HEGEMONIA, RESISTÊNCIA E EMANCIPAÇÕES:
VELHOS/NOVOS IDEÁRIOS PARA VELHOS/NOVOS MODELOS: FACES DA MESMA
MOEDA?
Marcelo Matias de Almeida
Silvia de Toledo Gomes
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo compreender a atual
configuração hegemônica do mundo e algumas alternativas de resistência e
projetos de emancipação, gestados no interior do próprio sistema capitalista,
possibilitados antes de tudo por este ser um sistema contraditório e
extremamente díspar, gerando o paradoxo da riqueza em meio à pobreza a partir de
um desenvolvimento que se dá desigual e combinadamente. A indagação principal
sugere então que a partir dessa análise possamos verificar até que ponto essas
alternativas ao modelo hegemônico neoliberal se configuram realmente como
ruptura com o quadro atual ou se não passam de novas roupagens e ideários que na
realidade não conseguem se constituir enquanto um corpo sólido de propostas que
permitam pensar numa alternativa contra-hegemônica.
RESUMEN
El
presente trabajo
tiene como objetivo comprender la
configuración actual del mundo hegemónico y algunos proyectos alternativos de resistencia y
emancipación, gestado en el
propio sistema capitalista, que es posible sobre todo porque este es un sistema extremadamente dispares
y contradictorios, creando la
paradoja de la riqueza en la
pobreza a partir de un
desarrollo desigual que da
y en combinación. La principal cuestión
que se sugiere que a partir de este análisis podemos ver en qué medida estas alternativas al modelo hegemónico
neoliberal realmente tomar forma como una ruptura con la situación actual o si son ropa nueva y los ideales que en realidad no puede constituirse
como un cuerpo sólido de propuestas
para pensar en una
alternativa contra-hegemónica.
ABSTRACT
The present work aims to understand the current
configuration of the hegemonic world and some alternative projects of
resistance and emancipation, gestated within the capitalist system itself, made possible primarily because this is an extremely disparate and contradictory system, creating the
paradox of wealth in
poverty from a development
that gives unequal and
in combination. The main question then suggests that from this analysis we can see to what extent these alternatives to the neoliberal hegemonic model really take shape as a
break with the current
situation or whether they are new clothes and
ideals that in reality can not be constituted as a solid body
of proposals to think of a counter-hegemonic alternative.
1 - Introdução
Para além do senso comum e do uso coloquial a que
a expressão hegemonia pode fazer referência, esta como conceito remonta às
formulações do pensador italiano Antonio Gramsci, que entende hegemonia não só
como dominação e aplicação de força, mas também como a criação de imaginários e
sentidos coletivos. Conforme CECEÑA (2005, p. 36), “a proposta gramsciana, nesse
sentido, leva a se conceber a hegemonia como a capacidade para generalizar uma
visão do mundo”.
Nesses termos, torna-se claro que a hegemonia não
pode se restringir ao plano econômico ou militar. Para universalizar uma única
concepção de mundo que obscureça qualquer perspectiva de um mundo pensado sobre
outras bases é necessário o suporte da dominação que se impõe não apenas através
dos sistemas produtivos e da coerção militar, mas também que se reproduz no
cotidiano e na criação de sentidos que geram, para a maioria das pessoas, um
senso de realidade além do qual é muito difícil pensar uma alternativa
diferente.
A partir dessas premissas, o nosso trabalho
desenvolve-se, inicialmente, com uma discussão sobre hegemonia e
contra-hegemonia a partir do modelo neoliberal hegemônico atual, englobando,
principalmente, o papel de destaque dos Estados Unidos como potência global, não
apenas por seu poderio bélico-financeiro, mas também por ser o principal difusor
de um modo de vida, de cultura e de concepção de mundo dominantes, tido como
“ideais” e almejados por grande parte da sociedade mundial. Nesse tópico
abordaremos ainda, a partir das discussões de SADER (2005; 2006) quais seriam as
alternativas contra-hegemônicas nesse contexto, do Fórum Social Mundial ao
MERCOSUL e a América Latina.
