Territórios, fronteiras e identidades entre os Guarani, Kaiowa e
Terena
na
Reserva Indígena de Dourados/MS
Juliana Grasiéli Bueno Mota
PPGG/UFGD
Resumo
As oito reservas indígenas criadas para os Guarani e Kaiowa pelo
Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na região do Cone Sul, no antigo estado de
Mato Grosso, hoje, Mato Grosso do Sul, implicou na imposição de novos modos de
viver para estas sociedades indígenas. Estes novos modos de viver em condição de
reserva, se confronta com a organização socioterritorial destas sociedades em
seus territórios tradicionalmente ocupados, implicando no compartilhamento
territorial entre famílias extensas distintas, ou seja, na sobreposição de Tekoha e, no caso da Reserva Indígena de
Dourados, criada em 1917, envolve também, o compartilhamento étnico com outras
sociedades indígenas envolvendo os Guarani, Kaiowa e Terena. Neste sentido,
buscamos compreender os implicamentos e tensionamentos na reserva, assim como,
os territórios, identidades e fronteiras que estão sendo construídas e
negociadas no espaço-tempo de encontro e desencontro destas sociedades na
reserva por meio das narrativas indígenas e da observação
participante.
Palavras-chave: Reserva Indígena de
Dourados, Território, Fronteira e Identidade.
Territories, borders and identities between the
Guarani, Kaiowa and Terena in the Aboriginal Reserve of Dourados/MS
Abstract
The eight created
aboriginal reserves for the Guarani and Kaiowa for the Service of Protection to
Índio (SPI) in the region of the South Cone, in the old one been of Mato Grosso,
today, Mato Grosso of the South, implied in the imposition in new ways of living
for these aboriginal societies. These new ways of living in reserve condition,
if collate with the socioterritorial organization of these societies in its
traditionally busy territories, implying in the territorial sharing between
distinct extensive families, that is, in the overlapping of Tekoha and, in the
case of the Aboriginal Reserve of Dourados, created Reserve in
1917, it also involves, the ethnic sharing with other aboriginal societies
involving the Guarani, Kaiowa and Terena. In this direction, we search to
understand the implicamentos and tensionamentos in the reserve, as well as, the
territories, identities and borders that are being constructed and negotiated in
the space-time of meeting and failure in meeting of these societies in the
reserve by means of the aboriginal narratives and of the participant
comment.
Keywords: Aboriginal Reserve of Dourados, Territory, border and Boundary.
Introdução
A Reserva Indígena de Dourados foi criada em 1917 pelo Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), que criou entre os anos de 1915 a 1928, oito reservas
indígenas para os Guarani e Kaiowa que estavam sofrendo o processo de
desterritorialização de seus territórios tradicionalmente ocupados. Atualmente,
a reserva tem uma população de 13.270 indivíduos correspondente às sociedades
indígenas Guarani, Kaiowa e Terena que compartilham território na
reserva.
As criação das reservas indígenas pelo SPI não considerou as
relações sociais dos Guarani e Kaiowa com os seus territórios tradicionalmente
ocupados que envolvia relações de parentesco, religiosidade, relações com a
natureza (e com o sobrenatural) e organização política.
A criação das reservas indígenas pelo SPI é parte das políticas
desenvolvimentistas/integracionistas de confinamento discutido por Brand (1993; 1997), impulsionadas por projetos de
integração nacional que viam os indígenas como barreiras ao progresso e ao
desenvolvimento do país, havendo a necessidade de integrá-los à sociedade
nacional, a fim de liberar os territórios tradicionalmente ocupados para a
colonização não indígena, culminando na desterritoriaização destas sociedades de
seus territórios tradicionais e a reterritorialização imposta destas sociedades
pelo SPI em reservas. Entender esta relação des-re-territorialização Guarani e
Kaiowa de seus territórios tradicionais à reserva, se faz pela necessidade de
compreensão de que:
O território capitalista brasileiro foi produto
da conquista e destruição do território indígena. Espaço e tempo do universo
cultural índio foram sendo moldados ao espaço e tempo do capital. [...]. A marca
contraditória do país que se desenhava podia ser buscada na luta pelos espaços e
tempos distintos e pelos territórios destruídos/construídos (OLIVEIRA, 1988,
p.15).
Assim, a
reterritorialização dos Guarani e Kaiowa em reservas, implicou no desajustamento
dos modos de viver no Tekoha, de
compartilhar territórios com aqueles que tradicionalmente estabeleceriam
relações de distanciamento. Assim, em condição de reservas as territorialidades
se colocam em disputa, buscando a exclusividade étnica e/ou familiar em uma
porção territorial da reserva, neste caso, a sobreposição de Tekoha’s que tinham como base a
exclusividade da família extensa.
No caso da Reserva Indígena de
Dourados, as disputas territoriais Kaiowa e Guarani são confrontadas
cotidianamente com as disputas territoriais do modo de ser não índio e nos
confrontamento de modos de viver entre si, de modo que podemos elencar que as
aproximações e distanciamentos dos modos de viver de uma sociedade e outra
modelam a organização do território da reserva e, tal quais, suas diferenciações
étnicas e culturais estão em contínuo processo de fazer-se e se tornam ainda
mais complexas, nas relações que envolvem os Terena que também estão
territorializados nesta reserva.
A partir da concepção geográfica de território, partimos do
pressuposto de que os, “[...] territórios existem e são construídos (e
desconstruídos) nas mais diversas escalas [...] territórios podem ter um caráter
permanente, mas também podem ter uma existência periódica, cíclica [...]”.
(SOUZA, 1997, p.81). Nesse sentido, o território ele é simbólico e material ou
funcional, pois:
[...]
todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações,
funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar
“funções” quanto para produzir “significados”. O território é funcional a
começar pelo território como recurso, seja como proteção ou abrigo (“lar” para o
nosso repouso), seja como fonte de “recursos naturais” – “matérias-primas” que
variam em importância de acordo com o(s) modelo(s) de sociedade(s) vigente(s)
(como é o caso do petróleo no atual modelo energético capitalista) (HAESBAERT,
2004).
Neste sentido, entendemos os territórios Guarani e Kaiowa como parte
de um movimento que recria a partir da escassez de terra uma nova
territorialidade: recria os mais diversos movimentos culturais, de identidades e
fronteiras étnicas de lutas e re (existência); recria os lugares de trabalho
dentro e fora da reserva (nas usinas sucro-alcooleiras); recria mitos, recriando
um novo modo de ser; construindo novos territórios e produzindo diversas
territorialidades no contato com “o outro”, na cidade, no campo (campesinato),
nas relações de trabalho (fora da reserva) e na
reserva.
