CIDADES MÉDIAS E
DESIGUALDADE SOCIOESPACIAL: UM OLHAR SOBRE DOURADOS –
MS – BRASIL
Maria José Martinelli Silva Calixto
Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD
Mara Lúcia Falconi da Hora Bernardelli
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul –
UEMS
RESUMO
O
presente trabalho, resultado de reflexões realizadas a partir de pesquisa
intitulada “Análise dos agentes
econômicos e da reestruturação urbana e regional em Dourados uma cidade média do estado de Mato Grosso do Sul”,
desenvolvida junto a Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias –
ReCiMe, tem por objetivo apontar alguns elementos para uma melhor compreensão da
realidade de Dourados, revelando suas singularidades. Partimos de uma questão
fundamental: embora as cidades médias sejam consideradas por alguns autores como
locus da concentração do trabalho
intelectual, que sejam locais receptores de fluxos de classe média e,
consequentemente, de qualidade de vida, é importante referenciar que também são
marcadas por contradições socioespaciais. Nesse sentido, Dourados apresenta
profundas contradições decorrentes das formas diferenciadas de acesso à terra,
que redefine e reforça o quadro de desigualdades, reveladas, por exemplo, nas
áreas de favelas existentes na cidade, nas novas formas de produção imobiliária,
no conflito envolvendo a população indígena, dentre outros.
RESUMEN
Este
trabajo, llevado a cabo el resultado de las reflexiones de un estudio titulado
"Análisis de la reestructuración económica y urbana y regional en Dourados una
ciudad media en el estado de Mato Grosso do Sul", llevado a cabo en la Red de
Investigación en las ciudades medianas - ReCiMe, pretende señalar algunos
elementos para una mejor comprensión de la realidad de Dourados, revelando sus
singularidades. Empezamos con una pregunta fundamental: aunque las ciudades de
tamaño medio son consideradas por algunos autores como un lugar de concentración
de trabajo intelectual, que son los receptores de clase flujos de media y por lo
tanto la calidad de vida, es importante mencionar que también están marcadas por
las contradicciones socioespacial. En consecuencia, Dourados presenta profundas
contradicciones que surgen de las diferentes formas de acceso a la tierra, que
redefine y fortalece la imagen de la desigualdad, reveló, por ejemplo, en los
barrios pobres de la ciudad, las nuevas formas de producción de vivienda, el
conflicto que involucra a la población indios, entre otros.
ABSTRACT
This work, carried out the result of reflections from a survey
entitled "Analysis of the economic and urban and regional restructuring in
Dourados an average city in the state of Mato Grosso do Sul", conducted at the
Research Network on Medium Cities - ReCiMe, aims to point out some elements for
a better understanding of the reality of Dourados, revealing their
singularities. We start with a fundamental question: Although the medium-sized
cities are considered by some authors as a locus of concentration of
intellectual work, which are receptor sites flows middle class and thus quality
of life, it is important to refer that are also marked by contradictions
sociospatial. Accordingly, Dourados
presents profound contradictions arising from different forms of access to land,
which redefines and reinforces the picture of inequality, revealed, for example,
in slum areas in the city, the new forms of housing production, the conflict
involving the population indians, among others.
INTRODUÇÃO
Para
fazer alguns apontamentos sobre a temática acreditamos ser importante tomar como
ponto de partida a cidade pensada e, sobretudo, praticada nas suas múltiplas
escalas, tentando revelar as suas singularidades.
Partimos do seguinte questionamento: até que ponto o ideário de
cidade média como local em que a qualidade de vida é melhor, não oculta ou nega
uma gama de outras formas de ser, de viver, de pensar, ou mesmo de agir? Até que
ponto a ideia de Dourados-MS como “cidade do agronegócio” (que alguns estudiosos
chamam de “pontos luminosos”), não ofusca uma multiplicidade de situações e
contradições socioespaciais?
Mesmo
que de forma sintética, torna-se importante resgatar que a partir dos anos 1970
(sobretudo no II PND), as chamadas cidades de “porte médio” tornaram-se alvo de
atenção, por intermédio das políticas de planejamento, isso se deu, sobretudo,
como parte das estratégias e ações voltadas para pensar os problemas das
metrópoles.