Na segunda parte, buscaremos pensar e analisar
algumas formas de resistência e projetos de emancipação a partir de exemplos
abordados por autores como Pomar
(2001), Mercadante & Tavares
(2001), Arroyo (2003) e Singer (2001). O primeiro autor trás em seu texto
algumas reflexões sobre o desenvolvimento que apontam para a integração
econômica de segmentos periferizados da sociedade como alternativa estratégica
para a expansão de um capitalismo mais justo e democrático. Em Mercadantes & Tavares (2001) vamos
encontrar um projeto alternativo a partir de políticas transformadoras que
priorizem o social como essência, a redução da dependência e a desprivatização
do Estado. Já as reflexões de Arroyo (2003) e Singer (2001) vão ao encontro dos
ideais de solidariedade como contraponto ao modelo competitivo que toma conta do
mundo e dos valores atuais, dando ênfase à Economia Popular e à Economia
Solidária.
Por fim, na terceira parte do texto pretende-se
propor reflexões acerca dos conceitos e cenários debatidos, retomando o
questionamento inicial do trabalho em busca de direcionamentos que nos apontem
as faces do planejamento frente à lógica hegemônica global.
2 - Hegemonia e contra-hegemonia
O conceito de hegemonia é permeado pela ideologia
de poder nas suas mais diversas escalas de espaço e tempo. Compreender essa
relação vai além da simples comparação entre forças estritamente econômicas.
Conforme afirmativa de CECEÑA (2005, p. 08), o tema nodal no terreno das
hegemonias e emancipações não é somente a dominação e nem, tampouco, a força
física. Envolve a capacidade “de dominar através do consenso e de reproduzir as
formas de dominação nos espaços dos dominados”.
Um exemplo disso são as correlações de forças
inseridas na crise da hegemonia dos Estados Unidos, pois não se pode reduzir a
predominância norte-americana a uma visão economicista, que desconhece os outros
fatores que compõem a hegemonia. Distintas formas de expressão que os
norte-americanos conseguiram produzir e multiplicar se devem à capacidade de
persuasão de seus valores ideológicos e de seus mecanismos de difusão, como
aponta SADER (2005):
Neste caso, evidente é que o argumento de que a economia
norte-americana é significativamente mais frágil do que era no passado peca pela
unilateralidade a partir de dois pontos de vista. Em primeiro lugar, considera a
força norte-americana praticamente apenas no plano econômico - com todo o peso
que a economia justificadamente possui–, sem levar em conta o peso dos outros
fatores que compõem essa hegemonia: militar, tecnológico, ideológico, de meios
de comunicação. Em segundo, compara os Estados Unidos de hoje com os Estados
Unidos de há quatro décadas, quando a comparação tem que ser feita com as outras
forças atualmente presentes. Neste caso, temos um Estados Unidos mais frágil
economicamente que há algumas décadas, porém mais forte no quadro geral, porque
o segundo lugar de então, a URSS, desapareceu, o Japão está há mais de umas
décadas em recessão e a Europa pelo menos estagnou. Assim, a força relativa dos
Estados Unidos é maior do que antes. (SADER, 2005, p.
16)
Segundo o autor, a crise da hegemonia
norte-americana coloca em discussão a necessidade de se pensar as diferenças
entre a hegemonia e a contra-hegemonia no período histórico caracterizado pela
bipolaridade mundial e a forma como ela funciona num período de unipolaridade.
Desta forma, pode-se considerar o período da Guerra Fria como “um ‘jogo de soma
zero’, em que quando um perde, o outro ganha, em que o desgaste de uma das
grandes superpotências levava, quase de forma automática, ao fortalecimento da
outra”. No mundo unipolar, em que
apenas uma superpotência apresenta capacidade hegemônica, as dinâmicas da
relação de forças se alteram. “A força da
hegemonia norte-americana tem, na debilidade das outras forças, um de seus
elementos favoráveis”. E ainda:
Embora questionado em várias de suas dimensões, o poder imperial
norte-americano faz descansar sua superioridade, em parte, exatamente no fato de
ser a única potência com poder global, com interesses em todas as partes do
mundo, em revelar poder em todos os níveis que contam para a hegemonia –
economia, tecnologia, política, cultura, mídia, etcetera. (SADER, 2005, p.
