FORMAS
DE USO E ACESSO DA TERRA PELA POPULAÇÃO CABOCLA
DO PLANALTO DE SANTA CATARINA – SUL DO
BRASIL (SÉCULOS XIX E XX)
Marlon Brandt
Nazareno José de Campos
Resumo
No planalto de Santa Catarina se estabeleceu desde fins do século
XVIII, uma significativa parcela de pequenos e médios sitiantes, na maioria
posseira, que viviam às margens dos latifúndios pastoris das áreas de campos.
Sua fonte de renda básica se ligava a agricultura de subsistência e práticas
ligadas à exploração de recursos em comum de campos e florestas. O acesso a
estes recursos, da mesma forma que a posse da terra e a vida social, era
regulado por práticas, normas e costumes, impossíveis de serem apreciadas
somente pelo viés econômico, as quais eram transmitidas de geração a geração,
onde a oralidade e o direito costumeiro exerciam uma importância fundamental.
Isso vai se desestruturando, à medida que uma nova dinâmica sócio-espacial,
ligada à economia capitalista vai se instaurando na região, como a colonização,
a propriedade legal, o cercamento das terras e a devastação das
florestas.
Abstract
Besides the great proprietors, many mid dwellers inhabited the
plateau of Santa Catarina. Who lived at the border of pastorals large estates
and obtain their principal source of living upon subsistence agriculture and in
practices connected to the exploitation of communal resources of the fields and
forests. The access to those resources, as well as the possession of the land
and the social life, which were transmitted from generation to generation in
which orality and customary rights exerted fundamental importance, were
regulated by practices, norms and habits, which were impossible to be examined
only by economic means. This undergoes a process of destabilization, as a new
socio-spatial dynamics connected with the capitalist economy starts to be
established in the region, perceptible such as colonization, the legal property,
the demarcation of the estates and the devastation of forests.
Introdução
Constituído por um espaço cujas altitudes variam entre os 600 e os
1000
metros, o planalto meridional brasileiro possui uma
característica formação natural, onde domina, de um lado, uma vegetação de
campos, e de outro, a Floresta de Araucária, ou Floresta Ombrófila Mista, onde
predomina a araucária (Araucaria
angustifolia), associada a outras espécies arborícolas destacando-se a
erva-mate (Ilex paraguariensis)
(KLEIN, 1978, p. 10-17), além de vegetação arbustiva.
Esse quadro físico-natural refletiu no processo de formação e
dinâmica sócio-econômica regional através do desenvolvimento das economias do
gado, ervateira e madeireira, feições básicas que se mostram presentes na área
de planalto do território catarinense. Enquanto nas áreas de campos dominavam as
grandes fazendas criadoras de gado bovino e muar, a Floresta de Araucária
consistia em um espaço não propicio a tal economia, possibilitando a
interiorização do povoamento por pequenos e médios
sitiantes, na maioria sob o regime da posse, rumo às florestas a partir
de meados do século XIX.
Há aspectos básicos que condicionam ou influenciam de alguma forma no
processo de formação sócio-espacial do planalto catarinense, com destaques ao
latifúndio ganadeiro dos campos e a produção madeireira e colonização das
florestas. Nossa maior preocupação neste sentido é proceder à análise dos
elementos básicos identificadores do costume e cultura da população cabocla das
florestas do planalto, tendo como o principal objetivo de análise as formas de
uso e acesso a terra e dos recursos naturais. Escolheu-se trabalhar com o
período situado entre a interiorização do povoamento rumo à floresta, a partir
da segunda metade do século XIX e a consolidação da colonização por migrantes e
imigrantes de origem alemã e italiana a partir da década de 1930, aprofundando a
problemática social de toda a região. Empregamos neste artigo a definição de
população cabocla adotada por Paulo Pinheiro
Machado (2004, p. 48), que os descreve como: “os habitantes do planalto, ou seja, o
habitante pobre do meio rural”. Embora, conforme o autor, “não haja uma
conotação étnica nesta palavra, freqüentemente o caboclo era mestiço, muitas
vezes negro”. Porém a principal característica desse conceito é que denota “uma
condição social e cultural, ou seja, caboclos são os homens pobres, pequenos
lavradores posseiros, agregados ou peões”.
Para tanto, ao analisar a temática em discussão, percebemos a importância
de se conjugar elementos os mais diversos, definidores de processos históricos,
geográficos, antropológicos, sociológicos, econômicos e jurídicos, visto que
entre a população cabocla que então habitava a região são observadas práticas,
normas e costumes que não podem ser vistos apenas pelo viés econômico.
Transmitidas de geração a geração, onde a oralidade exercia uma importância
fundamental, a memória legitima essas práticas, evidenciando a existência de uma
cultura capaz de se auto-regular, estando inclusive oposta às normas oficiais.