Naquele contexto, as cidades médias despertaram interesse em razão de
sua funcionalidade frente à metrópole e, dentro dessa preocupação,
estabeleceu-se a noção de “cidade de porte médio”, como uma retórica do sistema
de planejamento vigente, como se pudessem se tornar pontos receptores dos fluxos
migratórios diminuindo sua pressão em direção às áreas
metropolitanas.
Considerando que no processo de urbanização houve certa tensão entre,
de um lado, a concentração de atividades produtivas e população e, de outro,
dispersão, as cidades médias foram vistas como uma tentativa de estabelecer
certo “equilíbrio” entre esses dois pares - concentração e
dispersão.
Contudo, é importante referenciar que o conteúdo do processo de
urbanização brasileira não se dá e nem se explica apenas a partir da realidade
das metrópoles ou das regiões metropolitanas, daí a importância em entender as
complexidades desses centros urbanos (cidades médias) em sua particularidade e
singularidade e não apenas como um complemento dos estudos que abordam a
problemática da metrópole.
Sendo
assim, torna-se premente o desenvolvimento de pesquisas que possam contribuir
para a construção de uma melhor qualificação e conceituação desses centros
urbanos ou das chamadas cidades médias.
A CONDIÇÃO REGIONAL DE
DOURADOS
Considerando a dinâmica exercida por Dourados no contexto regional,
podemos considerá-la como um centro que desempenha os papéis de uma cidade
média, haja vista o seu grau de polarização na porção sul do estado de Mato
Grosso do Sul, particularmente nos setores de saúde, educação, comércio e
serviços especializados que respondem à demanda da produção regional e da
população.
Nessa
perspectiva torna-se relevante analisar as relações que configuram a hegemonia
regional de Dourados ou sua centralidade. E a apreensão dessa condição só se dá
articulada às múltiplas relações e escalas que ela intermedeia na rede
urbana.
Quando consideramos a realidade de Dourados, partimos do entendimento
de que o seu papel de cidade média só pode ser compreendido na sua relação com o
outro, pois o dinamismo de um centro acaba de certa forma, por “cercear” o
dinamismo dos demais centros do seu entorno. E, nesse sentido, a acentuação da
articulação entre Dourados, que exerce papel polarizador no sul do estado de
Mato Grosso do Sul (local onde a população das cidades menores busca atividades
mais especializadas de serviços e comércio), e as cidades de menor porte é
fundamental para entendermos sua condição de cidade média. De modo
contraditório, a aparente cooperação entre os centros urbanos na escala regional
é também reveladora de maior diversidade e competitividade entre
eles.
Os
centros urbanos que concentram a demanda das atividades produtivas, por
intermédio de novos produtos, equipamentos, serviços e profissionais, tendem
também a concentrar fluxos de pessoas, bens, serviços, ideias, capital etc.,
revelando uma tendência em potencializar seu nível hierárquico. Contudo, vale
reforçar que a partir da disseminação do meio “técnico-científico-informacional”
(SANTOS, 2008) o conteúdo e o significado da hierarquia é redefinido, haja vista
as múltiplas possibilidades de interações estabelecidas entre a rede de
cidades.
Na
rede urbana regional, a cidade de
Dourados congrega papéis e funções que asseguram a sua condição de
centralidade. Contudo, vale ressaltar que essa condição só pode ser entendida a
partir das articulações com o conjunto do seu entorno.
Dentre os serviços especializados
ofertados por Dourados destacam-se os ligados à educação superior e à saúde,
haja vista que Dourados conta com hospitais e clínicas especializadas e uma
quantia considerável de cursos superiores, distribuídos em cinco instituições de ensino, duas
públicas e três privadas.
Essas instituições, que recebem um número expressivo de alunos da
região, oferecem cursos em todas as áreas do conhecimento.
Considerando que as cidades de menor porte (ainda que não ligadas
exclusivamente de modo hierárquico) são capazes de atender apenas às
necessidades de menor nível de especialização, fica a cargo de Dourados a oferta
de produtos e tecnologia mais avançados, produtos oriundos do comércio mais
sofisticado, assim como de serviços urbanos mais especializados.
