Fronteira, território e espaço no
livro “O Estrangeiro” de Albert Camus
Francielle Bonfim
Beraldi
Graduada em Geografia - Universidade Estadual
Paulista Pres. Prudente-SP
Mestranda em Geografia na Universidade Federal da
Grande Dourados- MS
Professora de Educação Básica na Rede Municipal
de Presidente Prudente-SP
Resumo
O propósito deste trabalho reside em buscar uma
aproximação da ciência com as Artes, tentando recuperar esta relação que em
algum momento, em nome da racionalização da Ciência, se perdeu, e deixou de
legar à Geografia grande sensibilidade e visão, para uma ciência que carece de
um olhar sensível ao espaço que se propõe a estudar. No decorrer deste texto
minha messe será a de buscar um elo entre as categorias geográficas e o espaço
criado por Albert Camus no livro “O estrangeiro”, escrito em 1942, e que é uma
obra-prima literária, transformada em filme homônimo em 1967 pelo diretor
Luchino Visconti. Este trabalho é
um ensaio do texto que será produzido em minha dissertação de mestrado pela
Universidade Federal da Grande Dourados, no município de Dourados- MS, que
consiste em analisar o conteúdo geográfico em obras literárias. Na dissertação
especificamente, os textos analisados serão aqueles que fazem parte do rol de
leituras de professores nas séries iniciais do Ensino Fundamental, portanto,
Literatura Infantil. Voltando ao presente texto, o que nos chama atenção nesta
obra de Camus, a frieza, a insensibilidade de Mersault, o personagem principal,
é muitas vezes a frieza e descaso com que observamos o outro, o diferente e
sobre eles vamos fortalecendo e criando e recriando fronteiras. Os conflitos que
ocorrem no livro são também conflitos que fazem parte de nossas vivências e
lidas cotidianas, pois há sempre um esforço em reconhecer no território aquilo
que nos pertence, como também o outro em que se deve manter distância. O árabe
do livro poderia ser qualquer um, qualquer coisa, que levou Mersault a se
desterritorializar, nos termos deleuzianos e guattarianos, e mais ainda, nada há
de mais geográfico do que a relação de um homem com o seu espaço vivido e com o
outro que compartilha este mesmo espaço. E ainda, quando Gilles Deleuze e
Guattarri perguntam no inicio do livro Mil Platôs, o que é uma corpo sem órgãos
de um livro, estamos a procurar uma resposta. Sendo o corpo sem órgãos um ser
dotado de potência criadora, tentamos imprimir o caráter geográfico nesta obra
de Camus, enquanto força dotada de uma geograficidade enorme, não somente por
tratar (subliminarmente), de uma rixa antiga entre árabes e franceses em Argel,
mas também por trazer sentimentos e sensações que remetem a conceitos
eminentemente geográficos. Este trabalho é então relacionado à Literatura, à
Geografia que se fundem, se relacionam para a constituição de uma linguagem
geográfica, ainda mais abrangente que a própria Geografia porque é movimento, é
o conceito “andando” como um flaneaur por entre a sociedade que os geógrafos
buscam compreender.
Abstract
The purpose of this paper is precisely to seek a
rapprochement of science and the arts, trying to regain the relationship that at
some point, on behalf of the rationalization of Science, has been lost, and left
to bequeath to Geography great sensitivity and vision for a science that
requires a sensitive eye to the space that aims to examine. Throughout this text
my harvest will be to seek a link between categories and geographical space
created by Albert Camus in his book "The Stranger," written in 1942, and that is
a literary masterpiece, made into a movie titled in 1967 by director Luchino
Visconti. This work is a test text to be produced in my master's thesis,in Federal University of Grande Dourados,
Dourados-MS, which involves analyzing the geographic content in literary works.