18)
Desta forma, a hegemonia se exerce sobre os
outros e estabelece relações à medida que sua força ou sua fraqueza depende
sempre da força e da fraqueza dos outros sobre os quais se exerce a hegemonia.
Como reconhece o autor, no caso dos Estados Unidos, a maior força de sua
hegemonia vem da fraqueza das forças contra-hegemônicas, das
resistências.
O New York Times
escreveu, no momento das imensas mobilizações em vários países contra a guerra,
que o outro superpoder mundial seria “a opinião pública”. O exagero verbal não
impede que, polarizado pelo Fórum Social Mundial de Porto Alegre, efetivamente
exista uma acumulação de forças para a construção de uma hegemonia alternativa.
Desde o grito dos zapatistas, em 1994, passando pelas manifestações contra a
Organização Mundial de Comércio (OMC), em Seattle, em 1999, até chegar aos
Fóruns Sociais Mundiais, foi se constituindo um corpo de propostas, aglutinando
forças, as mais diversas e pluralistas, que começa a aparecer como o núcleo de
idéias e de forças contra-hegemônicas. Será o desenvolvimento destas que servirá
para medir a força e o tempo de sobrevivência da hegemonia norte-americana.
(SADER, 2005, p. 21)
Os dois pilares da hegemonia norte-americana
seriam a moeda, representada pelo dólar, e o poder militar, representado pelo
Pentágono. “Esses dois elementos, por sua vez, seriam dependentes entre si, com
a força e a mobilidade do Pentágono dependendo da força do dólar, que por sua
vez sustenta aquele poderio”. SADER (2005, p. 25) destaca que os Estados Unidos
possuem o poder sobre a moeda mundial com a qual podem comprar toda a produção
do resto do mundo e depois obter todos os dólares de volta para serem
investidos.
No entanto, segundo o autor, esses dois elementos
seriam, ao mesmo tempo, elementos de força e de debilidade dos Estados Unidos,
comparando-os a “calcanhares de Aquiles”. Assim, não possuem valores por si
mesmos, ao passo que dependem da debilidade das resistências para se manter no
comando.
Por outro lado, o autor destaca que a América
Latina vive, desde a metade dos anos de 1990, sua pior crise econômica e social.
Suas economias revelam una enorme fragilidade externa e tímida inserção
internacional, tanto econômica como politicamente. O cenário democrático possui,
desta forma, responsabilidade, total ou parcial, pela crise desses regimes.
Coincidem no tempo sua instauração ou reinstauração e o surgimento, de forma
cada vez mais acentuada, dos fatores de crise. Nesse contexto o neoliberalismo,
como política econômica e como ideologia, se tornou uma expressão aparentemente
indissociável de tais regimes democrático-liberais. “O peso da crise está, em
verdade, nas políticas econômicas e na ideologia que passou a presidir os novos
governos, com efeitos diretos na política”.
SADER (2006) afirma que a América Latina viveu
três períodos claramente diferenciados ao longo do século XX, sendo o
primeiro:
(...) praticamente uma extensão do século XIX, predominaram as
economias primário-exportadoras, orientadas pelas teorias do comercio
internacional baseadas no conceito de vantagens comparativas. A estes modelos de
acumulação correspondiam regimes políticos oligárquicos, nos quais as distintas
frações das elites econômicas disputavam entre si a apropriação do Estado e, a
partir daí, dos recursos de exportação e do comércio exterior em geral. (SADER,
2006, p. 53, tradução nossa)
Nos anos seguintes à crise de 1929, vários países
do continente desenvolveram políticas sobre as quais tempos depois a Comissão
Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) teorizaria sob o nome de
“industrializações substitutivas de importações”, e que possibilitaram o avanço
da industrialização de países da periferia do capitalismo. Nesse contexto, a
Divisão Internacional do Trabalho distanciou cada vez mais o centro e a
periferia do sistema capitalista, em economias industrializadas e
primário-exportadoras, entre sociedades urbanas e agrárias, com mecanismos
evidentes de intercâmbio desigual entre as mesmas. “Desde aquele momento se
formam novos blocos no poder, hegemonizados por frações industriais das
burguesias locais, com participação, mesmo que subordinada, de frações das
classes subalternas, em geral representadas por seus setores urbanos
sindicalizados”.