Torna-se também importante considerar a condição de fronteira, que
revela uma série de fluxos e confere
especificidades à dinâmica socioespacial de Dourados. Essas
especificidades se dão, quando
consideramos, por exemplo, que é comum pessoas vindas do Paraguai procurarem os
serviços de saúde em Dourados. Por outro lado, também é comum estudantes de
Dourados procurarem cursos superiores no Paraguai, sobretudo o curso de
Medicina, cuja faculdade está sediada em Pedro Juan Caballero, na fronteira do
Brasil com o Paraguai.
Por
outro lado, compreender Dourados a partir de suas especificidades em área de
fronteira, também coloca a importância de considerarmos a presença do povo
paraguaio na cidade, cujas características e traços se verificam na reprodução
de crenças, valores e práticas cotidianas.
O
papel polarizador de Dourados em relação ao ensino superior e de serviços de
saúde, exige por sua vez o incremento de atividades advindas das exigências da
vida urbana, tendo seus papeis redefinidos também em função dessas necessidades
locais/regionais.
O
comércio especializado de veículos, apenas para mencionar outro aspecto, é mais
um dos setores que se destaca regionalmente, assim como o comércio de
implementos agrícolas. Logo ao mesmo tempo em que a presença de um comércio
especializado marca e reforça a sua centralidade, Dourados depende dos centros
urbanos do seu entorno para que essa condição seja assegurada, revelando entre
este centro, e os demais centros urbanos do seu entorno, uma relação de
diversidade e complementaridade.
Contudo, aqui também se coloca uma questão fundamental, ainda que as
cidades médias sejam locais de concentração da técnica e do trabalho intelectual
conforme aponta Santos (1993), que sejam receptoras de significativos fluxos de
classe média (o que indica a existência de qualidade de vida), vale registrar
que também são marcadas por contradições socioespaciais profundas.
Dourados apresenta um quadro de profundas contradições sociais,
reveladas, por exemplo, nas 23 áreas de favelas existentes na cidade, nas
dificuldades no acesso à terra (que reproduz e amplia as desigualdades), no
conflito envolvendo terras indígenas, dentre outros.
Sobretudo
a partir da década de 1970, em função de um modelo agrícola calcado em um forte
conteúdo de técnica e ciência, novas
necessidades se impõem estabelecendo novas relações, novos negócios, novas
formas espaciais e conseqüentemente, dinâmicas de natureza contraditória,
implicando na intensificação de conflitos e contradições
sociais.
É nesse contexto que se destaca a intervenção do poder público
municipal (em consonância com a esfera federal) em vários níveis do espaço
urbano, por intermédio de uma série de programas e políticas públicas, visando
adequar a cidade às novas necessidades criadas ou, num sentido mais amplo,
tentando viabilizar o processo de reprodução do capital agroexportador.
Portanto, foi no âmbito dos novos direcionamentos assumidos pela política
federal que ocorreram as maiores transformações urbanas em Dourados, trazendo
novas condições para o processo de reprodução do espaço
urbano.
Além de um
investimento maciço ma produção de conjuntos habitacionais, via BNH (Banco
Nacional da Habitação), investiu-se também na ampliação do sistema de drenagem
pluvial, na pavimentação asfáltica, na rede viária (permitindo maior fluidez
material e imaterial), com recursos do Programa CURA (Comunidade Urbana de
Recuperação Acelerada).
Ao
analisarmos os investimentos do Projeto CURA verificou-se que o sistema viário
recebeu prioridade: tal setor canalizou mais de 60% do montante dos recursos
previstos na época, funcionando como forte indicativo de que a economia
agroindustrial teve forte influência nas intervenções perpetradas no espaço
urbano.
Diante dessas dinâmicas torna-se necessário repensar a ideia de
Dourados como “ponto luminoso”, tentando revelar o que aparece e o que é
ofuscado por essa “luminosidade hegemônica”.
O APROFUNDAMENTO DAS CONTRADIÇÕES E DAS DESIGUALDADES
SOCIOESPACIAIS
Considerando o exposto acima, vale ressaltar que discutir as
contradições socioespaciais em Dourados pressupõe considerar as formas de
ocupação e uso do espaço e nesse sentido, não podemos deixar de fazer referência
as áreas favelizadas, ou as chamadas ocupações “irregulares” existentes na
cidade.