In the dissertation specifically, the texts analyzed are those that are on the
list of readings for teachers in early grades of elementary school, so
Children's Literature. Returning to the present text, which strikes us in this
work of Camus, the coldness, insensitivity of Mersault, the main character, is
often the coldness and indifference with which we look at the other, the
different about them and we are strengthening and creating and recreating
borders. The conflicts that occur in the book are also conflicts that are part
of our everyday experiences and read, because there is always an effort to
recognize that the territory belongs to us, but also the one where you should
stay away. The Arabic of the book could be anyone, anything, that led to
Mersault deterritorialise under Deleuzian and Guattarian and further, there is
nothing more than the geographical relationship of one man and his living space
and with the other sharing the same space. And yet, as Gilles Deleuze and
Guattarri ask at the beginning of the book A Thousand Plateaus, which is a body
without organs of a book, we are seeking an answer. As the body without organs
is a being endowed with creative power, we try to print the geographical
character in this work of Camus, as a force with enormous geographical
experiences, not only by treating (subliminal) in an ancient feud between Arabs
and Frenchmen in Algiers, but also to bring feelings and sensations that refer
to spatial concepts eminently. This work is related to the Literature, Geography
merging relate to the formation of a spatial language, even more comprehensive
than the very geography because it is movement, is the concept of "walking" as a
flaneaur through the company making the Geographers seek to
understand.
Résumé
Le
but de cet article est précisément de chercher un rapprochement de la science et
les arts, en essayant de retrouver la relation qui à un moment donné, au nom de
la rationalisation de la science, a été perdu, et à gauche de léguer à la
géographie d'une grande sensibilité et la vision d'une science qui nécessite un
regard sensible à l'espace qui vise à examiner. Tout au long de ce texte ma
récolte sera de rechercher un lien entre les catégories et dans l'espace
géographique, créé par Albert Camus dans son livre "L´étranger ", écrite en
1942, et qui est un chef-d'œuvre littéraire, fait un film intitulé en 1967 par
le directeur Luchino Visconti.
Ce travail est un texte de test destinés à
servir en ma thèse de maîtrise, Université Fédérale de Grande Dourados,
Dourados-MS, qui consiste à analyser le contenu géographique sur les œuvres
littéraires. Dans le mémoire spécifiquement, les textes analysés sont ceux qui
sont sur la liste des lectures pour les enseignants dans les premières années du
primaire, afin de littérature de jeunesse. Retour au texte actuel, qui nous
frappe dans cette œuvre de Camus, la froideur, l'insensibilité de Meursault, le
personnage principal, est souvent la froideur et l'indifférence avec laquelle on
regarde l'autre, le différent à leur sujet et nous sommes le renforcement et la
création et la de recréer des frontières. Les conflits qui se produisent dans le
livre sont aussi les conflits qui font partie de nos expériences quotidiennes et
de lire, parce qu'il ya toujours un effort pour reconnaître que le territoire
qui nous appartient, mais aussi celui où vous devez rester à l'écart. L'arabe du
livre pourrait être n'importe qui, n'importe quoi, qui a conduit à
déterritorialiser Mersault sous deleuzienne et Guattarian et de plus, il n'y a
rien de plus que le lien géographique entre un homme et son espace de vie et de
l'autre partagent le même espace. Et pourtant, comme Gilles Deleuze et Guattarri poser au début du
livre Mille Plateaux, qui est un corps sans organes d'un livre, nous cherchons
une réponse. Comme le corps sans organes est un être doté du pouvoir créateur,
nous essayons d'imprimer le caractère géographique dans cette œuvre de Camus,
comme une force avec d'énormes expériences géographiques, non seulement par le
traitement (subliminal) dans un ancien fief entre les Arabes et les Français à
Alger, mais également à provoquer des émotions et des sensations qui font
référence à des concepts spatiaux éminemment. Ce
travail est lié à la littérature, la géographie fusion se rapportent à la
formation d'un langage spatial, encore plus complète que la géographie même
parce que c'est le mouvement, est le concept de «marcher» comme flaneaur par la
société de la Les
géographes cherchent à comprendre.