Costumes que incorporavam muito do que era atribuído à cultura popular,
possuindo também uma íntima ligação com o direito consuetudinário, que deriva
dos hábitos considerados bons, dos usos habituais, situação bastante comum entre
populações tradicionais, revelados em seus hábitos, costumes e inter-relações
sociais, que regulavam o acesso e uso da terra, da água ou de algum outro
recurso natural, e que assim como as práticas de entreajuda, ligavam-se a regras
e precedentes, sendo uma espécie de lei local, e que embora se registrassem
apenas na memória, tinha força de lei. Costume que, longe de ser permanente, era
um campo em constantes mudanças, reconstruções, ressignificações, fraturas e
oposições, não apenas se autodefinindo, mas recebendo influências externas,
assumindo variações tanto espaciais quanto temporais.
1
– A economia tropeira como base econômica do planalto
catarinense
O Planalto Catarinense era originariamente território espanhol
pelo Tratado de Tordesilhas e ocupado por grupos indígenas pertencentes
principalmente a populações do tronco cultural Jê. A chegada do europeu dá-se
inicialmente de modo efêmero, por elementos originários das populações ibéricas
(lusitanos e espanhóis), muitas das quais provenientes da província de São Paulo
à procura de riquezas naturais como o ouro ou com a intenção da escravização
indígena. Com a formação da economia aurífera nas Minas Gerais no século XVIII,
as áreas de planalto do sul brasileiro adquirem maior visibilidade perante os
interesses da coroa portuguesa, tendo em vista a presença na região de imensas
pastagens naturais, integrando-as assim a uma evidente divisão territorial do
trabalho, como abastecedora de gado vivo e subprodutos deste para o mercado
daquela formação econômica.
Ao se ligar à região aurífera do Brasil Central, se integra, mesmo
que indiretamente, à conjuntura do capitalismo mercantil luso. Isso fundamenta a economia tropeira cuja base foi a grande
fazenda de produção de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, que se
tornaram abastecedoras da região aurífera de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso,
através das grandes feiras localizadas em território paulista, em especial a
conhecida Feira de Sorocaba.
Por sua vez, a propriedade da terra no Planalto tinha por base o
sistema de sesmarias, absorvido da legislação portuguesa via Ordenações do
Reino. É através daquele sistema que se formarão as grandes propriedades e
fazendas de criação por todo o Planalto Meridional Brasileiro. Com a formação
dessas fazendas se inserirá ao contexto demográfico regional a população de
origem africana, que virá como escrava, chegando à região já “com a fundação de Lages, na própria comitiva
de Correia Pinto”, que fundou em 1771 a vila de Lages (LEMOS, 1983, p.
59), estando a maioria deles “em poder
dos fazendeiros, empregados nas lides do campo” (idem, p. 67). Tal
atividade, que se dava em área ampla e aberta, leva essa parte da população
(assim como elementos pobres de origem branca, mestiça ou de negros libertos) a
se caracterizar como peões ou agregados de fazenda, os quais tinham determinados
direitos (casa e espaço limítrofe para pequenas hortas e criações de animais
miúdos, aproveitamento em comum de recursos naturais das terras que compreendiam
a propriedade, etc).
Se a grande propriedade formada a partir das sesmarias constituiu,
por todo o período colonial, a característica fundiária dominante, na prática, o
regime de posse dominava entre a população em geral, inclusive nas regiões de
criação de gado do planalto sul brasileiro. Todavia, elementos diferenciadores
de espaço e tempo fizeram com que a formação econômica regional denotasse
relações sociais e de produção diferentes do ocorrido em outras áreas do país
cujos latifúndios eram dominantemente escravistas, a exemplo do Nordeste em
relação à cana de açúcar. Nas áreas de campos do planalto catarinense, a
escravidão teve menor importância, apesar de também ter ocorrido. Delineou-se
assim a formação e desenvolvimento de relações sociais e de produção
caracterizadas pela relação entre os agregados, peões, escravos e os
proprietários das fazendas, que se tornaram regionalmente
dominantes.
Entretanto, a formação social do Planalto não era constituída
apenas por proprietários das fazendas e seus agregados. Conjugava também uma
população de pequenos e médios sitiantes independentes, cuja posse consistia na
principal forma de acesso à terra. Trata-se de uma população fortemente
miscigenada (índio, negro e branco de origem ibérica), que possuía inúmeras
práticas sociais com uma forte presença do coletivo em relação ao individual.
População que, como em outras áreas do país, desenvolveu “modos de vida particulares, que envolvem
grande dependência dos ciclos naturais, conhecimento profundo dos ciclos
biológicos e dos recursos naturais” (DIEGUES, 2004, p. 14), e que
constantemente procediam ao uso comum de áreas de floresta através da extração de recursos
naturais e a criação de animais à solta.
2
– Pequenos e médios sitiantes às margens das grandes propriedades
pastoris.
Pelo fato do planalto
constituir, nas palavras de Paulo Pinheiro Machado (2004, p. 69), “uma região de fronteira, no sentido de ser a
frente de um processo específico de apropriação e colonização de terras”,
possibilitou a oportunidade do estabelecimento, sobretudo a partir das últimas
décadas do século XIX, de pequenos e médios sitiantes independentes, na sua
maioria sob o regime da posse, em regiões de florestas às margens dos
latifúndios.