Vale
destacar que essa realidade começou a se fazer presente, sobretudo, a partir da
década de 1970. Os primeiros registros de ocupação “irregular” de áreas urbanas
na cidade datam desse período, momento em que a cidade passou a vivenciar um
expressivo crescimento populacional. Em apenas uma década, segundo aponta os
dados do IBGE, houve um crescimento populacional superior a 168,55%, ou seja, a
população urbana do município, em 1970, era de 31.599 e, em 1980, atingiu o
total de 84.849 habitantes.
De acordo
com Calixto (2000), nesse momento o espaço urbano de Dourados passou a ser
apropriado de forma diferenciada, fazendo com que a população de menor poder
aquisitivo passasse a ocupar áreas periféricas e desprovidas de meios de consumo
coletivo, intensificando conflitos e contradições sociais. Assim, a problemática
da moradia começou a se fazer presente, sobretudo, para aqueles que não
apresentavam condições financeiras de comprar ou alugar uma casa.
Por outro lado, a população de origem rural, ao deparar-se com uma
realidade diferenciada daquela até então vivida, passa por uma sensação de
estranhamento, haja vista que as práticas cotidianas são diferentes e seus
costumes não são considerados adequados à realidade da vida urbana. Ou seja, há,
por exemplo, dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal urbano,
levando ao subemprego e, conseqüentemente, a condições de moradia
precárias.
Outra faceta dessa contradição, também pode ser dimensionada quando
consideramos que, apesar do expressivo número de conjuntos habitacionais
populares existentes na cidade, houve, sobretudo nos últimos anos, um aumento do
número de áreas de ocupação “irregular” ou favelizadas em Dourados, revelando
que parcela significativa da população enfrenta problemas e luta pelo acesso à
moradia. Essa realidade se expressa quando comparamos os dados de 2004 e 2010: o número de áreas de favela ou
de ocupação “irregular” saltou de 14 para um total de 23 áreas na cidade.
Portanto, apesar da iniciativa de implantação de conjuntos habitacionais, há uma
parcela da população que continua à margem destes
programas.
Por
outro lado, também vale considerar (conforme quadro abaixo) as condições de
inadequação fundiária, adensamento excessivo, domicílios sem banheiro e carência
de infraestrutura.
DOURADOS
(2005)
INADEQUAÇÃO FUNDIÁRIA, ADENSAMENTO EXCESSIVO, DOMICÍLIOS SEM BANHEIRO
E CARÊNCIA DE INFRAESTRUTURA
|
Inadequação
Fundiária |
Adensamento
Excessivo |
Domicílio sem
banheiro |
Carência de
Infra-estrutura |
Município |
População |
Absoluto |
% dos
dom. urbanos |
Absoluto |
% dos
dom. urbanos |
Absoluto |
% dos
dom. urbanos |
Absoluto |
% dos
dom. urbanos |
Dourados |
181.869 |
1.187 |
2,86 |
2.237 |
5,39 |
1.294 |
3,12 |
30.359 |
73,10 |
Fonte: FJP, 2005.
Nessas áreas favelizadas é possível identificar o cotidiano vivido
pelos que diariamente travam uma verdadeira luta pela sobrevivência, cerceada
pela existência da propriedade privada da terra.
A fim de pontuar alguns dos determinantes que envolvem a questão,
tomamos como objeto de análise duas áreas de ocupações na cidade: a “Favela do
Jardim Clímax”, na porção sudoeste da cidade (uma das áreas de favela mais
antigas da cidade) e o acampamento denominado “Portelinha”, na porção sul (uma
das áreas de ocupação mais recentes). Essas áreas nos permitem refletir sobre as
formas diferenciadas de apropriação do espaço urbano e seus desdobramentos socioespaciais.
Com relação à Favela do
Jardim Clímax, surgiu em um loteamento particular, de mesmo nome, implantado na
década de 1950. Contudo, ainda hoje, não houve a regularização fundiária. Alguns
moradores conseguiram a escritura de seus imóveis devido ao antigo modelo
cartorial.
A
autoconstrução está presente em quase todos os casebres da favela do Jardim
Clímax, alguns construídos aos poucos e, conforme já dito, misturando diferentes
materiais; em sua maioria, ganhados, recolhidos nas ruas, ou comprados de
segunda mão. Esses moradores construíram suas próprias casas principalmente nos
finais de semana, revelando mais umas das facetas que envolvem a situação de
ocupar um pedaço da terra urbana.