Contudo, as similaridades e
especificidades inter-étnicas são acionadas a partir do confronto com a
sociedade não índia. As disputas internas na reserva entre os Terena, Kaiowa e
Guarani são confrontadas cotidianamente com as disputas territoriais do modo de
ser não indígena. Ou seja, cria-se uma relação recíproca entre as sociedades
indígenas que exercem territorialidades na Reserva Indígena de Dourados, a
partir de uma relação de pertencimento e reconhecimento mediante outras
sociedades ali existentes, pois passaram a compartilhar uma situação política,
econômica e social imposta historicamente, criando uma relação entre aqueles que
pertencem (indígenas – Terena, Guarani e Kaiowa) e aqueles que não pertencem
(não índios) aquela territorialidade, ou seja, aquela condição. Os aproximando,
ainda que no tocante aos conflitos e disputas, através da condição de
“ser/estar” indígena e pertencer à Reserva Indígena de Dourados. Assim, concordamos com
Barth de que “[...] a “cultura” é apenas um meio para descrever o comportamento
humano, seguir-se-ia que há grupos humanos, isto é, unidades étnicas que
correspondem a cada cultura [...]”. (1998, p.187). E, concomitantemente,
discutir culturas é trabalhar com territorialidades e fronteiras, às vezes
remetentes a tempo imemoriais ou recentes.
Fronteiras culturais – os de “dentro” e os de “fora” na Reserva
Indígena de Dourados
A Reserva Indígena de Dourados, da maneira que conhecemos hoje,
passou e passa por várias configurações territoriais e identitárias através de
agentes de “fora” e de “dentro” da reserva. Podemos delimitar os sujeitos de
“dentro” como as sociedades Guarani (Ñandeva), Kaiowa e Terena
e os sujeitos de “fora” como as ONGs, Universidades, Igrejas, lojas, FUNAI
(Fundação Nacional do Índio) e não-índios. Porém, os
sujeitos de “fora” tornam-se também sujeitos de “dentro”, já que atuam e exercem
expressivo papel na organização socioterritorial na reserva.
Contudo, percebemos que as relações entre os de “fora” e os de
“dentro” não são relações tranquilas.
A dualidade entre os de “fora” e os de “dentro”, se dá em um movimento
dialético entre os grupos étnicos Terena, Kaiowa e Guarani, e, também, dentro
das premissas do mesmo grupo, a partir de uma divisão interna entre aqueles que
pertencem e não pertencem à determinada territorialidade no mesmo território.
Nesse sentido, podemos pensar que as fronteira ou
limites:
[...] não
são inocentes, nem naturais, muito menos arbitrários [...] Eles fazem parte do
nosso jogo de reprodução social: produção, troca, consumo. A reprodução social
não sendo, enfim, nada mais do que a territorialidade, pois os limites são
vividos, consumidos [...] (RAFFESTIN, 1993, p.170).
Segundo Barth (1998, p.194) pertencer a determinado grupo ou
categoria étnica “[...] implica ser um certo tipo de pessoa que possui aquela
identidade básica, isso implica igualmente que se reconheça o direito de ser
julgado e de julgar-se pelos padrões que são relevantes para aquela identidade
[...]”. Acrescentando ainda que a “[...] medida em que os autores usam
identidades étnicas para categorizar a si mesmo e outros, com objetivos de
interação, eles formam grupos étnicos neste sentido organizacional [...]”
(BARTH, 1998, p. 194).
A fronteira para Martins (1997, p. 11-12) é o “[...] ponto limite
de territórios que se redefinem continuamente, disputados de diferentes modos
por diferentes grupos humanos [...]”. Os conflitos identitários são mais
visíveis quando se trata de conflitos ou negociações inter-étnicas no território
da reserva. Ou seja, para os
Guarani, os de “fora” podem ser os Kaiowa e os Terena, assim como para os
Kaiowa, os de “fora” possam ser os Terena e os Guarani, e para os Terena, os
Guarani e os Kaiowa, ou para os Kaiowa e Guarani os de “fora” são os Terena.
Podemos, também, pensar nessa relação identitária entre “eles” e “nós” através
das relações sociais entre os Terena, Kaiowa e Guarani, a partir da condição de
índios. Se partirmos do pressuposto de que a idéia de índio é uma criação não
índia/eurocêntrica/ocidental, apropriada pelas sociedades indígenas, as relações
entre os de “fora” e os de “dentro” podem ser estabelecidas entre os grupos
étnicos Terena, Kaiowa, Guarani (índios) referente aos não índios, ou seja,
aqueles que pertencem ou não pertencem àquela territorialidade e não são
reconhecidos enquanto parte dos seus “iguais”.
Assim, na Reserva Indígena de Dourados, as relações com os não
índios se estabelecem entre os de “dentro” sendo estes, as sociedades indígenas
que ocupam aquele território (Terena Guarani e Kaiowa) e os de “fora”
representados pelos não indígenas que participam também daquela
territorialidade. Em outra conjuntura, como no centro urbano de Dourados, ocorre
uma relação inversa entre os “dentro” e os de “fora”. Os de “dentro”,
estabelecidos pelos não índios, e uma relação com os de “fora” referente às
sociedades indígenas que também participam das relações sociais ali existentes,
porém não participam efetivamente na organização espacial daquele território,
permeado por relações capitalistas, estabelecidas a partir do “modo de vida
não-índio”, de racionalidades distintas de tempo, trabalho e cultura.
Nessas relações, é possível pensar nas mais diversas fronteiras
existentes no município de Dourados, permeadas por grupos étnicos distintos e
por relações de índios com não índios. Assim, é possível concordar com Martins
(1997, p. 12) que “[...] na fronteira, o Homem, não se encontra – se
desencontra. Não é nela que a humanidade do Outro é descoberta como mediação da
gestação do homem [...]”.
A partir das idéias de Martins (1997) podemos afirmar que é na
fronteira que a sociedade cria forma, se organiza/desorganiza e se
produz/reproduz. As fronteiras de expansão e frentes pioneiras, analisadas pelo
autor, redimensionam novos ordenamentos e conjunturas territoriais, criando
novas fronteiras.
[...] a fronteira é essencialmente o lugar da
alteridade. É isso que faz dela uma realidade singular. À primeira vista é o
lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como os
índios de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários de
terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro [...]. (MARTINS, 1997,
p.150).
Assim, a fronteira implica
o desbravamento de novos territórios e territorialidades, no encontro e
desencontro com o “outro”. Por
isso, a reprodução étnica, cultural, política e econômica existente na Reserva
Indígena de Dourados entre os Guarani, Kaiowa, Terena e não índios é uma relação
existente no tempo e espaço da
fronteira, entre dois mundos, ou melhor, múltiplos mundos que se encontram e se divergem na
linha limite entre os que pertencem e os que não pertencem a determinado grupo
social.