Essa
população possuía como principais atividades econômicas a agricultura e a
criação de animais, cujo excedente era comercializado com tropeiros, na base da
troca, e nas vilas e cidades próximas (MACHADO, 2001, p. 12, 19-20). Formavam
nas terras o que Arlene Renk (1997, p. 97) denomina como “roça cabocla”, em que
adotavam uma prática costumeira de dividir as terras em “terras de criar” e
“terras de plantar”. As “terras de criar” eram compostas por praticamente toda a
posse, abrangendo tanto a floresta quanto pequenas áreas de campo, criando principalmente bois e porcos. O primeiro nas áreas abertas
de campo, enquanto o suíno nas florestas, soltos, necessitando de pouco manejo.
Engordavam se alimentando de frutos e sementes, principalmente o pinhão,
abundante a partir do outono (DEAN, 2004, p. 91). As “terras de plantar” eram formadas a partir da abertura
de roças na floresta, adotando a rotação de terras e prática indígena da coivara, cercando as terras com toras de
árvores ou tábuas lascadas para evitar a invasão dos animais.
É recorrente dentro da produção de cunho histórico e geográfico
sobre o planalto catarinense, ao abordar a ocupação e os modos de vida da
população cabocla, apresentarem-na dentro do modelo patriarcal, do grande
fazendeiro pecuarista das áreas de campo, com seus peões e agregados, e o
caboclo que vivia sob a sua influência, homogeneizando todo o espaço do planalto
ao modelo existente nas áreas dos campos pastoris. Porém, a relação não era a de
total dominação patriarcal, modelo de análise criticado por autores como Edward
Palmer Thompson (2002), para quem este viés acaba caindo sempre no modelo da
casa-grande e de sua gente, em uma análise de cima para baixo. Existem, de
acordo com o autor, outras maneiras de descrever a sociedade para além do
fidalgo, ou no caso, do fazendeiro, mostrando uma realidade muito mais complexa
do que supõem os modelos baseados na submissão e reverência dos servos ante o
poder paternalista. Existiam, tantos nas vilas e povoados quanto nas áreas
rurais, diversas formas de sociabilidade, expressas em festas, muitas delas
religiosas, em práticas de solidariedade e nas variadas formas e uso e acesso a
terra, muitas delas de uso comum, para a criação de animais ou coleta de
recursos naturais, que escapam de uma ótica “vista de cima”, pois assim o que se
enfatizaria seria o paternalismo e suas implicações, como a submissão e a
reverência por parte dos pobres.
Por outro lado, ao analisar a formação social do planalto a partir
de uma ótica dos “de baixo”, em uma tentativa de compreender o povo no passado,
“à luz de sua própria experiência e de
suas próprias reações a essa experiência” (SHARPE, 1992, p. 42) é possível
observar que a relação de dominação-subordinação existente entre o fazendeiro e
seus peões e agregados, e mesmo pequenos e médios sitiantes que viviam próximos
não ocorria em todos os espaços de forma semelhante. Estavam submetidos ao poder
dos grandes fazendeiros através de um conjunto de laços de lealdade, compadrio e
obrigações que muito se diferem das existentes entre os trabalhadores
assalariados do século XX (MACHADO, 2004, p. 66-67). Quase sempre agregados e
peões nasciam e morriam trabalhando na mesma propriedade. O que poderia ocorrer,
caso saíssem sem o consentimento do fazendeiro, freqüentemente seu parente por
compadrio, seja para outra fazenda ou para a procura por novas terras, onde
pudesse se estabelecer como sitiante independente, era fazer uma “desfeita”, uma
traição, se visto pelos olhos da época, reprovada tanto pelos seus semelhantes
quanto pelos fazendeiros da região.
Porém havia espaços
para a negociação, muitos deles motivados pelo próprio quadro espacial, afinal o
planalto se constituía na época, como uma fronteira aberta, onde existia certa
autonomia por parte dos pequenos e médios sitiantes. Paulo Pinheiro Machado
(2004, p. 76), ao analisar reportagens de jornais publicados na região nas
primeiras décadas do século XX e fontes judiciais, por exemplo, demonstra que
esta autonomia por parte dos pequenos e médios sitiantes, era maior à medida que
se afastavam das áreas das grandes fazendas de criação.
Para isso ele cita como um exemplo da existência de certa força
política e legitimidade por parte desta população, mesmo em Lages, onde dominava
as grandes fazendas pastoris, uma disputa envolvendo as áreas de criação e
plantação. Era comum não existirem cercas dividindo propriedades ou criações no
planalto, seja por parte dos pequenos e médios sitiantes ou dos grandes
fazendeiros das áreas de campo. E no inverno, quando escasseava o pasto, era
comum o gado invadir a floresta, destruindo a plantação de muitos lavradores
posseiros. Em Lages este conflito era comum, e em 1904, o autor cita o caso da
decisão do Conselho Municipal que estipulou uma faixa de 6 quilômetros mata
adentro para ser utilizada como terra para a criação. Porém em
1912 a
margem de matas foi reduzida a 3 quilômetros. Embora nunca
tenha sido fiscalizada, argumenta o autor que esta situação pode demonstrar
certa força política e legitimidade por parte da população posseira ou
possuidora de pequenas porções de terra.