O processo de industrialização permitiu o
surgimento e o fortalecimento das classes trabalhadoras em vários países
latino-americanos, modificando o panorama social e político no continente. Foram
firmadas as bases para a constituição das primeiras forças políticas das classes
dominadas, centradas no movimento sindical, de caráter classista ou com
lideranças populistas. De acordo com SADER (2006), baseados em alianças
políticas dirigidas por projetos nacionais, vários países do continente viveram
significativas experiências populares, que representaram a primeira grande
aparição do movimento de massas.
O autor ainda ressalta que o novo período
presenciou uma disputa política entre três projetos diferentes: a alternativa
socialista no continente introduzida pela revolução cubana, o projeto de
nacionalismo militar de Velasco Alvarado no Peru, e o da ditadura militar no
Brasil. “Os três disputavam o espaço deixado pelo esgotamento do modelo de
substituição de importações no plano econômico e pela crise dos regimes
democrático-liberais”, ocorrendo, com isso, golpes militares em vários países,
especialmente no Cone Sul latino americano. E
ainda:
O (...) endividamento, somado à passagem do modelo hegemônico do
capitalismo ao neoliberalismo, favoreceu a hegemonia do capital financeiro sobre
as economias do continente. A abertura ao mercado internacional, a privatização
de empresas estatais, a desregulação econômica e a flexibilização laboral foram
instrumentos que conduziram à dita hegemonia, que permeou o conjunto das
economias em detrimento do capital produtivo. (SADER, 2006, p. 61, tradução
nossa)
O século XXI encontra a América Latina frente a
alternativas contraditórias em um quadro internacional complexo. Por um lado, o
autor destaca, um marco mundial de forte hegemonia norte-americana, de outro, o
ciclo expansivo latino-americano da economia sendo substituído por um ciclo
recessivo, com a conseqüente restrição do comércio internacional e das demandas
provenientes dos mercados centrais do capitalismo.
Aproximadamente duas décadas de programas de
estabilização monetária, de hegemonia neoliberal e de predomínio do sistema
financeiro não levaram a América Latina (nem sequer alguns países) a retomar o
desenvolvimento, recuperar o atraso tecnológico, estabilizar e estender os
regimes democráticos ou diminuir os problemas sociais. Ao contrário, o
continente vive
(...) a profunda e extensa ressaca dos remédios neoliberais, com
efeitos colaterais generalizados. O quadro atual nos remete ao pior dos cenários
possíveis: estados debilitados no plano externo e com capacidade de ação cada
vez menor no plano interno; sociedades cada vez mais fragmentadas e desiguais,
com amplos setores excluídos de seus direitos básicos, começando pelo direito ao
emprego formal; economias que perderam dinamismo e que voltam a depender
maciçamente da exportação de matérias-primas, enquanto ingressaram em um quadro
de crescente financeirização do qual não conseguem sair; culturalmente, o
continente, face à forte pressão internacional, revela uma incapacidade de
retomar os ciclos de criatividade e originalidade que o caracterizaram nas
décadas anteriores. (SADER, 2006, p. 60, tradução
nossa)
Os dilemas internos de cada país de América
Latina (prolongar o modelo de ajuste fiscal ou romper com o neoliberalismo e
buscar um modelo alternativo) se expressam no plano regional pela disjunção
entre a ALCA e o MERCOSUL. “O primeiro é a seqüência lógica da aplicação das
políticas de abertura das economias nacionais nesta região do mundo, em um
momento em que grandes zonas de integração das maiores economias do planeta
estão sendo articuladas e em que poucas moedas poderão resistir à escala
internacional”. A proposta de integração continental através da égide da maior
economia do mundo, no marco de sua própria moeda, parece o complemento natural
para as políticas praticadas nas duas últimas décadas no
continente.