O fato de a área ser cortada por uma galeria de águas pluviais, que
por falta de infraestrutura adequada, acabou se tornando um esgoto “a céu
aberto”, faz com que seus ocupantes tenham que conviver com o problema da água e
sujeira que invade algumas das casas, sobretudo aquelas localizadas mais
próximas à “valeta” da galeria. Em dias de chuva forte estes moradores são
obrigados a retirar seus pertences da “casa” e procurar abrigo nos vizinhos que
ocupam lugares mais elevados, ou mais distantes da galeria. O mau cheiro causado
pelos dejetos, bem como os insetos e animais atraídos para o local, são algumas
das reclamações constantes dos moradores/ocupantes da
área.
Outro
exemplo refere-se ao acampamento denominado “Portelinha”, que teve seu início em
fevereiro de 2008, quando um grupo de aproximadamente 60 famílias, sem
alternativa de moradia na cidade, ocupou uma área particular de 30 mil metros
quadrados, desocupada há vários anos. Munidos de enxada e foice, roçaram o
terreno, promoveram a demarcação dos lotes com barbantes e armaram os barracos
com madeiras, lonas e materiais reutilizados.
Mediante a pressão exercida pelo proprietário e pela justiça, o
movimento foi se desintegrando, passando a ser contínuo o número de famílias que
deixavam a área. Após dois meses de acampamento foi estabelecida a intervenção
por meio de um mandado de reintegração de posse, expedido pela Justiça,
obrigando os ocupantes a deixar a área, inclusive por meio de repressão
policial. Diante dessa realidade, poucos dias depois, um número significativo de
famílias abandonou seus barracos e as que resistiram em sair da área passaram a
ser alvo de constantes ameaças.
Apesar do conflito estabelecido e de todas as pressões sofridas, um
grupo de quatro famílias (com aproximadamente 22 pessoas, entre adultos e
crianças), que não tinha alternativa de moradia, resistiu, desocupando a área,
mas erguendo seus barracos na rua.
Os
depoimentos dos ocupantes revelam o abandono daqueles que lutam pela moradia,
retratos da realidade de vida dos que se encontram as margens da cidade (e da
cidadania), vivenciando uma situação cotidiana de risco em moradias precárias
(barracos de lona), sem conforto, higiene ou segurança, muitas vezes dependente
de mobilizações ou solidariedade de vizinhos ou de pessoas comovidas com a
situação.
As formas
de produção do espaço urbano redefinem a cidade de acordo com as necessidades
dos agentes que possuem condições de fazer valer seus interesses, excluindo os
que não têm condições de pagar pela moradia e outras necessidades básicas.
Dessa
forma, uma parcela significativa da população é obrigada a ocupar áreas
geralmente sem infraestrutura adequada e longe dos lugares em que freqüentam
como, trabalho, escola, posto de saúde, entre outros. Por outro lado, nas áreas
servidas por infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos são implantados
bairros e condomínios para aqueles que podem pagar pela terra e que são
inacessíveis para a maior parcela da população.
A
problemática da moradia está relacionada com o conflito estabelecido entre as
classes sociais, com a perda da identidade cultural, com a omissão do poder
público e principalmente com a lógica que impede a maioria da população de viver
de fato a cidade como construção coletiva.
Vale
destacar também que quando questionados sobre qual seria o seu maior sonho, a
maioria dos moradores/ocupantes das áreas de favela ou acampamento respondeu ser
uma moradia digna, uma casa, que possibilitasse segurança, estabilidade e
acesso, principalmente, a escola e ao emprego. Os depoimentos dos
moradores/ocupantes da área também revelaram que, aqueles que vivem na incerteza
da moradia, já não acreditam mais no poder público para mediar tal situação.
Nessas
áreas, as “casas” construídas em condições precárias expressam conflitos de
várias ordens. Para além da aparência da área (constituída por casebres
amontoados, sem rede de água ou esgoto, com pouca ventilação, sem condições de
salubridade, com parcos equipamentos de higiene, etc.), há um ritmo que revela o
modo de reprodução da vida daqueles que parecem não ter direito à cidade.
Essa realidade revela a premência de se repensar uma política de
acesso ou direito à cidade, para a parcela da população que não pode auferir
renda pelo emprego ou trabalho, mas que também tem necessidades, desejos,
aspirações, ou seja, também possui o mesmo direito à cidade, independente de sua
condição de classe.