A população de pequenos e médios sitiantes era composta por muitos
ex-peões, agregados, escravos fugitivos, negros libertos e pequenos fazendeiros
em busca de novas terras, que não estava submetida aos laços que prendiam
agregados e peões aos fazendeiros das áreas de campos, tanto de Santa Catarina
quanto do Paraná ou Rio Grande do Sul. Da mesma forma que os aldeões ingleses do
século XVIII descritos por E. P. Thompson (2002, p. 144), sua “subsistência não era nada além de mísera, o
modo de vida podia ser instável, mas [...] em algumas passagens de suas vidas
[...] sentiam que se autodeterminavam e que, nesse sentido, eram
‘livres’”.
Moradores que, ao se estabelecerem nesses novos espaços, teceram
redes de relacionamento e sociabilidades, fundamentais na elaboração de normas,
hábitos e costumes, impossíveis de serem apreciados somente pelo viés econômico,
e acatados “de maneira consensual, nos
meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares que
compõem uma unidade social” (ALMEIDA, 2004, p. 10).
As relações sociais eram, e ainda o são em diferentes contextos,
expressas nas formas de acesso a terra e ao uso desta e de recursos naturais em
comum, como pode ser visto na criação de animais à solta e na coleta da
erva-mate.
3
– Formas de uso comum da floresta.
Embora o modo de povoamento realizado pela população do planalto
catarinense fosse disperso os moradores não viviam isolados. O espaço adquiria
familiaridade, cada vez mais conhecido, definido e significado pela população,
onde emergiam experiências cotidianas, de trabalho, lazer e sobrevivência,
fortalecendo assim o sentimento de pertencimento e unidade (LITTLE, 1999, p.
08). Lugar cuja formação, segundo Cândido (1971, p. 64-65), “depende não apenas da posição geográfica,
mas também do intercâmbio entre as famílias e as pessoas”, percebendo-se,
entre a comunidade, um forte sentimento do coletivo, conjugando-se a elementos
característicos das ações, usos e direitos de caráter privado.
Ressalte-se, entre as atividades que mais se destacavam em relação
ao aproveitamento de bens naturais ou trabalhos coletivos, a criação de animais
à solta, cuja integração entre vizinhança estava plenamente presente. Criado
solto, o animal circulava livremente nas terras de posse ou oficiais, além das
florestas, muitas ainda devolutas. Isso fica evidenciado nas narrativas de
diversos moradores da região, como no caso de José Lindolfo Cordeiro Leite
(2005), cuja criação, da mesma forma que a de muitos criadores da região ocorria
de modo semelhante ao praticado por seus pais e avós, desde a ocupação da
região:
[...] naquele tempo criava, nem tinha cerca, era aberto, só fazia
uma marca onde eram as divisas, marcavam uma madeira assim, não tinham cerca,
não existia arame. E daí ali era a divisa de terreno, mas a criação criava tudo
junto, uns criavam porco outros criavam gado. E era tudo misturado. Era um
espaço muito grande. [...] da nossa fazenda nós vínhamos, para pegar animal, ali
na Liberata, e às vezes noutras partes. [...] Às vezes levava mês para a gente
achar.
A ampla mobilidade dos animais é relatada também por Sebastião
Celso Abrão (2005), que enfatiza a ausência de cercas nas dividas das terras,
sejam elas constituídas por posses ou terras
legalizadas:
Era tudo em aberto, tinha a propriedade, tinha um potreirinho para
fechar um cavalo, mas era tudo em aberto. [...] Divisa, era tido mundo, eu
entrava no outro o outro entrava no nosso. Só o marco na época, cada um sabia
onde era a divisa. [...] Eu passava para o terreno do outro, passavam no meu
terreno, ninguém ligava.
Esse costume de criação, comum a toda região de Floresta de
Araucária do sul do Brasil, como aponta Man Yu Chang (1988, p. 37), “era condizente com o ambiente natural. O
meio farto provia de alimentos silvestres em abundância, o que poupava aos
criadores os custos de trato da criação”.
O arrebanhamento, de bois, cabras ou porcos, tanto para consumo
quanto para a venda, era facilitado pelo contato entre os moradores, que tinham
o hábito de avisar ao proprietário dos animais se alguns deles estavam
percorrendo suas terras. Prática assim descrita por Sebastião Pires
(2005):
É, tinha boi para tudo quanto era lado. Quando ele queria
requisitar a boiada, lá em tal lugar tem dois três bois que tá lá no terreno do
fulano, mais três quatro no outro terreno, ele buscava. Criava em
aberto.
Essa “criação em aberto” e com a concordância dos vizinhos,
poderia ocorrer tanto em áreas livres, sem dono, constituídas, em termos
oficiais, por terras devolutas; quanto em áreas privadas cujos proprietários não
se importavam com tal uso ou era ele mesmo um criador, ou ainda, em espaços
privados cujos vizinhos utilizavam de comum acordo, caracterizando diferentes
formas de compáscuo. Forma que possui também uma íntima ligação com o direito
consuetudinário, que deriva dos hábitos considerados bons, dos usos habituais,
que podem ser da terra, da água ou de algum outro recurso natural, por exemplo,
e que poderiam ser reduzidos a regras e precedentes, sendo uma espécie de lei
local (THOMPSON, 2002, p. 88-120).