Portanto, temos territorialidades em disputa a partir de identidades
que são acionadas em determinadas conjunturas que são postas cotidianamente. No
território da Reserva Indígena de Dourados há múltiplas territorialidades que se
cruzam e se chocam entre o “ser” e o “não ser”, muitas vezes em questão de
segundos. De acordo com Barth (1998, p. 198), “[...] a identidade étnica implica
uma série de restrições sobre os tipos de papéis que um indivíduo pode
desempenhar [...]”.
A fronteira não prioritariamente se estabelece entre relações de
“classes sociais” distintas. Ou seja, relações entre operários e burguesia,
camponeses e capitalistas proprietários de terra, indígenas e civilizados. No
caso da Reserva Indígena de Dourados as relações entre grupos étnicos distintos
proporcionam relações conflitivas entre os três grupos étnicos ali existentes,
além das relações destes com os não-indios. Assim, pode-se estar “dentro” sendo
indígena e se estar “fora” sendo não índio, dependendo da conjuntura de
determinada relação social.
Partimos do pressuposto de que as relações entre os de “dentro” e
os de “fora” são redimensionadas a partir de várias conjunturas identitárias de
afirmação e negação “de si” e “do outro”, pode-se estar “dentro” sendo Terena,
agricultor, “civilizado”, evangélico, entre outros. Contudo, pode-se estar
“fora” sendo Terena, agricultor, “civilizado”, porém não ser evangélico. O
“estar” vai ser caracterizado a partir do olhar dos sujeitos que estão “fora” e
“dentro” de uma determinada conjuntura social, podendo o “outro” ser o Terena,
Kaiowa e Guarani, ou mesmo, grupos sociais de uma mesma etnia que não participa
de determinadas relações sociais.
A relação entre os de “fora” e os de “dentro” vão se estabelecer
mediante uma fronteira cultural de igualdade entre determinado grupo social na
Reserva Indígena de Dourados, nas territorialidades fronteiriças entre as
religiosidades, subsistências, culturas, identidades e territorialidades. Assim,
nas relações de “dentro” e “fora”, ou seja, entre aqueles que pertencem e não
pertencem a uma determinada territorialidade, as fronteiras ou limites
estruturam o território e as territorialidades.
Segundo Raffestin “[...] o jogo estrutural do poder conduz a
assegurar ora a continuidade, deslocando limites, ora a provocar a
descontinuidade, criando novos limites [...]”. (1993, p.169). Neste contexto, na
Reserva Indígena de Dourados há várias fronteiras ou limites, estabelecendo
negociações para além de fronteiras inter-etnicas, mas também entre ser índio e
ao mesmo tempo ser Guarani e Kaiowa e dividir território com os Terena. Nesse
sentido, concordamos com Raffestin (1993, P. 164) que “diariamente, em todas as
fases de nossa existência, somos confrontados com a noção de limite: traçamos
limites ou esbarramos em limites [...]”.
As fronteiras na Reserva Indígena de Dourados é a
representatividade de que as fronteiras foram inventadas, criadas por homens e
mulheres, que inventam tradições, re-significam as já existentes, redefinindo
fronteiras, territórios, territorialidades e suas identidades. Assim, as sociedades Guarani e Kaiowa a
partir das novas conjunturas sociais, não mais existentes em tempos ancestrais,
inventaram, instituíram ou desenvolveram novas redes de convenções e rotinas.
Entretanto, “[...] o “costume”, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função
de motor e volante. [...] não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a
vida não é assim nem mesmo nas sociedades tradicionais. [...]”. (HOBSBAWN, 1997,
p. 10). O costume para Hobsbawn é o “[...] que fazem os juízes; “tradição” (no
caso, tradição inventada) é a peruca, a toga e outros acessórios e rituais
formais que cercam a substância, que é a ação do magistrado [...]”. (HOBSBAWN,
1997, p. 10).
Neste sentido, há diferenças expressivas entre costume e tradição
no decorrer do movimento da sociedade. As tradições e, tal quais os costumes
foram e são inventados/reinventados cotidianamente, amparados pelo movimento
da/na sociedade. Neste contexto, é possível dizer que “As mulheres e homens
inventaram mitos para dizer como tudo foi inventado. Inclusive as mulheres e os
homens”. (GOETTERT, 2006, p.17). As invenções se dão no decorrer do tempo, a
partir dos mais diversos agentes sociais que se cruzam e se chocam, delineando
novos costumes e novas tradições, novas maneiras de ser homem, mulher, indígena,
camponês, quilombola entre outros. Portanto, a sociedade é, e se dá no
movimento, pois são as sociedades que se
movimentam.
Ao estabelecer novas práticas culturais, se estabelecem, também,
novas fronteiras e territorialidades, delineando novas conjunturas de poder,
novas formas de “ser” e “estar” no mundo, sem deixar, necessariamente, de “ser o
que são”. Nesse sentido, concordamos com Barth (1998, p.188) de que em primeiro
lugar:
[...] as fronteiras persistem apesar do fluxo de
pessoas que as atravessam. [...] as distinções de categorias étnicas não
dependem de uma ausência de mobilidade, contato e de informação. Mas acarretam
processos sociais de exclusão e de incorporação pelos quais categorias discretas
são mantidas, apesar das transformações na participação e na pertença no
decorrer de histórias de vidas individuais. Em segundo lugar, descobre-se que
relações sociais estáveis, persistentes e muitas vezes de uma importância social
vital, são mantidas através dessas fronteiras e são freqüentemente baseadas
precisamente nos estatutos étnicos dicotomizados. Em outras palavras, as
distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação social e aceitação,
mas são, muito ao contrário, freqüentemente as próprias fundações sobre as quais
são levantados os sistemas sociais englobantes. A interação em um sistema social
como este não leva a seu desaparecimento por mudança e aculturação; as
diferenças culturais podem permanecer apesar do contato inter-étnico e da
interdependência dos grupos.
A afirmação da identidade Guarani, Kaiowa e Terena mostra que embora
ocorra um processo de hibridação freqüente entre culturas, sempre permanece
resquícios da tradição a partir da afirmação da identidade, denotando limites
entre o pertencer e o não pertencer. Pois, [...] a persistência de grupos
étnicos em contato implica não apenas critérios e sinais de identificação, mas
igualmente uma estruturação da interação que permite a persistência das
diferenças culturais [...] (BARTH, 1998, p.196).