Introdução
A Geografia, enquanto ciência que trata do espaço vivido, muitas
vezes percorreu em sua trajetória, o caminho que primava pela busca da verdade
absoluta como na transição da mitologia para a ciência moderna, da intuição para
a razão. O que se inaugura em Galileu Galilei, chega a Descartes, Kant, e
desemboca em autores clássicos e fundadores da Geografia Moderna como Ratzel,
Humboldt, Ritter, Brun, enfim, levaram a cabo a ciência como fragmentação do
saber e da natureza e sociedade em esferas diferentes de análise.
Com o advento de novas tecnologias, dos encurtamentos das distâncias
entre os países, e da tão proclamada “globalização”, a relação entre a ciência e
a realidade sofreu um impacto muito grande quando o cotidiano nem sempre
comprovava aquilo que a ciência dizia sobre ele.
Com isto a aproximação da ciência com as Artes,
com a pintura, a fotografia, a Literatura, pode ser uma alternativa não para
ordenar o caos, mas para ver nele sentidos para a existência do homem naquilo
que ele produz. Citando Deleuze e Guattari, (1995 p. 19), temos a interessante
colocação acerca do livro, objeto que será analisado neste
trabalho:
O livro não é a
imagem do mundo segundo uma crença enraizada. Ele faz rizoma com o mundo, há
evolução a-paralela do livro e do mundo, o livro assegura a desterritorialização
do mundo, mas o mundo opera uma reterritorialização do livro, que se
desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo (se ele é disto capaz e se
ele pode).
Partindo para a análise do livro, este artigo
inicia-se com a tarefa de buscar fugir de clichês, o que parece ser uma dura
empreita ao tratar de um clássico tal qual o livro “O estrangeiro” de Albert
Camus, escrito em 1957. O referido autor desta obra que é ambientada na cidade
de Argel, nasceu na Aldeia de Mondovi, na Argélia Francesa e segundo Moacir
Scliar no prefácio de O direito e o Avesso, outro livro de Camus, era este autor
de origem pobre e enfrentou sérios problemas com a tuberculose desde os 17
anos.
No entanto, em texto introdutório ao livro O
Direito e o Avesso, Camus deixa claro que a pobreza e a miséria não eram para
ele desgraças e sim que havia uma luz que espalhava nelas suas riquezas. Camus,
apesar de ter morrido jovem, aos 28 anos em um acidente automobilístico,
deixou-nos tão cara obra que tomo a licença de utilizar para tratar de
fronteiras, espaços, territórios, assim no plural, com o por que se explicitará
adiante. Por ora vamos à discussão de “O
estrangeiro”.
Desde o inicio o autor já lança um dos fatos
capitais para o decorrer da história de Mersault, o personagem principal, ao relatar que sua mãe morreu. Ora, este seria
apenas um acontecimento fatídico não fosse todo o desdobramento que se segue a
partir de então. A mãe morreu e as convenções que demandam deste acontecimento,
a morte, deveriam ser por ele seguidas e ressentidas.
Este momento, a morte da mãe, constituiu-se uma
fronteira na vida de Meursault, se considerarmos as palavras de Heidgger apud
Bhabha, (1998 p. 17), que argui que “uma fronteira não é ponto onde algo termina,
mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente. E neste
contexto, de constituição de fronteira que se vai Mersault ao enterro da
mãe.
Neste momento, de contemplação da morte ele demonstra pouco interesse pela situação
na qual se vê colocado, que seria a de sentir profundamente a perda da mãe que,
distante de seu convívio, estava desde que foi por ele colocada em um asilo, em um local relativamente
distante. Mas distante quanto, em relação a quê?
No velório estavam presentes o diretor do asilo,
o velho porteiro e uma enfermeira, que como Mersault pode perceber era ela
árabe. Este foi o primeiro ponto em que se faz menção a árabes no livro. Do
enterro de sua mãe, Mersault retorna à sua cidade, deita-se e deleita-se com a
namorada nas areias de uma praia argelina, vai ter com seus amigos, e ao
conhecer Raimundo está prestes a ver se desterritorializar por um fato que
envolve imigração, diferença, intolerância e violência.