Transmitidas de geração em geração, onde a oralidade exerce uma
importância fundamental, a memória legitima essas práticas, evidenciando a
existência de uma cultura capaz de se auto-regular, estando às vezes até oposta
às normas oficiais. Normas, hábitos e costumes que, assim como as memórias que
as transmitiam, longe de serem permanentes e transmitidas “pelo modo atemporal da ‘tradição’”,
conforme aponta Eurípedes Funes (2003, p. 228), formam um campo em constantes
mudanças, reconstruções, ressignificações, fraturas e oposições, não apenas se
autodefinindo, mas recebendo influências externas, assumindo variações tanto
espaciais quanto temporais. Porém estas, na
visão do autor “mantém o cerne como
elemento de vínculo entre o presente e o passado. A repetição de fatos, nomes,
lugares e atitudes são marcadores significativos e, ao mesmo tempo, reveladores,
pois permitem traçar a trajetória histórica do grupo” (FUNES, 2009, p.
148).
Outra atividade relacionada ao uso em comum da terra estava dizia
respeito à extração de recursos naturais da floresta, como o mel e cipós para
coloração da lã, e a erva-mate, que consistia no principal produto econômico de
muitas famílias caboclas nas áreas de ocorrência natural da aquifoliácea. O
hábito de se consumir o mate já era comum entre os Guarani antes da chegada dos
europeus. Herdaram tal tradição os povoadores dos Campos de Curitiba, em contato
com os indígenas escravizados, da mesma forma que os paulistas e portugueses que
ocuparam o Rio Grande, além dos espanhóis do Prata. Se de início sua produção se
destinava apenas ao consumo próprio, logo passou a ser comercializado,
tornando-se um importante produto comercial das regiões próximas aos rios Negro
e Iguaçu (QUEIROZ, 1981, p. 33).
Se os campos nativos marcaram a área onde se instalaram as
primeiras fazendas, os ervais fizeram o mesmo, indicando as áreas extrativas.
Apesar de não se constituir em uma forma de uso ligada às atividades pastoris,
seu surgimento está intimamente ligado com o avanço populacional, inicialmente
promovido pelos caminhos das tropas. Os primeiros ocupantes das regiões ricas em
ervais, ao encontrar uma área onde tal árvore abundava, nelas se instalavam e
iniciavam a produção (QUEIROZ, 1981, p. 32).
Não existiam, ao menos nas regiões ervateiras de Santa Catarina,
regras muito fixas nas relações entre os homens no trabalho dos ervais. Todo o
trabalho, no caso de pequenos sitiantes que se instalavam na região dependia
somente da força familiar. Esta forma de extração do mate ocorria com maior
freqüência em pequenas propriedades ou posses afastadas em plena floresta
(QUEIROZ, 1981, p. 34). Coleta que, no caso destas terras devolutas, poderia ser
em comum, como aponta Alexandre Tomporoski (2004, 308-309) em relação ao
Planalto Norte de Santa Catarina A erva também era, ao menos em seu início,
colhida nas terras dos grandes fazendeiros por seus peões e agregados. Porém a
extração servia principalmente para subsistência, sendo que algum eventual
excedente poderia ser comercializado nas vizinhanças, sem que representasse
alguma importância econômica (QUEIROZ, 1981, p. 32).
Essa população, embora dispusesse de uma ampla faixa de terras
florestadas abertas, mais ao oeste, constituindo uma área de fronteira agrícola,
era relativamente fixa, ao menos em parte do século XIX e nas primeiras décadas
do século XX. É possível dizer que a existência de florestas e terras
abundantes, onde era possível reproduzir práticas costumeiras de acesso e uso da
terra e seus recursos e o sentimento de localidade, formado através dos laços de
parentesco, vizinhança e compadrio, são fatores relevantes na sedentarização da
população cabocla.
O acesso a terra, no entanto, tornava-se mais precário à população
cabocla, sobretudo na porção do meio-oeste e planalto norte do Estado, a partir
das apropriações de imensas faixas de terras devolutas por fazendeiros locais,
empresas de capital estrangeiro como a Brazil Railway, que construiu o trecho
que cruzava o planalto catarinense da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande,
acompanhando o traçado do Rio do Peixe,
e a Lumber Corporation Company,
ambas de propriedade do empresário norte-americano Percival Farquhar; além de
políticos e empresários que em muitos casos sequer conheciam a região (MACHADO,
2004, p. 75).
A política de terras de Santa Catarina, definida após a
Constituição Republicana de 1891, possuía como objetivo atuar na regularização
de antigas posses e na venda de terras públicas para estímulo da pecuária e da
lavoura. Política que se baseava, de acordo com Paulo Pinheiro Machado (2004, p.
139),
na premissa segundo a qual Santa Catarina precisava desenvolver
sua “indústria pastoril e agrícola” e, para isto, já contava com “terras
ubérrimas” que eram “desabitadas”. Fica evidente a formulação de uma política de
terras ligada ao estímulo da colonização européia, voltada para o
desenvolvimento de uma lavoura comercial – submetida aos interesses de capital
mercantil e de empresas particulares especializadas em especulação com terras –
e para o crescimento da oferta de pastagens úteis aos grandes pecuaristas do
planalto.