Assim, concordamos com Bauman (2005, p. 17-18) partindo do
pressuposto de que:
[...] a solidez de uma rocha, não são garantidos
para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões
que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a
determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o
“pertencimento” quanto para a “identidade”. Em outras palavras, a idéia de “ter
uma identidade” não vai percorrer as pessoas enquanto o “pertencimento”
continuar sendo ao seu destino, uma condição sem alternativa
[...].
Neste contexto, ser Guarani e Kaiowa faz parte de um movimento
histórico que permanece por características de pertencimento, de exclusão da
sociedade nacional e por sua reprodução cultural diferenciada referente a outras
sociedades indígenas e não-indígenas. Ser Guarani e Kaiowa faz parte de uma
lógica diferenciada de pensar, “ser” e “estar” no mundo. Porém, não significa
que as sociedades Guarani e Kaiowa vivem o mundo da mesma forma, pois existem
várias dimensões do “ser” Guarani e Kaiowa, tais quais, suas reproduções
culturais e territoriais diferenciadas.
Nesse sentido, a identidade “[...] não existe sob a forma de um
repertório dado, estável e facilmente reconhecível, de sentimentos e idéias,
regras e ornamentos do corpo. Mas, onde quer que situações concretas o exijam,
ela, a identidade étnica, é construída” (BRANDÃO, 1986, p. 155). Portanto, a
identidade Guarani e Kaiowa é movimento no/do tempo, sociedades que caminham,
criam e recriam seus diferentes modo de ser.
Os Kaiowa
e Guarani: as fronteiras e territorialidades a partir da organização
familiar
As fronteiras étnicas canalizam a vida social, acarretando
determinados modos de organização nas relações sociais e comportamentais. Sendo
que “[...] a identificação de outra pessoa como pertencente a um grupo étnico
implica compartilhamento de critérios de avaliação e julgamento. [...]. (BARTH,
1998, p.196). Ou seja, pertencer a determinado grupo implica em participar de
determinadas práticas culturais, costumes e tradições, implicando, também, a
“não participar/praticar” de outros ritos culturais, costumes e tradições de
outra sociedade. Tornando, assim, “[...] possível a compreensão de uma forma
final de manutenção de fronteiras, através da qual as unidades e os limites
culturais persistem [...]” (BARTH, 1998, 196). Contudo, as relações de
fronteiras, permitem também relação de contato entre culturas diferentes e a
partir desses contatos podemos estabelecer as relações de fronteiras e a
manutenção das mesmas. Nesse sentido:
[...]
grupos étnicos persistem como unidades significativas apenas se implicarem
marcadas diferenças no comportamento, isto é, diferenças culturais persistentes.
Contudo, onde indivíduos de culturas diferentes interagem, poder-se-ia esperar
que tais diferenças se reduzissem, uma vez que a interação simultaneamente
requer e cria uma congruência de códigos e valores – melhor dizendo, uma
similaridade ou sociedade de cultura [...]. (BARTH, 1998,
p.196)
As fronteiras são construídas, destruídas e reconstruídas
cotidianamente a partir das relações sociais. As fronteiras só existem a partir
das relações que os homens estabelecem com os outros homens, criando/recriando,
territórios e territorialidades. Ou seja:
[...] o
movimento de construção de fronteiras ultrapassa uma marca ou um sinal histórico
que esvai com o tempo, mas gruda no próprio espaço e é nele – incorporador dos
próprios tempos – que a fronteira, (re)feita diária, cotidiana, diuturna e
relacionalmente, se apresenta/representa, é apresentada/representada e é
produzida/consumida no interior de um habitus, portado pelas gentes de/da
fronteira. (GOETTERT, 2008, Não paginado. grifo do
autor).
Para Goettert (2008, Não paginado) a produção da fronteira deve ser
compreendida a partir das “[...] múltiplas territorialidades humanas, de
indivíduos, grupos, tribos, classes, povos, nacionalidades [...]”.. Nesse
sentido, as relações de fronteiras, compreendida através das relações humanas,
na construção de territórios e territorialidades, possibilitam entender as
relações de parentesco entre os Guarani e os Kaiowa. As relações sociais de
parentesco são construídas a partir das relações de afinidade e consanguinidade,
estabelecendo territorializações e territorialidades na organização interna e
externa da reserva.
De acordo com Pereira (2001, p.23) as parentelas constituem “[...]
grupos de residência, de organização das atividades produtivas de maior
abrangência e de atuação política e religiosa [...]”. No mundo dos parentes Kaiowa e Guarani,
a presença de recursos ambientais interfere na organização interna da reserva e
nas seções distintas ocupadas por cada parentela no território (Pai Retã). Nesta perspectiva, “[...]
cada parentela reúne um número variável de fogos familiares, ocupando uma
determinada região onde constrói suas residências e cultiva suas roças [...]”.
(PEREIRA, 2001, p. 23).
Segundo Pereira apud Lourenço (2008), dentre as unidades de menor
abrangência da estrutura familiar destaca-se o “fogo doméstico”, colocando-se
com bastante relevância na estrutura da parentela. Nas palavras de Pereira
(2004, p.51) o “fogo doméstico”
[...]
constituiu a unidade sociológica mínima no interior do grupo familiar extenso ou
parentela, composta por vários fogos, interligados por relações de
consanguinidade, afinidade ou aliança política. O pertencimento a um fogo é
pré-condição para a existência humana entre os Kaiowa [...].
Nesse sentido, o “fogo doméstico” é “[...] o ponto focal a partir do
qual o indivíduo se insere nas redes sociais [...]”. (PEREIRA, 2004, p. 54).
Sendo que “[...] o núcleo central de um fogo doméstico é o casal em torno do
qual se reúnem os filhos e agregados [...]”. (PEREIRA, 2004, p. 54). Ou seja, se
ocorre a separação do casal, consequentemente, ocorre à dissolução de um
determinado fogo familiar e a dispersão destes para outros
fogos.
Para Pereira (2004), entre outras características do “fogo
doméstico”, este se estabelece através da estruturação das relações de trabalho,
como a agricultura, caça, pesca e coleta. O “fogo
doméstico”, “[...] interliga-se com outras unidades de maior amplitude como a
parentela (te’yi) e o Tekoha, em uma interação dinâmica [...].
(LOURENÇO, 2008, p. 52). O Tekoha é a
sociedade ou reserva, sendo que:
[...]
cada comunidade Tekoha é formada por
diversas famílias extensas ou parentelas, relacionadas entre si por vetores
sociológicos de aproximação e repulsa, imprimindo o dinamismo político
característico de uma comunidade Kaiowa (PEREIRA, 2005, p.117 – grifo do
autor).
