariamente desaparecem os territórios camponeses, apenas
se metamorfoseiam. Tanto os territórios camponeses de auto-sustentação como os
de produção alimentar para o mercado (nesse caso o leite), convivem entre si e
também com o território da produção agroenergética. Essa coexistência promove
ressignificações, estabelecendo as rugosidades impressas por modos de vida
diferenciados e mudanças de valores.
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