Da mesma forma que em outros estados brasileiros, as populações
indígenas estavam completamente alijadas desta política de desenvolvimento.
Situação que não era diferente para milhares de famílias caboclas que viviam sob
o regime da posse e que passaram a ser expropriadas, assinalando a
intensificação de um processo de transformações sócio-espaciais relacionadas
principalmente à questão da terra. Condição que deu origem a diversas situações
de disputa pela sua posse, sendo a Guerra do Contestado, que ocorreu na região
entre os anos de 1912
a 1916, o principal marco de resistência da população
cabocla (MACHADO, 2004, p.
139).
4
– Século XX: apropriação privada das terras e rupturas no modo de vida das
populações caboclas.
Depois de passar a eleição eles passavam no Governo do Estado e
diziam: quero um terreno em tal lugar. Legalizavam toda aquela região. E esse
povo mais rico queria campo para criar boi. E o caboclo ia para o mato. O
caboclo era posse, ficava por lá.
[...] Só que daí depois veio o valor do pinheiro, aí
complicou.
Essa frase, proferida por Valdomiro Monteiro (2005), um antigo
morador de Curitibanos, ilustra bem o contexto pelo qual passava o planalto
catarinense na primeira metade do século XX, assinalando a intensificação de um
processo de transformações sócio-espaciais no planalto relacionadas
principalmente a questão da terra.
Após a assinatura da Lei Áurea, as relações de poder existentes
entre o fazendeiro e seus peões e agregados passaram a se basear principalmente
na propriedade da terra e, no caso do agregado, em ceder um pedaço de terra para
que este possuísse sua pequena roça, além de algumas cabeças de gado, muitas
delas dadas “de presente” pelo fazendeiro. Por outro lado, tanto o agregado
quanto o peão possuíam certo poder em relação ao fazendeiro, ou seja, ocorria,
como foi visto, um espaço para a negociação entre estes, uma vez que era cada
vez mais difícil contar com agregados e peões trabalhadores e leais, ainda mais
com uma região de fronteira em expansão relativamente próxima, como eram as
matas ao oeste e norte em Curitibanos, que vislumbravam a estes uma oportunidade
de se embrenhar na mata e construir um rancho e uma pequena roça, criando seus
animais soltos na floresta.
Apesar disso, observa Machado (2004, p. 99-100), que
diferentemente da Inglaterra do século XVIII, onde Thompson (2002) observa um
processo paulatino de redução da dependência da população plebéia em relação a
gentry, principalmente a partir de
1760, “quando se identifica uma crescente
mobilidade, indisciplina e falta de controle sobre a ‘vida inteira’ dos
trabalhadores”, na região do
Planalto Catarinense, observa-se a perda da autonomia desta população e sua
crescente submissão frente ao poder dos coronéis e grandes fazendeiros.
No caso da apropriação de grandes extensões de terras para o
estabelecimento das fazendas pastoris, não se deve considerar apenas o fator
natural, cuja baixa fertilidade do solo, a pequena reprodução bovina, somada a
técnicas rudimentares de manejo, implicavam em uma necessidade de grandes áreas
de pasto, que poderiam compreender também os faxinais e as florestas que eram
postas ao chão. Segundo Machado (2004, p. 78) devem ser vistas através das
condições sociais, históricas e políticas, assim como em relação
ao padrão senhorial da ocupação vigente naquele período, no qual a
grande fazenda representa a possibilidade de acúmulo de riquezas, do exercício e
afirmação do poder político sobre a vizinhança e a comunidade local e, muitas
vezes, sua projeção regional.
O aumento da subordinação da população cabocla, da mesma maneira
que a apropriação das terras por novos grupos econômicos que passaram a atuar no
planalto, sobretudo as empresas colonizadoras e madeireiras, é visto pela
população cabocla, como um momento de ruptura, que desestruturou seu modo de
vida e diversos níveis ou formas de organização, como o uso e acesso a terra e
hábitos e costumes em que dominava o coletivo.
Se antes a terra, de modo semelhante ao que ocorreu no município
de Conceição do Araguaia na década de 1960, analisada por Otávio Ianni (1981, p.
154), “parecia larga, farta, sem fim, de
súbito ganha outra fisionomia social. Ganha outra dimensão histórica”. Antes
era a “ocupação, a posse, a morada, a
roça, a criação, o conhecimento no lugar, a vizinhança” que garantia a sua
posse. Essa, a partir de então, se veria gradualmente abalada na região,
alterando o que Marli Auras (2001, p. 43) denomina de “gênero de vida costumeiro”. A
transformação da terra em mercadoria, a redução dos espaços que poderiam ser
usufruídos em comum e a expropriação de muitos daqueles moradores, enquanto
outros passam a uma cada vez maior sujeição ao poder dos coronéis, foi
experimentada, também como uma expropriação dos direitos de uso
costumeiro.