Em uma sociedade Guarani e Kaiowa, o número variável de famílias
extensas varia entre 3 e 5, sendo que cada família estabelece relações parentais
e alianças com um conjunto determinado de outras famílias extensas radicadas em
sociedades próximas (PEREIRA, 2005). Ou seja, por meio das relações entre
parentes podem se estabelecer relações entre sociedades. Isso significa que na
Reserva Indígena de Dourados, as relações parentais de algumas famílias, podem
também se estabelecer fora daquela territorialidade. Ou seja, as relações de
afinidade e consanguinidade entre parentes vão além do território, no qual,
ocupam hoje, podendo ter relações entre parentes dentro e fora da reserva.
Por exemplo, na Reserva Indígena de Dourados, a família do cacique
Jorge e de sua esposa Floriza são vizinhas da família de Nelson. Entretanto, as
relações de consanguinidade e de laços afetivos são quase inexistentes, mesmo
que ambos se denominem Kaiowa. Os relatos de Jorge e Floriza (2009) mostram que
as relações sociais entre as famílias de Nelson e Jorge se dão, somente, quando
são estritamente necessárias, principalmente, quando diz respeito a ações das
lideranças, como, por exemplo, na luta pela retomada dos territórios ancestrais.
Logo, as outras relações sociais como as festas, os rituais religiosos, as
relações de trabalho, as relações econômicas, etc. não são compartilhadas com a
família de Nelson, mas, sim, com os seus parentes que estão menos próximos do
lote de Jorge e Floriza, se comparado com a distância do lote da família de
Nelson. Como relata Floriza: “[...] No
domingo a famía reuni, minha filha tá aqui, tá com moleque pequeno e tá lavando
ropa. Na casa dela não tem água, e ela tem criança pequena, aqui às vezes também
não [tem água] [...]” (2009).
As relações conflituosas podem ser entendidas a partir dos cargos
políticos internos ocupados na Reserva Indígena de Dourados. A presença e a
importância do capitão nas reservas proporcionam disputas internas por controle
territorial entre Terenas, Guarani, Kaiowa e entre grupos da mesma etnia.
Os conflitos entre parentelas e entre os diferentes grupos étnicos na
Reserva Indígena de Dourados, concomitantemente, ao processo de confinamento, dá
origem a conflitualidades, originando novas territorialidades Guarani e Kaiowa
na Reserva Indígena de Dourados. Proporcionando estabelecer, processos de
des-re-territorializações, de fronteiras culturais nas relações de “dentro” da
reserva (inter-étnicas), mas, também, acirrando as fronteiras fomentadas pelos
conflitos entre grupos da mesma etnia.
As relações sociais, “delimitadas”, primeiramente, pelas relações
étnicas e de parentesco na sociedade Kaiowa, a partir das novas configurações
territoriais no Estado de Mato Grosso do Sul, com a criação das reservas
indígenas, no caso a Reserva Indígena de Dourados, estabelece, posteriormente,
novas territorialidades a partir de conjunturas que envolvem relações
inter-étnicas cada vez mais presentes. Configurações que irá delinear os novos
rumos organizacionais de parentesco, de culturas e de identidades.
De acordo com Brand (1997) a figura dos capitães é simultânea a
demarcação das reservas, ou seja, está relacionado diretamente com a imposição
do confinamento aos Guarani e aos Kaiowa. O capitão é criado pelo SPI como “meio
básico de controle”. Assim, com a criação da figura do capitão nas reservas,
destaca-se a ignorância do SPI frente “as concepções nativas sobre poder e
autoridade” no entorno da dimensão organizacional Guarani/Kaiowa.
O capitão tem, “[...] sob a ótica do SPI e da FUNAI, a tarefa de
coordenar, articular e controlar o conjunto da população indígena de cada
Reserva” (BRAND, 1997, p. 222). Ou seja, coloca-se presente nas reservas, a
partir do capitão, um poder criado pelo SPI, confrontando com o modo de ser
Kaiowa/Guarani, pautada no cacique. Tradicionalmente, cada casa grande (ogajekutu) tinha seu líder religioso –
“vovô mais velho” - tekoaruvicha.
(BRAND, 1997).
Neste sentido, com a criação do capitão, este líder Kaiowa, no qual
toda família extensa tinha um representante, perde sua função ou não é mais a
principal liderança na reserva. Segundo Brand (1997), na criação das reservas,
vários grupos foram “colocados” sem qualquer critério organizacional Guarani. Na
transferência para dentro das reservas “[...] não se trata apenas de aceitar
lideranças mais jovens, eleitas a partir de novos parâmetros de legitimidade,
mas de aceitar a liderança de alguém que nem sequer integrava a sua reserva”.
(BRAND, 1997, p.231).
Logo, se as relações de parentesco eram estabelecidas por laços de
afinidade e consanguinidade, a introdução do capitão, sem respeitar esses
preceitos, cria nas reservas disputas e conflitos intensos, criando e
redefinindo territorialidades. A posição privilegiada de capitão criava disputas
internas, sendo, muitas vezes, motivo principal de mudança de uma reserva para
outra. Muitas vezes, o capitão direciona, através do seu prestígio e poder,
políticas voltadas para sua sociedade, ou seja, para seus parentes.
Esta conflitualidade interna da Reserva Indígena de Dourados pode ser
identificada na fala da Guarani Odália: “[...] nóis aqui é do [cacique] Getúlio né. Nóis
gravamo um cd e nunca vimo nada [dinheiro]. Aqui ele manda tudo, fica com o
dinheiro e nóis com nada [...]”.
As conjunturas organizacionais impostas pelas políticas do SPI e,
posteriormente, FUNAI não visaram proporcionar a reprodução do modo de ser
Guarani e Kaiowa. A partir de uma lógica imposta de confinamento, as relações
internas na reserva não proporcionaram uma relação de reciprocidade tão intensa
quanto às existentes nas relações de parentesco. As reservas indígenas não foram
criadas com o intuito de visar à reprodução sociocultural dessas sociedades. A
imposição de uma nova territorialização criou e cria novas (re) apropriações
e/ou territorialidades Guarani e Kaiowa nas reservas criadas, mais
especificamente, na Reserva Indígena de Dourados.
Nesse contexto, as relações impostas de “fora” para “dentro” da
Reserva Indígena de Dourados, que antes eram estabelecidas com relações sociais
recíprocas, hoje, tende a se estabelecer de forma mais conflituosa. No entanto,
embora existam essas relações conflitivas na Reserva Indígena de Dourados, a
mesma tem como principal característica o caráter organizacional, de “ser” e
“estar” no mundo, a partir de uma racionalidade que se distingue do tempo do
capital. Apesar de não poderem, e de nem terem condições de compartilhar
territórios com outras sociedades, ou de não viver relações de parentesco como
estabelecidas, anteriormente, na cultura tradicional, os Kaiowa, na Reserva
Indígena de Dourados, reproduzem seu modo de ser a partir das condições internas
possíveis.