A América Latina no período Lula significa o
acerto de contas da esquerda latino-americana com sua própria trajetória ao
longo dos últimos anos. Por isso, de acordo com o autor, o ano de 2003 é tão
importante para a esquerda e para o continente como o foi o ano de 1973, três
décadas antes. Nesse momento, com os golpes militares no Chile e Uruguai,
terminou um ciclo histórico de avanços e tentativas políticas de construir
alternativas ao capitalismo dependente em crise, fechando o cerco sobre o que
seria o novo governo peronista na Argentina, até que o golpe de 1976 deixou
definitivamente consolidado o novo período contrarrevolucionário na região. E
ainda:
O ano de 2003 pode ser considerado o início de um
novo período histórico para o continente ou do esgotamento de um modelo e, com
ele, das forças que, em oposição ao mesmo, não foram capazes de superá-lo. Os
primeiros indícios não são auspiciosos: a fase inicial dos governos de Lula e
Lucio Gutiérrez dá mais impressão de continuidade do que de ruptura. Os
violentos acontecimentos que marcam o início do governo de Sánchez de Lozada na
Bolívia revelam como sociedades extremadamente esgotadas pela elevação brutal
dos níveis de exploração e expropriação de direitos já não suportam um novo
ciclo de ajustes recessivos.” (SADER, 2006, p. 79, tradução
nossa)
Tem-se um novo período de redefinições, onde as
resistências contra-hegemônicas remetem ao pensamento de SINGER (2001), que
destaca a importância em se considerar que, “mesmo sendo hegemônico, o capitalismo
não consegue impedir o desenvolvimento de outros modos de produção porque é
incapaz de inserir dentro de si toda a população economicamente ativa”.
3 - Resistências e Alternativas
A ascensão dos governos de centro-esquerda na
América Latina, no início do século XXI, pode ser interpretada como uma resposta
ao modelo neoliberal norte-americano. Estes governos surgem com propostas de
novos projetos de nação, retomando o planejamento como prática orientadora de
suas ações e tendo o social como ponto
predominante.
Inicialmente, utilizaremos os apontamentos de
POMAR (2001) para pensar o desenvolvimento, reflexão que se faz necessária antes
de qualquer análise sobre alternativas ao modelo hegemônico. O autor começa
dissertando sobre como o social era visto e que lugar ele tinha no contexto do
governo Fernando Henrique Cardoso, no qual o Programa Brasil em Ação - Eixos
Nacionais de Integração e Desenvolvimento, do Consórcio Brasiliana, detectou os
"elos faltantes" da reestruturação e tornou-se Plano Plurianual, para levar o
Brasil a consolidar o modelo corporativo
transnacional.
O autor explica que o Brasil em Ação apresenta-se
com uma “roupagem social”. O projeto sugere "desenvolvimento sustentado", no
qual seriam compatibilizados "crescimento econômico, conservação do meio
ambiente e eqüidade social". Haveria "prevalência do social ao tratar a
exclusão, criar oportunidades de trabalho, elevar o nível de remuneração,
propiciar acesso ao consumo, educação e saúde e construir instituições
democráticas e processos participativos" e "restrição ecológica" ao adotar "uma
forma de produzir consistente com a disponibilidade de fatores e
recursos".
Entretanto, essa roupagem "social" some na
operacionalidade do projeto, voltada para commodities agrícolas (soja), minerais
(gás natural, calcário), florestais (madeiras) e agroindustriais (celulose) e
para ecoturismo, destinando-se os eixos a servir de canais para alcançar os
mercados mundiais e facilitar a segmentação empresarial. Desenvolvimento e
integração ficam reduzidos à expressão mínima. E a exclusão social torna-se a
regra geral de sua aplicabilidade.
Para resolução de problemas continentais que o
Brasil enfrenta, POMAR (2001) propõe que as medidas para fortalecer a vasta
camada de pequenos capitalistas "informais" e recriar uma camada ainda mais
vasta de trabalhadores assalariados precisam ter caráter massivo, sem o que não
se forjam forças sociais locais poderosas, que apóiem os governos populares e
criem condições para mudar a correlação de forças entre as classes dominantes e
as populares.
Com base no desenvolvimento massivo da economia
"informal", dando-lhe um dinamismo próprio e transformando-a em novo modelo de
desenvolvimento e numa força econômica e social real, os governos populares
podem dar apoio mais decidido à reforma agrária, tratar com táticas mais
soberanas as políticas de implantação dos "eixos de integração", dos "pólos de
crescimento" e dos investimentos corporativos, interferir positivamente na
competição entre o novo modelo e o modelo transnacional e nos conflitos de
interesse entre os diversos tipos de capital e do trabalho e priorizar realmente
os interesses populares na modernização da infra-estrutura e dos serviços
públicos.