No caso do uso em comum de campos, matas e faxinais na criação de
animais, o processo de apropriação não significou o seu término. O uso comum
permanecia tanto entre pequenos sitiantes independentes quanto em relação aos
agregados – muitos ex-posseiros – e mesmo entre grandes fazendeiros, que criavam
seus animais à solta. O costume de pagar os agregados com animais persistia, e
nas regiões mais a oeste do Planalto, onde os campos ocorriam em menores
dimensões, era possivelmente o porco o animal que servia como pagamento aos
agregados e peões, sendo então criados soltos. Altino Bueno da Silva (2005)
expõe a respeito de alguns porcos que recebeu e que teria que vender, quando
trabalhava na Fazenda Taquara Verde, situada no atual município de Caçador:
[...] me deu uma leitoa [...] Já tinha uma porção de porco. Daí
disseram: vamos pegar esses porcos seus, levamos para engordar, daí vendemos,
daí disseram: o dinheiro é teu, desses porcos. Agora você vende? Eu vendo, mas
você tem que me pagar um pouco de fazer o
negócio.
No planalto norte, a situação em relação ao uso comum da terra,
especificamente na extração de erva-mate, era diferente em relação à maior parte
da porção central e oeste. As apropriações, conseguidas por meio de diversos
expedientes, dentre eles a grilagem e a concessão de terras aos coronéis por
parte do governo, tanto do Paraná quanto de Santa Catarina, tornavam cada vez
mais freqüentes as expulsões de posseiros, tratados como intrusos, que acabavam
partindo para novas terras ou se sujeitando a novas condições de trabalho na
fazenda. Se o uso comum quanto à criação permanecia, a despeito do aumento da
perda de autonomia e submissão perante o poder dos grandes fazendeiros e
coronéis, reduzia-se a possibilidade da coleta em comum da erva-mate em terras
devolutas nos ervais nativos. Em relação a isso QUEIROZ (1981, p. 64) comenta
que “a coleta do mate vinha tendendo a
fazer-se cada vez mais e freqüente em terras de propriedade privada, deixaram de
existir na área vastos espaços em branco à espera de ocupante”.
Os próprios proprietários de terras, se no início permitiam a
coleta do mate por parte de seus peões e agregados passaram, a partir da
valorização do produto, a coibi-la. As terras onde se realizavam as atividades
ervateiras tornaram-se alvo da apropriação privada, sendo que, segundo argumenta
o autor acima referido, as propriedades dos coronéis, abrangiam “quase todos os ervais conhecidos”. A
importância que o mate passa a ter para a economia catarinense leva o Estado a
proceder ao arrendamento daquelas terras ainda não inseridas no processo de
apropriação, levando assim a concessões de ervais nativos a particulares,
conforme definido na Lei Estadual nº 700, de 27 de outubro de 1906, que dá “providência sobre a herva matte” (SANTA
CATARINA, 1906).
Após o conflito do Contestado a situação piora ainda mais para a
população cabocla, já que, no geral, tanto desconheciam os dispositivos de
regularização da terra quanto não possuíam recursos para fazê-los. Além do que,
“na maior parte das vezes nem sentiam a
necessidade de assim proceder”, pois viviam em suas terras de maneira
semelhante a que viviam seus pais e avós, onde a posse seria garantida por um
direito costumeiro, onde aquelas eram as terras de “tal família, ou de tal sujeito”
(MACHADO, 2004, p. 140). Como argumenta Nazareno José de Campos (2002, p. 129),
essas populações possuíam “a certeza que
aquelas terras lhes pertencem, não como uma propriedade privada nos moldes como
é concebida modernamente, mas como um direito de usufruto que o tempo e a
tradição lhes proporcionaram, constantemente resistindo quando sentem-se
ameaçadas”.
A maior parte dessas terras continuou sendo apropriada por grupos
econômicos, fazendeiros e políticos locais, cujas florestas passaram a ser alvo
da colonização e exploração madeireira, sendo vendidas aos migrantes de origem
européia provenientes principalmente das áreas coloniais do Rio Grande do Sul.
Em algumas regiões, é apenas a partir das décadas de 1930 e 1940, com o avanço
da exploração madeireira e da colonização, que as transformações, com diferenças
espaciais, sociais e econômicas em relação ao final do século XIX, se fariam
sentir. No caso de Santa Catarina, é bastante percebido no rápido e marcante
processo de colonização por migrantes vindos do Rio Grande do Sul, através das
Companhias Colonizadoras, substanciados pelo Instituto de Terras e Colonização
(ITC) do estado de Santa Catarina.
Assim, pela dificuldade do acesso a terra, o costume de se criar
animais à solta de modo comum em áreas abertas, embora ainda permanecesse em
algumas áreas, situações ou contextos específicos, gradativamente desaparecem. A
consolidação da colonização, principalmente na faixa de terras em disputa entre
o Paraná e Santa Catarina, envolvendo o Vale do Rio do Peixe e Oeste, fez com
que aquele espaço fosse bastante alterado tanto pela ação das diversas
indústrias madeireiras quanto pela ação dos colonos para a produção de lavouras.
Esses, diferentemente dos antigos moradores, produziam com intuito da
comercialização, cercando e reduzindo os espaços de criação dos animais.