As minorias étnicas
Kaiowa, Guarani e Terena, por meio do compartilhamento territorial,
compartilham, também, comida, recursos naturais, rezas, brincadeiras,
futebol, lutas, entre
outros. As fronteiras na Reserva Indígena de Dourados, com limitações e, ao
mesmo tempo, com possibilidades de trocas socioculturais, recriam e ampliam as
possibilidades de salvaguardar seus direitos de identidade indígena. Implicando
que no “jogo” de identidades, territórios e territorialidades, as fronteiras
étnicas, na Reserva Indígena de Dourados signifique a existência de um “[...]
determinado potencial de diversificação e de expansão de seus relacionamentos
sociais que pode recobrir de forma eventual todos os setores e campos diferentes
de atividade [...]”. (BARTH, 1998, p.196).
Salientando ainda que a partir de dicotomizações “do outro”, enquanto
estrangeiros ou membro de outro grupo étnico, implique o reconhecimento de
“[...] limitações na compreensão comum, diferenças de critérios de julgamento,
de valor e ação, e uma restrição da interação em setores de compreensão comum
assumida e de interesse mútuo”. (BARTH, 1998, p.196). As fronteiras étnicas, de
parentesco, de alianças políticas e outras, podem ser vistas como meio de (re)
significação da identidade Guarani/Kaiowa.
Identidade ou identidades Guarani e Kaiowa: da territorialização a
multiterritorialização
Uma de
nossas primeiras identificações, aquela que se refere ao local de nascimento, é
de natureza geográfica, territorial. “Ser gaucho” e “ser nordestino” [ser
indígena, Guarani, Kaiowa ou Terena] não são, a princípio, identidades que
resultam de uma escolha – pois ninguém escolhe o lugar onde nasce; nem por isso
são “naturais”, pois, ao serem tomadas como relevantes para a identificação do
indivíduo, são eleitas entre várias outras referências possíveis de identidade.
Se o fato de ter nascido neste ou naquele espaço tem implicações indiscutíveis,
não é propriamente o espaço que vai “fundar” uma identidade, mas a força
política e cultural dos grupos sociais que nele se reproduzem e sua capacidade
de produzir/estimular uma determinada escala de identidade, territorialmente
mediada (HAESBAERT, 1997, p.50).
Os indígenas confinados nos micro-territórios demarcados pelo SPI e
FUNAI, dão uma nova configuração na organização familiar, nas relações de
trabalho, nas lutas, nos conflitos, nas partilhas, nas identidades, nas
territorialidades etc., nos territórios por eles ocupados. A pluralidade étnica
da Reserva Indígena de Dourados possibilita aos grupos ali territorializados,
estar perto do “outro”, daquele que não faz parte das suas relações de
parentesco, afetividade e amizade. Intensificando, por meio das fronteiras,
limites mais flexíveis entre os “não iguais”, ou seja, aqueles que não pertencem
à determinada territorialidade de “ser” e “estar” no mundo ou na Reserva
Indígena de Dourados. Neste contexto, o território da Reserva Indígena de
Dourados é:
[...] um
campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua
complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade: a
diferença entre “nós” (o grupo, os membros da coletividade ou “comunidade”, os
insiders) e os “outros” (os de fora, os estranhos, os outsiders) (SOUZA, 1997,
p. 86).
Na Reserva Indígena de Dourados se reproduz múltiplas
territorialidades, a partir das relações inter-étnicas e de índios com
não-índios, nos espaços de “dentro” e de “fora” da reserva. Assim, no atual
mundo moderno capitalista globalizado, as territorialidades “[...]
contínuas/contíguas regidas pelo princípio da exclusividade [...] estaria
cedendo lugar hoje ao mundo das múltiplas territorialidades ativadas de acordo
com os interesses, o momento e o lugar em que nos encontramos”. (HAESBAERT,
1997, p.44). Ou seja, a presença/vivência cada vez mais intensa de compartilhar
múltiplas identidades ou territorialidades.
Para Raffestin (1993, p. 162) a territorialidade reflete uma
multidimensionalidade do “vivido” territorial pelos membros de uma sociedade,
não sendo “[...] possível compreender essa territorialidade se não se considerar
aquilo que a construiu, os lugares em que ela se desenvolve e os ritmos que ela
implica [...]”. A territorialidade está ligada a uma determinada identidade e,
consequentemente, a identidade está ligada a territorialidade. A
territorialidade, assim como a identidade, se manifesta em seu caráter
simbólico-cultural de pertencimento e de enraizamento do sujeito social ao
território.
Contudo, a territorialidade está, também, ligada a “materialidade” da
reprodução da identidade dos sujeitos sociais. Segundo Bonnemaison (2002, p.
120) “[...] a terra não [é] apenas um lugar de produção, mas também o suporte de
uma visão de mundo [...]”. A relação com o território vai estabelecer formas
diferenciadas, que determinados grupos sociais vão constituir, com a terra, com
os recursos naturais, com os indivíduos, com os ancestrais, com os parentes, com
a espiritualidade, entre outras. Pois, “[...] a identidade é irrevogavelmente
uma questão histórica [...]” (HALL, 2003, p. 30). E, neste tempo histórico, as
sociedades são compostas de diversas identidades. Para Bauman (2005,
p.21-22):
[...] a
“identidade” só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como
alvo de um esforço, “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa construir
a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e
protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a
verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva
ser, e tenda ser, suprimida e laboriosamente oculta.
A identidade, enquanto invenção e não enquanto descoberta, coloca-se
para Baunam, na “pós-modernidade” ou na “modernidade líquida”, enquanto escolha.
Ou seja, “quem precisa de identidade?” A identidade, ou as identidades, se
confrontam com “o pertencer” e o “não pertencer”. Acionamos nossa identidade de
acordo com determinadas condições/contextos sociais. Ou seja, ora podemos
acionar identidades como ser: Indígena, Guarani, Protestante, Xamã e, ora, ser
um sujeito “normal”, sem uma identidade específica, principalmente quando
estamos entre “iguais” e não precisamos de uma determinada identificação.