Raimundo Sintés, seu vizinho do segundo andar tem
um caso com uma mulher árabe que andava a traí-lo, o que fez com que Raimundo
viesse a espancá-la e a planejar
uma vingança que envolvia Mersault. Deveria ele escrever uma carta para ela, já
que Raimundo não se achava capaz de faze-lo, e Mersault o faz como relata no
trecho que se segue:
Escrevi-a um pouco ao acaso, mas apliquei-me o
mais possível para contentar
Raimundo, pois não tinha razão nenhuma para não o contentar. Depois li a carta
em voz alta.
A seguir ao executar seu plano a polícia surpreende Raimundo a bater na
amante árabe, que decerto causa a ira de seus familiares, os quais surpreenderão
Mersault, Maria sua namorada, Raimundo e um terceiro amigo, de nome Masson em
uma praia distante. O desfecho desta feita com os árabes resulta em uma briga
onde os Árabes ferem Raimundo. Ao voltar à praia, Mersault, num momento de
delírio, sob um inebriante sol dispara quatro tiros em um dos Árabes e acaba
matando-o.
Entre si mesmo e um “outro”: a apreensão de
fronteiras e territórios a partir da diferença
Neste ponto inicia-se o fantástico, o absurdo
desta história. Mersault é levado à delegacia, mas surpreendentemente toda a
discussão das autoridades policiais gira em torno de sua frieza ao velar e
enterrar sua mãe. Ora, como pudera tal sujeito demonstrar-se tão frio diante do
insepulto corpo de sua mãe, como diante do enterro de sua mãe permanece frio e
incapaz de exprimir tristeza ou sofrimento, apesar de dizer que gostava dela.
Mersault, ao longo do interrogatório e do
julgamento demonstra sua angústia por não ser julgado por aquilo que ele julgava
deveras ser um crime grave, que era o homicídio atentado por ele ao Árabe
desconhecido.
O meu caso era delicado, mas se eu tivesse
confiança nele, não duvidava do êxito final. Agradeci-lhe e ele disse-me:
"Entremos no fundo da questão". Sentou-se na cama e explicou-me que tinham
andado a investigar a minha vida privada. Tinham descoberto que a minha mãe
morrera recentemente no asilo. Procedera-se então a um inquérito em Marengo. Os
investigadores tinham sabido que eu "dera provas de insensibilidade" no dia do
enterro.
O desfecho desta história, inconclusivo e conclusivo acima de tudo, deixa
a crer uma condenação de Mersault pelo que, fora condenado à execução em praça
pública em nome do povo francês. E nada muito além deste desfecho é relatado no
livro, a pena é conhecida pelo leitor mas não sabemos ao certo quando ela
ocorrerá e se de fato ocorre.
A partir deste momento podemos empreender a nossa análise começando por
uma afirmação feita por Mersault após sua condenação onde ele diz
:
O fato de a sentença ter sido lida, não às cinco
da tarde, mas às oito horas da noite, o fato de que podia ter sido outra
completamente diferente, de que fora resolvida por homens que mudam de roupa de
baixo e de que fora dada em nome de uma noção tão imprecisa como o povo francês
(ou alemão, ou chinês), tudo isto me parecia tirar seriedade a uma decisão tão
grave. Era obrigado a reconhecer, no entanto que, a partir do instante em que
fora tomada, os seus efeitos se tornavam tão certos, tão sérios como a presença
desta parede ao longo da qual eu me estendia.
A questão do lugar em que fora proferida a
sentença, as circunstâncias em que ela ocorreu foi, muito mais importante do que
o crime cometido contra o outro. Afinal, quem era este outro. Apesar de Mersault
colocar-se ele mesmo enquanto outro,
estrangeiro em seu próprio meio, também paradoxalmente há o outro, que
consiste na figura do Árabe.
Para entendermos a figura do árabe para Mersault é preciso conhecermos um
pouco da história de Argel, capital da Argélia. A história da Argélia, país que
fica ao Norte da África, na região de Magrebe, é marcada por conflitos e tensões
com a França que, vê nos imigrantes argelinos uma ameaça aos seus empregos e à
sua soberania nacional. Embora esta não tenha sido a visão de outrora, quando a
França carecia da mão-de-obra barata argelina, esta tem sido a postura hodierna
com relação à presença de argelinos em território francês, ainda que a migração
de argelinos para o Canadá seja muito maior do que para a França.