Um modelo que trata particularmente da “economia
informal” citada pelo autor e que surge exatamente como forma de resistência ao
cenário atual é a Economia Popular, comumente tratada como “economia informal”,
“dos pobres”, e até mesmo “invisível”. Essas denominações, segundo ARROYO
(2003), não permitem que se enxergue a Economia Popular como parte importante da
economia e muito menos como peça estratégica para a solução do conjunto da
problemática do desenvolvimento.
A questão a enfrentar é a da concentração de
renda e riqueza, e aí a Economia Popular cumpre um papel fundamental porque sua
riqueza é fortemente gerada na circulação, o que revela um caráter
intrinsecamente distributivo. Logo, na Economia Popular, apesar de o conjunto do
sistema econômico ser hegemonizado por complexas situações de dominação, o
principal capital é a credibilidade, em função de quase sempre se tratar de
mercados concorrentes. Na Economia Popular a solidariedade é uma forte tendência
intrínseca. Como seu incremento traz um sincronismo entre a geração de empregos
e produtos/serviços, tende a estabelecer uma relação entre oferta e demanda que
proporcione o equilíbrio dos preços, evitando a inflação. Portanto, a Economia
Popular é uma das peças importantes para melhorar o perfil dos fundamentos
macroeconômicos do país.
De acordo com ARROYO (2003), a Economia Popular
se diferencia dos outros segmentos da economia por estabelecer a possibilidade
mais nítida de inverter a ordem entre o econômico e o social, já que não há
solução social se não for econômica. Esse raciocínio faz que a Economia Popular,
de uma simples forma de sobrevivência encontrada pelos segmentos marginalizados
da sociedade, passe a ser vista e pensada como instrumento de transformação da
sociedade.
Mudando um pouco a perspectiva das proposições
aqui apresentadas, trataremos agora a proposta de novo modelo as diretrizes do
Governo Lula no Brasil a partir de 2003. MERCADANTE e TAVARES (2001) apresentam
um projeto alternativo que abra caminho para a construção de um futuro sem
exploração e sem opressão, já criticando e se contrapondo ao sistema então atual
de gestão, retomando o planejamento como prática orientadora de suas ações e
tendo o social como ponto predominante.
Segundo os autores, a implantação do ideal do
"Estado mínimo" – eixo central da matriz ideológica neoliberal – não significou
restringir a intervenção do Estado na economia, mas sim modificar
substancialmente seu caráter. Esta, que em verdade ampliou seus alcances e seu
grau de arbítrio, passou a concentrar-se fundamentalmente na criação de espaços
de expansão e lucratividade para as atividades privadas e na preservação das
condições de reprodução do capital financeiro globalizado. Uma das principais
conseqüências dessas políticas foi a desestruturação do Estado brasileiro e a
limitação da sua autonomia na formulação e gestão da política econômica. Isso se
deu por meio de dois vetores: a deterioração de sua base financeira e de sua
capacidade operacional e de investimento, resultante dos efeitos das políticas
de abertura e desregulamentação radicais da economia; e o esvaziamento de suas
funções de apoio e orientação do desenvolvimento, decorrente da supervalorização
do papel do mercado na direção e regulação da
economia.
A proposta de diretrizes político-econômicas
representa, assim, uma ruptura das prioridades da política econômica, que passam
a ter como referências fundamentais as necessidades básicas da maioria da
população e o crescimento sustentado da economia e do emprego a partir da
mudança do padrão de crescimento, cujo núcleo dinâmico se desloca para a
ampliação do mercado interno, aumento da oferta dos serviços públicos de uso
universal e dos bens básicos da cesta de consumo popular; reorientação do modelo
de financiamento da economia, com o fortalecimento dos mecanismos internos de
financiamento do desenvolvimento e a redefinição do papel e importância do
investimento estrangeiro; modificação do padrão de intervenção do Estado na
economia, reconstruindo, dentro de uma visão inovadora, seu papel de regulação e
apoio a ações estratégicas para o desenvolvimento
nacional.