A inserção de novos elementos, com diferentes concepções de vida,
de visões de mundo, de temporalidades e espacialidades, passa a coexistir em um
mesmo espaço, com incompatíveis formas de apropriação e uso do mesmo, torna-se
marcante no processo de desagregação de costumeiras práticas de uso da terra da
população cabocla. Como foi o caso da criação de porcos, que passou a ter sua
circulação restrita pela formação de lavouras e florestas devastadas, passando
finalmente a ser criado fechado, em encerras, ao modo praticado pelos
colonos.
Considerações finais
Sebastião Pires (2005), antigo morador da região de Fraiburgo
dizia que na região “tinha bastante porco
ali, e hoje não se vê um porco aqui na região [...]. A gente vê aí hoje, não
pode ter uma galinha, não pode ter um porco, então a gente se sente um pouco
desajeitado, o interesse da gente é criar”. Ele expressa o sentimento de
muitos dos antigos moradores caboclos frente ao processo de inserção de novos
empreendimentos econômicos, resultando na redução e gradual extinção de práticas
costumeiras, onde muitos, como no caso da sua própria família, sofreram também
expropriação de suas terras.
A expropriação de diversas famílias caboclas, juntamente com a
colonização e devastação da floresta, desarticulou as práticas espaciais,
firmada pelo sentimento de pertencimento ao lugar, expressa em sua sociabilidade
e o uso da terra e de seus recursos. Cada vez mais foi imposta uma imobilidade,
confinando e concentrando essa população em áreas acidentadas, de pouco valor
econômico, caso conseguissem permanecer em parte de suas antigas terras, ou nas
periferias das vilas e cidades que passaram a surgir com o desenvolvimento dos
núcleos coloniais e serrarias, em muitos casos trabalhando como assalariados nas
serrarias que exploravam pinheirais que foram posses de suas famílias. Fato
relatado por Pedro Felisbino (2006), agricultor da localidade de Taquaruçu, nas
terras compreendidas entre Fraiburgo e Frei Rogério, um dos epicentros do
movimento do Contestado, para quem a situação atual da população cabocla está
relacionada à perda, tanto do lugar, quanto das suas práticas sociais e
espaciais:
[...] eles faziam a roça em rachão, era tudo em comum. Para saber quem
era o porco [...] faziam sinal na orelha. O boi eles marcavam. Na roça plantavam
repolho, milho para canjica. O porco orelhão, sem marca, não tinha dono poderia
pegar. O porco assinalado era de cada um. Pelo sinal da orelha eles sabiam de
quem era o porco. [...] O gado era marcado, cada um tinha o seu cincerro, era
bem mais natural, tanto que o caboclo não se acostumou com a nossa vivência,
acho que nós roubamos a liberdade deles. Hoje eles estão na favela e nós tomamos
o espaço deles.
Cabe
salientar que em muitos espaços do país, diferentes formas de uso comum da terra
continuam a ocorrer, tendo ainda aumentado a visibilidade de diversas populações
tradicionais, haja vista a maior visibilidade jurídica, política, social e mesmo
econômica a elas relacionadas, a exemplo do que é percebido em relação aos
faxinais no Paraná, fundos de pastos na Bahia e formas de uso da terra por povos
da floresta em diferentes espaços da Amazônia. Mas essa maior visibilidade atual
não exprime em termos de uma maior possibilidade de acesso a terra, inclusive
terras e bens de uso comum, além do que, os organismos institucionais, quando
procedem a concessão ou demarcação não o fazem respeitando o direito costumeiro
o qual tais populações estão acostumadas, mas dentro do direito formal positivo,
o que, muitas vezes, ajuda ainda mais à sua desagregação.
Fontes de pesquisa
Fontes orais
FELISBINO, Pedro Aleixo. 61 anos. Fraiburgo, depoimento em 07 de
janeiro de 2006. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do
autor.
LEITE, José Lindolfo Cordeiro. 64 anos. Fraiburgo, depoimento em 2
de outubro de 2005. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do
autor.
LARA SOBRINHO, Miguel. 77 anos. Fraiburgo, depoimento em 27 de
setembro de 2004. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do
autor.
MONTEIRO, Valdomiro de Souza. 70 anos. Fraiburgo, depoimento em
abril de 2005. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do
autor.
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A Brazil Railway se
apoderou de uma enorme faixa de terras concedidas como pagamento pela construção
da ferrovia, concluída em 1910, que seria destinada à colonização e exploração
madeireira. A instalação da ferrovia intensificou na região do Vale do Rio do
Peixe e arredores a passagem da terra em mercadoria, tendo conforme Rosângela
Lunardelli Cavallazzi (2003, p. 69) “como
companheira a generalização da propriedade legal em detrimento da ocupação ou
posse”.
O coronelismo surge da criação da Guarda Nacional, em 1831, que
originalmente servia para a defesa da Constituição e a manutenção da ordem local
e regional, policiando e prevenindo revoltas. Existia nesta instituição, uma
hierarquia semelhante as instituições militares, onde os postos mais elevados
eram os coronéis, seguidos pelos majores, capitães e outras patentes inferiores.
Refletia, segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz (1989, p. 156), “no escalonamento de seus postos, a estrutura
sócio-econômica das diversas regiões”.