A cidade de onde fala Mersault é justamente Argel, local de conflitos internos porque, apesar
das lutas da Argélia por se tornar independente da França, segundo Houarani,
2006, as cidades de Argel e Orã eram mais francesas do que argelinas, o que
provavelmente refletia nestas tensões internas entre os árabes e aqueles que
Houarani, 2006 chama de argelinos educados. Um pouco da história da
independência da Argélia podemos encontrar em Zanottelli, (2005 p. 56), num
livro de entrevistas com Yves Lacoste, em que ele explica
que:
A Argélia era como o Marrocos e a Tunísia, uma colônia francesa. Nessa
época os movimentos independentistas, eram fortes e a luta pela independência
desses países se consolidava. A Argélia, pelo fato de ser a mais importante
colônia francesa da África , contava com uma forte presença de franceses em seu
território, sobretudo de grandes proprietários agrícolas. Em função do que foi
descrito, a descolonização do país
foi a mais complicada em razão da resistência dos franceses que ali viviam havia
várias décadas. Por isso mesmo a independência da Argélia somente foi consumada
em 1962.
E no centro desta resistência está boa parte da população de Argel, onde
na região montanhosa a leste da capital vive a maior parte da população francesa
da Argélia. E como se percebe, Mersault era francês, o que fica claro quando ele
trata o árabe não como um dos seus, mas como um outro.
Talvez, neste imbróglio tenha se dado esta escolha por retratar o outro,
o assassinado, como um árabe, para tratar de forma tal que, ao mesmo tempo em
que Merseault não consegue enquadrar-se, também relata que o outro está também
deslocado, faz-se estrangeiro a si mesmo e retrata a estrangeirice do
outro.
A questão da fronteira, enquanto discussão geográfica é perceptível no
livro de Camus, claramente, quando Mersault cria um distanciamento em relação ao
outro, que perpassa a questão da distância. O árabe vive em seu território, mas
também é um estrangeiro, entre eles há também uma
fronteira.
Ao buscarmos em Martins, (1997 p. 12), uma
definição de fronteira, temos a brilhante construção do
autor:
É na fronteira que se pode observar melhor como
as sociedades se formam, se desorganizam ou se reproduzem. É lá que melhor se vê
quais são as concepções que asseguram esses processos e lhe dão sentidos. Na
fronteira , o homem não se encontra- se desencontra.
Assim, a fronteira entre Mersault e o árabe vai além da barreira física,
vai além das diferenças religiosas, mas ela se interpõe na relação de forma tal
que, matar o outro nada mais importa. Ainda que Mersault se mostre indignado por
ser julgado por mostrar frieza no velório de sua mãe, a corte de homens
franceses que o julga, em nome da vaga e imprecisa noção de povo francês também
desconsideram o árabe, também mantêm a fronteira em que o outro não existe, a
não ser no momento da violência gratuita em que a eliminação dele se
dera.
Quando analisamos a questão
do território, a constituição do espaço geográfico na obra de Camus fica ainda
mais claro. O território, neste trabalho é visto com uma relação intrínseca com o espaço, segundo Raffestin, (1993 p.
143):
É essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território.
O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida
por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se
apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela
representação), o ator “territorializa” o espaço. [...] O território, nessa
perspectiva, é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e
informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder.
A questão se torna mais interessante na medida em que analisamos o
contexto da capital Argel com relação ao povo árabe. Apesar de ser capital de um
país na África, com a descolonização os franceses que lá viviam, e mesmo aqueles
que não eram franceses, mas se identificavam com os colonizadores, optaram por
incorporarem em si o que em tese seria o outro, porque entendiam que eram mais
cosmopolitas do que o restante da Argélia.