Neste sentido, ser Índio, Não-Índio; Protestante, Católico, Xamã;
Guarani, Kaiowa, Terena; Proletário (bóia-fria), Artesão; Cacique, Capitão;
dependerá da conjuntura sociocultural inserida para o indivíduo, para que este
acione uma determinada identidade. Assim, Souza Santos (2005, p. 135) nos chama
atenção, dizendo que “[...] Quem pergunta pela sua identidade questiona as
referências hegemônicas mas, ao fazê-lo, coloca-se na posição de outro e,
simultaneamente, numa situação de carência e por isso subordinação. [...] É,
pois, crucial conhecer quem pergunta pela identidade, em que condições, contra
quem, com que propósitos e com que resultados”.
As identidades podem ser acionadas pelos indivíduos para reforçar uma
condição ou negar uma condição. Pois, muitas vezes “[...] reconhecer “o
outro” como “outro” (ou
seja, como diferente) implica, necessariamente, pensá-lo como inferior ou
superior – e, por conseguinte, pensar, simultaneamente, a sua relação com ele
[...]”. (PENNA apud HAESBAERT, 1997, p.45). Souza Santos (2003, p. 64) propõe
que devemos “[...] defender a igualdade sempre que a diferença gerar
inferioridade, e defender a diferença sempre que a igualdade implicar
descaracterização”.
Entretanto, podemos ter múltiplas identidades, ativadas
concomitantemente. Segundo Haesbaert (1997, p. 44) as múltiplas identidades
estão em correlação com seus múltiplos territórios. Assim, “[...] a identidade
territorial não pode ser vista como unitária e monolítica [...]”. Para Penna apud Haesbaert (1997, p. 44)
não podemos pensar na identidade social “[...] enquanto única e central – senão
de um modo extremamente efêmero, e como resultante das diversas identidades
sociais (...) movimentadas pelo indivíduo. Por isso, preferimos pensar sempre em
as identidades sociais [...]”. Assim, é possível pensar que não existe
identidade, mas, sim, identidades, visto que existem sujeitos sociais e entre
esses sujeitos existem identidades sobrepostas, ou seja, múltiplas identidades.
Jorge e Floriza (2009), através das falas corriqueiras, demonstram,
nas relações entre os de “dentro” e os de “fora” da/na reserva, as múltiplas
identidades no qual pertencem. E, também, a diferença entre aqueles que
pertencem e não pertencem a sua territorialidade na reserva, por meio das
relações de parentesco e de etnia. Descreve, também, a conflitualidade provocada
pelas múltiplas identidades presentes na reserva e a visão destes para com “o
outro”, ou seja, o Terena, o Guarani, o Branco, o Negro, o Gaúcho, etc. Vejamos
estas falas:
“[...] Ali uns menino tem
pai brancu, casô com índia e tá aqui na reserva, mas eles são muito violento né.
Não é igual a gente”. (FLORIZA, 2009).
“[...] os índios não é acustumado a morar lá na
cidade, com a casa pertinho uma da outra, igual dus branco, dá briga
demais.” (JORGE, 2009).
“[...] antigamente, em 73,
aqui, não tinha Terena, só tinha Kaiowa e Guarani, aqui tá tudo misturado, tem
negro, gaúcho, o índio com o branco, e mais violência”. (JORGE,
2009).
“[...] o Kaiowa e o Guarani
puro a gente vê, não tem terra, o Terena tá tomando conta de tudo, eles têm
muita terra, nós, o Kaiowa, o Guarani, rezador originar, não tem”. (JORGE,
2009).
“[...] nóis, aqui. mostra a cultura pra nossa
criança, artesanato, ensina de tudo. Só os Kaiowa né, o Guarani não, nem o
Terena”. (FLORIZA, 2009).
“[...] nossos dois fio, meus guri, vai pra cana e estuda a noite,
eles num quer deixá o estudo”. (FLORIZA, 2009).
O confinamento recria novas formas de organização familiar, uma
vez que a escassez da terra não dá suporte para a reprodução material e
simbólica tradicional dos Kaiowa/Guarani ,este fato faz com que haja a
necessidade de a partir das novas condições estabelecidas, que os Guarani e os
Kaiowa recriem seu modo de ser.Por meio do artesanato, podemos perceber a
relação com essas múltiplas identidades construídas no território da reserva.
Neste sentido, vejamos a fala de Floriza: “Esse cocar aqui é o Kaiowa que usa, o
Kaiowa usa né. Esse aqui é Guarani, o Guarani usa esse, essa é diferença”.
(2009).
A discussão em torno do trabalho artesanal, como, a produção de
colares, pulseiras, cocares, etc., não está na perspectiva de pensar se faz
parte, ou não, da tradição esta prática entre os Guarani e os Kaiowa, mas, sim,
refletir acerca da possibilidade de apropriação do trabalho artesanal para
permitir a reprodução material e da identidade cultural destas sociedades.
Possibilitando, também, a partir dessas relações de trabalho,
estabelecer relações de diferenciação entre os Kaiowa e os Guarani e, destes,
com os Terena. Assim, “o sentir” múltiplas territorialidades dentro de um
mesmo território e, também, sentir múltiplos territórios no ir e voltar do
trabalho, da escola, da cidade, da igreja, das casas de rezas, no contato
cotidiano com “o outro”, no acesso a internet, ao assistir televisão, ao ouvir
rádio, ao falar, ao cantar e ao sonhar, é:
[...] experimentar vários territórios ao mesmo
tempo e de, a partir daí, formular uma territorialização efetivamente múltipla,
não é exatamente uma novidade, pelo simples fato de que, se o processo de
territorialização parte do nível individual ou de pequenos grupos, toda relação
social implica uma interação territorial, um entrecruzamento de diferentes
territórios. Em certo sentido, teríamos vivido sempre uma
“multiterritorialidade”. (HAESBAERT, 2006, p. 344).
No processo de expropriação/desterritorialização dos territórios
indígenas, a partir da exploração da erva mate, abertura das fazendas,
confinamento, proletarização do trabalho indígena e no sentir “o outro”, tão
perto e tão longe, as fronteiras étnicas culturais surgem proporcionando, aos
Guarani e Kaiowa, possibilidades de vivenciar multiterritorialidades, a partir da
dimensão territorial da Reserva Indígena de Dourados.
Breves
considerações - “aqui, por causa disso, é
violência, porque misturô, né”
A fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se
fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante,
ambivalente, do além que venho traçando: “Sempre, e sempre de modo diferente, a
ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens pra lá e pra cá, de
modo que eles possam alcançar outras margens... A ponte reúne enquanto passagem
que atravessa”.
Homi Bhabha (1998, p.22).