Cada nova área ocupada expressa uma concretude de situações e uma
configuração urbana marcada pela diferença, pois as formas alternativas
encontradas para garantir o acesso à moradia refletem-se no arranjo
socioespacial da cidade.
Tendo em vista que é comum que os locais mais distantes da área
central da cidade sejam “desvalorizados” enquanto mercadoria no mercado
imobiliário, torna-se comum a ocupação desses locais. Assim, de forma geral,
esse tipo de ocupação encontra-se na periferia pobre, degradada e precária de
meios de consumo coletivos, sendo que muitas vezes, devido à distância, os
moradores têm dificuldade de deslocamento até mesmo para trabalhar.
A realidade vivenciada pelos ocupantes de áreas urbanas
revela o modo
de reprodução da vida e a multiplicidade de relações presentes no
cotidiano daqueles que parecem não ter direito à cidade. Esse universo não apenas expressa, mas
também desafia e denuncia a ausência de uma política urbana que considere a
realidade de vida dos considerados excluídos socioespacialmente, revelando uma
tentativa ou estratégia de luta
pelo direito à cidade.
OS
DESDOBRAMENTOS SOCIOESPACIAIS DAS FORMAS DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO
URBANO
Contrastando com a realidade dos que lutam pelo direito de uso,
observamos que as novas formas de produção imobiliária em Dourados articulam-se
aos interesses ou necessidades de reprodução do capital. Tais interesses
(re)direcionam o processo de produção, apropriação e uso do espaço urbano de
acordo com a lógica de produção imobiliária, redefinindo e reforçando o papel desempenhado pela porção norte
da cidade como espaço seletivo e diferenciado
socioespacialmente.
Um dos indicadores dessa afirmação é que o processo de produção
verticalizada com mais de quatro pavimentos, ocupa majoritariamente a porção
norte da cidade, funcionando como um forte indicativo de interesse do setor
imobiliário pela área, indicando o investimento de capital na certeza do retorno
lucrativo, ampliando os negócios desse setor, à medida que maximiza o uso e a
ocupação do solo, portanto, a renda extraída.
A porção
norte da cidade atrai investimentos privados, não apenas residenciais, mas
também investimentos na área de prestação de serviços, bem como estabelecimentos
comerciais, sendo, portanto, marcada pela multifuncionalidade e colocando-se
como um ponto de referência no interior da cidade.
Esse processo, que se
caracteriza por uma forma específica de produção habitacional, produz novas
localizações, significados, conteúdos que, por sua vez, criam a potencialidade
de novos usos sociais, reforçando seu papel de setor carregado de status social, diferenciado
socioespacialmente, influenciando as condições de produção, apropriação e uso da
cidade como um todo.
A expectativa/demanda que se criou em torno da porção norte da cidade
originou uma nova configuração socioespacial na área, que atende ao mercado
residencial dos segmentos socioprofissionais de poder aquisitivo mais elevado.
Quando
analisamos o preço médio do solo é possível observar que na porção norte, os
valores imobiliários se encontram, de modo geral, entre os mais elevados,
definindo a demanda que se dirige para a área.
Por sua vez, os loteamentos implantados nas décadas de 1990 e 2000
são especialmente periféricos e desprovidos de infraestrutura, equipamentos e
serviços urbanos. Esta realidade reforça-se ao analisarmos a exclusão social a
partir dos dados coletados pelo IBGE e agregados por setores
censitários.
Quando analisamos a distribuição espacial dos domicílios sem banheiros, percebemos que
nas áreas periféricas há setores que chegam a apresentar até 40% dos domicílios
sem banheiro. Em contrapartida, observamos a predominância de domicílios com
quatro ou mais banheiros especialmente na porção norte da cidade. Essa realidade
se reforça quando consideramos os dados ligados à rede de esgoto. Embora as
maiores médias de habitantes por domicílio (densidade populacional) não estejam
concentradas nessas áreas da cidade, é também a porção norte que concentra tal
infraestrutura.
Torna-se também importante destacar a concentração, na área
periférica, dos chefes de família de 10 a 19 anos. Essa área também concentra
os chefes de família com rendimentos de até dois salários mínimos, assim como os
chefes de família considerados sem nenhum rendimento.