Para que o social seja a essência das ações do
governo, MERCADANTE e TAVARES (2001) explicam como se dará a nova forma de
planejamento do Estado:
Desta perspectiva, a transformação do social no eixo do
desenvolvimento não significa somente revalorizar, nos planos de governo, os
chamados aspectos sociais – o combate à fome, a educação, a saúde, o saneamento
básico, a habitação e a cultura. Significa conceber os programas de investimento
nesses setores como verdadeiros vetores de crescimento e transformação da
economia e, fundamentalmente, subordinar toda a dinâmica econômica aos objetivos
e prioridades macro-sociais. (MERCADANTE e TAVARES,
2001).
Portanto, o governo propõe que todas as ações na
economia se revertam em benefícios sociais, para que os que mais sejam atendidos
com estas medidas seja a sociedade. Para que estes objetivos sejam alcançados
pelo Governo Lula, MERCADANTE e TAVARES (2001) orientam que deverão ser
empregados os seguintes esforços: crescimento econômico, capacidade de geração
de emprego, expansão e redirecionamento do gasto público, democratização dos
direitos de propriedade e utilização da terra e do capital, fomento à economia
solidaria e outras formas criativas de associação de trabalhadores e pequenos
produtores independentes e aumento progressivo do salário
mínimo.
Percebe-se, desta forma, que não se trata de uma
ruptura com o modelo atual, mas de um projeto alternativo onde o foco
prioritário é a política social. Como diretrizes de governo, entretanto, elas
têm um importante papel na medida em que assumem as deficiências do Estado
brasileiro, a excessiva dependência externa e a necessidade de um Estado mais
presente e autônomo.
A Economia Solidária pode ser entendida como uma
proposta que ressurge num contexto de crise do mundo do trabalho como resposta
de parte da sociedade civil à precarização das relações de trabalho e ao aumento
da exclusão social, resgate da luta histórica dos trabalhadores, defesa contra a
exploração do trabalho humano e alternativa ao modo capitalista de organizar as
relações sociais dos seres humanos entre si e destes com a
natureza.
Assim, encontramos milhares de pessoas
organizadas coletivamente na gestão da produção econômica e lutando por
emancipação. Suas principais formas de expressão encontram-se nas ações de
organizações não-governamentais voltadas a projetos produtivos coletivos,
cooperativas populares, redes de produção, consumo e comercialização, diversas
instituições financeiras voltadas ao fomento a empreendimentos populares
solidários, empresas autogestionárias, cooperativas de agricultura familiar,
cooperativas de prestação de serviços, dentre muitas outras.
SINGER (2001) afirma que a empresa solidária nega a separação
entre trabalho e posse dos meios de produção, que é reconhecidamente a base do
capitalismo. O capital da empresa solidária é possuído pelos que nela trabalham
e apenas por eles. Todos os que trabalham são proprietários da empresa e não há
proprietários que não trabalhem na empresa. A empresa solidária tem como
finalidade básica, não a maximização do lucro, mas a quantidade e a qualidade do
trabalho.
O capital da empresa solidária não é remunerado, sob qualquer
pretexto, e por isso não há “lucro” pois este é tanto jurídica como
economicamente o rendimento proporcionado pelo investimento de
capital.
SINGER (2001) alerta que é importante atentar para o fato
que:
(...) as empresas solidárias tendem a se federar, formando
associações locais, regionais e nacionais e internacionais. O que impulsiona
esta tendência é o mesmo conjunto de fatores que produz a centralização dos
capitais em grandes empresas multinacionais e conglomerados; os ganhos de escala
que permitem reduzir custos; a necessidade de juntar recursos para desenvolver
nova tecnologia e difundir a melhor, além de outros empreendimentos de alto
custo e alto risco. (SINGER, 2001).
A economia solidária é formada predominantemente por
empreendimentos que, pela sua origem, são efetivamente democráticos e
igualitários e reafirmam estas características em sua prática cotidiana. Elas
constituem um modo de produção que, ao lado de diversos outros – o capitalismo,
a pequena produção de mercadorias, a produção estatal de bens e serviços, a
produção privada sem fins de lucro -, compõem a formação social capitalista, que
é capitalista porque o capitalismo não só prevalece quantitativamente em relação
aos outros modos de produção, mas molda a superestrutura legal e institucional
de acordo com os seus valores e interesses.