A fronteira é a passagem que possibilita o encontro com o “outro”,
com suas múltiplas dimensões étnicas e culturais de “ser” e “estar” no mundo. As
fronteiras étnicas culturais exigem o encontro com o novo, a partir das trocas
culturais (hibridações) constantes no viver nas/das fronteiras. Não apenas
retomando o passado, mas renovando “[...] refigurando-o como um “entre - lugar”
contingente, que inova e interrompe a atuação do presente”. (BHABHA, 2005,
p.27).
Segundo Souza Santos (2005, p.135), “[...] as identidades
culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre
transitórios e fugazes de processos de identificação [...]”. Nesse sentido, os
Guarani e os Kaiowa, reconfiguram suas identidades étnicas, diante do dinamismo
da “arte de viver na fronteira”. Transitam, cotidianamente, como migrante, nas
múltiplas territorialidades e identidades, postas e sobrepostas, de encontros e
desencontros, de contatos e estranhamentos, de conflitos e sonhos, construindo
representações identitárias “do lado de lá” e do “lado de cá” da fronteira. A
territorialidade, ou seja, o “espaço vivido” que as sociedades humanas têm com
seu território, inclui as relações que fixam os homens aos lugares e, também, os
que impelem para “fora” do território. (BONNEMAISON, 2002).
A partir das políticas do SPI e, posteriormente, FUNAI cria – se a
Reserva Indígena de Dourados, redefinindo fronteiras que separam o índio do
branco, o branco do índio, o índio do bugre, o Guarani do
Kaiowa; o Kaiowa do Guarani; o Guarani do Terena; o Terena do Guarani; o Kaiowa
do Terena; o Terena do Kaiowa; o Kaiowa e Guarani do Terena; e o Terena do
Kaiowa e Guarani, nas relações internas e externas à reserva. As identidades são
assim, (des) construídas, re-construídas e construídas, junto à produção de
fronteiras, territórios e territorialidades dos/para os Guarani, Kaiowa e Terena
na/da Reserva Indígena de Dourados.
Segundo Bonnemaison (2002), “[...] toda análise de
territorialidade se apóia em uma relação interna e sobre uma relação externa: a
territorialidade é uma oscilação contínua entre o fixo e o móvel, entre o
território “que dá segurança”, símbolo de identidade, e o espaço que se abre
para a liberdade, às vezes também para alienação. As fronteiras étnicas,
[...] são mantidas por um conjunto imitado de
traços culturais [...] [Assim,] a persistência da unidade depende da
persistência dessas diferenças culturais, ao passo que sua continuidade pode
igualmente ser especificada por meio das mudanças da unidade resultantes das
mudanças nas diferenças culturais definidoras da fronteira. (BARTH, 1998,
p.227).
Portanto, concordamos com Souza Santos (2005, p.135), que mesmo as
identidades sólidas como de homem, mulher, país “[...] escondem negociações de
sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de
transformação [...]. Identidades são, pois, identificações em curso”. (p.135).
As identidades são criações humanas, negociações cheias de sentidos no sistema
mundo, podendo ser compreendida através das trajetórias históricas, assim,
“[...] a cultura de um dado grupo social não é nunca uma essência [...]”. (SOUZA
SANTOS, 2005, p.148).
A cultura “[...] é baseada em critérios de valor, estéticos,
morais ou cognitivos que, definindo-se a si próprios como universais, elidem a
diferença cultural ou a especificidade histórica dos objetos que classificam
[...]” (SOUZA SANTOS, 2003, p.27). As culturas estão no movimento que as
sociedades constroem cotidianamente para si. Neste sentido, territórios,
territorialidades, identidades, multiterritórios, multiterritorialidades,
múltiplas identidades, culturas, só podem ser compreendidas no tempo, na
coletividade, individualidade e dinâmica da/na sociedade, construindo, assim,
outro mundo possível na atual sociedade “global” ou “globalizada”.
As sociedades indígenas, como outras sociedades, aglomeradas
“[...] em poucos pontos da superfície da terra constitui uma das bases de
reconstrução e de sobrevivência das relações locais, abrindo a possibilidade de
utilização, ao serviço dos homens, do sistema técnico atual [...]”. (SANTOS,
2006, p.21). Segundo Santos (2006) “o mundo se instala nos lugares”, ou seja, a
globalização está e se dá nos lugares, é percebida e vivida por diferentes
indivíduos em diferentes lugares e tempos da racionalidade humana. Assim, no
atual mundo global os Guarani, Kaiowa, Terena, Guató, Kinikinau, Ofaié, Kadiwéu,
Chamacoco, Kaingang, Tupiniquim, Kaxinawá, Wapixana, Kamba, camponeses,
operários, quilombolas, seringueiros, entre outros, inventam e (re) inventam as
mais diversas formas de “ser e estar” no mundo a partir do lugar em que vivem.
“[...] O mundo... O mundo pro Kaiowa é de
um tipo... Assim né, o mundo é assim”. (FLORIZA,
2009).
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Segundo
Brand (2003) entre os anos de 1915 e 1928, o Serviço de Proteção aos Índios - SPI,
criou um total de oito reservas indígenas em Mato Grosso do Sul para os Kaiowá e
Guarani, confinando-os. O confinamento a eles imposto se deu em áreas restritas,
não permitindo a possibilidade da prática da agricultura itinerante. Aliado à
superpopulação nas reservas, as mesmas provocaram grave comprometimento dos
recursos naturais, gerando desequilíbrios nas relações entre o mundo humano e a
natureza. Os Guarani e Kaiowá com uma vida pautada na
espiritualidade/religiosidade, com o confinamento, culminaram em graves
problemas e desorganizações nas relações internas do grupo. Se as colheitas não
geram mais a produção esperada, sob a perspectiva dos Kaiowá e Guarani, é
resultado, não tanto da situação de desgaste da terra, mas das mudanças
ocorridas nas suas práticas religiosas, isto é, na dificuldade de relacionamento
com o sobrenatural.
Segundo
Melià (1991, p. 3) o Tekoha “
es el lugar donde se dan las condiciones de posibilidad del modo de ser
guarani. La tierra concebida como tekoha es ante de todo un espacio
socio-político”. Para esse povo, tekoha é imprescindível para sua sobrevivência
física e, de modo especial, também, cultural, dado que, para os Kaiowá e
Guarani, o tekoha significa espaço, lugar (ha), possível para o
modo de ser e de viver (teko). Tal é a importância do tekoha, que a mesma
palavra aglutina dois conceitos: vida e lugar. Devido às agressões ao meio
ambiente e ao processo de espoliação de suas terras, os Kaiowá e Guarani têm
encontrado crescentes dificuldades para esta sobrevivência. (BRAND; COLMAN 2008
– Não paginado).
Quando
estas relações produtivas são possíveis, devido ao esgotamento dos recursos
naturais.