Em contrapartida, quando consideramos os chefes de família que
apresentam rendimento superior a 20 salários mínimos, notamos que estão
localizados, sobretudo, na área central e na porção noroeste da cidade. Essa
realidade é reforçada quando consideramos que os analfabetos e os chefes de
família com baixa escolaridade, se concentram nas áreas periféricas. Dessa
forma, a espacialização dessa realidade revela e expressa um quadro marcado pela
inclusão/exclusão socioespacial.
Embora o Plano Diretor (PD) do município considere a questão dos
locais impróprios para moradia, estabelecendo Zonas Especiais de
Interesse Social (ZEIS), denominadas ZEIS 1, ZEIS 2 e ZEIS 3, pouco se tem avançado no sentido de uma
política consistente. Essas Zonas Especiais de Interesse Social são definidas
conforme os artigos do Título V, Capítulo V na Seção III:
Art. 41 - As ZEIS 1 são áreas com loteamentos existentes, de caráter
social, públicos ou privados, regulares, irregulares ou em processo de aprovação
e Vilas Ofícios, estando todos com população já
estabelecida.
Art. 42 - As ZEIS 2 são áreas com disfunções urbanísticas,
necessitando da atuação/intervenção urbana por parte do Poder Público Municipal
para a regularização dos lotes ou para a remoção da população instalada em
locais impróprios para a moradia e impor ao empreendedor privado o respectivo
ônus pela ocupação irregular.
Art. 43 – As ZEIS 3 são áreas urbanas vazias, de interesse para a
implantação de loteamentos sociais para a população de baixa
renda.
A localização exata das áreas a serem destinadas as ZEIS é estabelecida
nos anexos do Plano, não definindo tipologias habitacionais. No caso das ZEIS, o
Plano define que a lei do uso e ocupação do solo deverá estabelecer diretrizes
urbanísticas especiais e diferenciadas para cada ZEIS, conforme suas
peculiaridades, porém não apresenta uma proposta que possa definir investimentos
em equipamentos sociais, tais como investimentos em educação, saúde, cultura,
saneamento, mobilidade e outros.
Desse
modo, o PD não aborda a questão com a profundidade necessária, não apresentando uma definição de
prioridades e prazos para encaminhamento de possíveis
soluções.
Nesse sentido, esses determinantes contribuem para reconfigurar a
espacialidade de Dourados. Nesse processo, destaca-se a atuação do poder público
mediante a implementação da legislação urbanística, segregando áreas da cidade,
ampliando as desigualdades e contribuindo para acirrar as contradições
socioespaciais.
Essa realidade confere e reforça uma divisão socioespacial bem
definida, a partir da concentração dos imóveis de padrão mais elevado e das
classes sociais de maior poder aquisitivo na porção norte da cidade. A Avenida
Marcelino Pires, em linhas gerais, funciona como um divisor entre as “duas”
porções da cidade – norte e sul.
Além da concentração de serviços médico-hospitalares, loteamentos como
Portal de Dourados, Vila Tonani, Vila Progresso e os denominados Jardins (Bará,
Girassol, Europa e Mônaco) e o recente condomínio fechado Ecoville, conferem a
porção norte da cidade uma característica diferenciada socioespacialmente.
O loteamento denominado Parque Alvorada, na porção noroeste da
cidade, nos últimos anos apresentou expressiva elevação dos preços de imóveis e,
ainda que não esteja próximo ao centro da cidade, apresenta características
peculiares, como a elevada concentração de professores das Universidades
Estadual e Federal e o predomínio de construções residenciais de padrão mais
elevado.
Um aspecto importante a destacar é o fato da Reserva Indígena
localizar-se a uma distância relativamente pequena em relação a alguns destes
loteamentos (Ecoville, Mônaco e Europa), acirrando a situação de segregação e
confinamento socioespacial vivenciada pelos grupos
indígenas.
Considerando esse quadro de contradições socioespaciais, esta pesquisa visa
contribuir para uma melhor compreensão da realidade de Dourados, revelando assim
suas particularidades e especificidades.
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www.uniderp.br
Ressaltamos que, quando realizávamos a pesquisa, tínhamos de deixar
claro que o nosso interesse não era político, que não éramos da prefeitura,
pois, devido às inúmeras visitas recebidas por funcionários da prefeitura, os
moradores/ocupantes da área já estavam cansados.