Este sentimento de constituição de barreiras com relação ao
outro fica bastante claro nas falas de Raimundo, Mersault, Maria, quando estes
sempre remetem ao outro, ao árabe como pessoa fora de seu convívio, da mesma
forma quando nos remetemos aos membros da comunidade judaica como “judeus”, aos
que confessam a Alá como “muçulmanos”, e como não chamamos (ao menos não
habitualmente no Brasil de maioria católica), àqueles que
professam o catolicismo de “católico”, para se referir à
pessoa.
Esta forma de reforçar a estrangeirice do outro
em seu meio, além de ser uma afirmação de si é também a afirmação do outro, como
não pertencente e não compartilhante daquilo que se tem a oferecer, tanto em
bens materiais, quanto (i) materiais, por assim dizer. Os territórios físicos,
palpáveis demonstram de certa forma esta cisão de idéias e de fronteiras quando
a maior parte da população francesa, por exemplo, se aglomera na capital Argel,
constituindo uma parte “francesa” da Argélia, e tratando de forma pejorativa aos
seus próprios.
A coetaneidade de tempos, nas palavras de Doreen
Massey, convive também no contexto da capital argelina, onde há a convivência de
Mersault, que não demonstra tristeza à morte da mãe, e de outro lado, há o irmão
árabe da amante de Raimundo, que deseja ver vingada a honra da irmã. Ainda, da
prisão de Mersault ocorrem tempos paralelos, na medida em que o tempo passa a
ter uma outra conotação para ele, que passa a se adaptar a uma outra noção
temporal, quando ele afirma que:
Todo o problema, repito-o, estava em matar o tempo. Por último,
acabei por já não me massar, a partir do instante em que aprendi a recordar.
Punha-me às vezes a pensar no meu quarto e, em imaginação, partia de um canto e
dava a volta ao quarto, enumerando mentalmente tudo o que encontrava pelo
caminho.
A Geografia, quando se propõe a discutir as simultaneidades de
estórias até aqui, citando novamente Doreen Massey está dando novas
configurações ao espaço e tornando a geografia uma ciência em movimento, capaz
de analisar a dimensão que o tempo tem para o espaço, sem perder de vista sua
matéria-prima, que é a relação entre o homem e o espaço, vendo o tempo como
elemento do espaço, não tendo a linearidade como base de suas
análises.
Proposições
finais
Muitos aspectos poderiam ser trabalhados da obra de Albert Camus, sem
deixar de lado o objetivo central deste trabalho, que consistia em discutir a
relação entre Geografia e Literatura. No entanto, optamos por trabalhar os
aspectos de território, migração e fronteira, que são temas caros à geografia e
não versam necessariamente sobre aspectos da paisagem
geográfica.
Este exercício é importante para nos estimular a
pensar na constituição de espaços geográficos nos textos da literatura, sem a
preocupação em encontrar aquilo que seriam elementos mais típicos da geografia,
geralmente relacionados à elementos físicos como hidrografia, relevo,
clima.
Todos esses elementos claramente fazem parte do
enredo, como quando Mersault descreve a praia, em como estava o dia quando saiu
com Maria, quando descreve a paisagem. Mas é preciso ir além. Estes elementos da
paisagem estão presentes mas são pano de fundo para algo maior, que são as
relações que se estabelecem entre as pessoas e que geram fenômenos
geográficos.
E este trabalho que será tentado ao longo do meu
trabalho dissertativo. Trazer a Literatura para as aulas de Geografia, como
forma de contextualizar, de experimentar os espaços construídos pelos autores
numa perspectiva que aborde as categorias geográficas de forma interrelacionada
e não mais de forma estanque e mecaniscista, como a ciência por um longo momento
pretendeu fazer.
A Geografia, que se quer mais próxima do
cotidiano, mais próxima da realidade não deve se privar do contato com a Arte,
com a Literatura, ou então, nós geógrafos perderemos grandes oportunidades de
constructos teóricos importantes e relacionais, quanto às categorias geográficas
e quanto a elementos suleadores da geografia, como fenômenos migratórios,
territoriais, fronteiriços, amplamente relatados na literatura brasileira e
mundial.
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