4 - Considerações Finais
Apesar de cada vez mais fortes e constantes, as
manifestações populares contra as políticas neoliberais e seus resultados
dão-se, essencialmente, como re-ação e não como iniciativas próprias. Além
disso, a variedade de mazelas que atingem a sociedade gera uma variedade de
movimentos que acabam sendo muito pontuais e, por isso, superficiais em
identificar e combater a causa dos problemas. Isso passa, também, por entender
que as motivações da atual situação social repousam em questões estruturais, e
não conjunturais: já não é possível tentar explicar o desemprego, a fome, a
degradação ambiental, a precarização do trabalho, a falta de moradia, as
desigualdades sociais, etc. como problemas de “ajuste” ao sistema ou como fruto
de crises momentâneas. Torna-se cada vez mais claro que esses problemas são
inerentes ao sistema capitalista de modelo neoliberal que experimentamos hoje,
sistema esse que se reproduz contraditoriamente gerando riqueza em meio à
pobreza, altos lucros frente à superexploração do trabalho, mobilidade total
pelos avanços da técnica contra imobilidade total pelos avanços da fome. Esse
modelo, que por seu caráter contraditório não é capaz de esconder esses binômios
que escancaram a realidade do mundo, também não é capaz de evitar a
resistência.
O caminho para a emancipação parece-nos ainda
longo. Os movimentos de resistência, apesar de extremamente importantes, ainda
não conseguem se conformar em um projeto claro de contra-hegemonia. O Fórum
Social Mundial, as Organizações Não-Governamentais e os movimentos populares
ainda são incipientes na medida em que não formam um todo coeso e com propostas
consistentes e abrangentes. Assim, não há ainda uma alternativa nem como projeto
teórico e político, nem como governos capazes de materializar uma saída para o
modelo atual. Para o último caso, a situação da América Latina hoje se coloca
como histórica: o agravamento da questão social em decorrência das políticas
neoliberais adotadas nas décadas precedentes acabou por levar vários países ao
colapso, emergindo, a partir daí, uma série de mobilizações populares,
manifestações e protestos, fortalecendo movimentos sociais e partidos políticos
que apresentavam alternativas de mudança. Conseqüentemente surgiram os
resultados eleitorais, com a ascensão de governos de cunho mais nacionalista
e/ou progressista em diversos países.
Entretanto, as constantes mobilizações populares
e a ascensão de governos em cujos discursos remetem um rompimento com esse
modelo de inserção mundial mostram que parece haver compreensão comum de que os
fenômenos da globalização e mundialização, ao mesmo tempo em que permitiram
grandes níveis de crescimento econômico e aumento flagrante nas trocas globais,
ampliaram assimetrias e aprofundaram a marginalização social, econômica e
políticas de diversos países e povos. Dessa forma, o processo de emancipação
latino-americana não pode ser visto dissociado de um projeto que deve ser,
inclusive, um projeto de solidariedade e cooperação internacional. Nesse
contexto, a integração regional constitui não só como uma alternativa econômica
com vistas a uma maior independência do jugo norte-americano e novas
possibilidades de negociações e acordos, mas também uma alternativa política com
um projeto societal novo, e quiçá mais amplo e democrático, para os povos e
nações latino-americanos.
É possível refletir que, realmente, em meio às
reviravoltas da dinâmica global o sistema capitalista a todo momento lança mão
de estratégias, das mais diversas, para manutenção do status quo. Velhos ideários são
repaginados sob um “novo” discurso que, de fato, é permeado das mesmas
ideologias. As resistências surgem e ganham voz em cansada resposta à lógica
dominadora. Nessa contradição, hegemonia e contra-hegemonia são faces de uma
mesma moeda à medida em que coexistem e fazem parte de um mesmo sistema, que por
si só é desigual e dividido em classes. O primeiro passo para o
início da inserção das resistências no debate foi dado, porém ainda não há um
projeto sólido que se coloque como alternativa concreta ao domínio hegemônico
hoje. As bases estão sendo lançadas e os diversos movimentos de resistência têm
condições de se tornar, a partir de um segundo estágio de lutas e mudanças, um
movimento real de emancipação.
5 - Referências bibliográficas
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