CAMPESINATO, TURISMO E EXCLUSÃO SOCIAL
Vilma Terezinha de Araújo Lima
Resumo
Guaramiranga
é uma das cidades de maior altitude do Estado do Ceará com 865,24m.
Numa
temperatura média que varia entre a mínima de 17°C e a máxima de 220C. A
paisagem serrana se destaca pelo verde abundante, em contraste com as áreas
semi-áridas do seu entorno. Nas duas últimas décadas, percebe-se a
refuncionalização do município; enquanto na década de 70 tinha como referência a
produção de café, hoje aparece como principal destino turístico do Estado em
área serrana. A “invenção” de eventos como festival de Jazz & Blues,
festival de vinho, festival de foundue, entre
outros
apoiados pelo poder público, têm contribuído para atrair um maior número
de
visitantes
e aumentando a especulação imobiliária, transformando o modo de vida
da
população
local.
Abstract
Guaramiranga
is one of the bigger cities on the State of Ceará with absolute
elevation
865,24
m, the average temperature varies between the minim of 17°C and the maximum of
22°C. The mountain range landscape distinguished for the abundant green, in
contrast with the half-barren areas around that landscape. In the last two
decades, it was perceived the advance of the city, in the 70th decade the
reference was the production of coffee, today this area appears as main tourist
destination. The events “created” as Jazz & Blues festival, wine festival,
foundue festival among others, supported for the Government has contributed to
attract a bigger number of tourist, valuing the property and changing the life
of the local population.
CAMPESINATO, TURISMO E EXCLUSÃO
SOCIAL
Entre os que - cidadãos, intelectuais, certamente historiadores ou
sociólogos – passam por uma de nossas aldeias, descobrem a sua fisionomia
original ou indeterminada e assustam-se com a sua monotonia ou admiram o seu
“pitoresco” quantos sabem que ela não se reduz a uma confusa mescla acidental de
homens, de animais e de coisas e que seu exame revela uma organização complexa,
uma “estrutura”? (LEFEBVRE; 1981: 144)
A crescente globalização do capitalismo forçou a construção de uma
cultura mundializada, mas que não realizou a homogeneização dos modos de vida e
suas manifestações, ao contrário, alimentou a contradição e a complementaridade
entre os mesmos.
As diferentes formas de dominação, de apropriação dos bens
materiais e simbólicos, aprofundaram desigualdades sociais entre grupos e
nações, ao mesmo tempo que se multiplicaram as necessidades. Novos espaços de
negociação se abriram entre as classes sociais e grupos, entre sociedade civil e
Estado, novas formas de exclusão se constituíram. Identidades e alteridades
passaram a desenhar cenários sociais oferecendo resistências diversificadas ao
modelo uniforme de desenvolvimento.
Essas mudanças ocorridas nas relações entre os camponeses e a
sociedade, o Estado ou mesmo o mercado, alteram suas relações com a terra. Os
conteúdos étnicos, a preservação ambiental, o novo espaço dos assentamentos,
exigem redefinir os laços com a terra, uma nova territorialidade. Inspira também
um novo pertencimento, onde ser camponês não é apenas “estar dentro” de um
projeto ou movimento, mas se voltar para fora. Conquistar novos espaços para se
representarem como parte diferenciada da sociedade no sentido de oposição
complementar.
Na unidade de produção camponesa, a dinâmica do processo de
trabalho e a organização da produção dependem não só das pressões externas, da
sociedade mais ampla, como dos arranjos internos que é capaz de promover. O
camponês não se vê sozinho com sua família, mas sempre se orienta dentro de uma
rede de relações de parentesco, de vizinhança, de territorialidade e alianças
políticas, que o permite definir-se enquanto grupo. Faz parte de um universo de
valores que o inscreve como classe específica dentro de uma ordem social mais
ampla.
A expansão de uma economia de mercado, incluindo os bens
apropriados pelo turismo, como a cultura e a natureza, estabeleceu uma
hierarquia social de acesso aos bens, levando um grande número de comunidades à
situação de privação, que passou a ser ditada pela apropriação privada dos bens
- gerando escassez a um grande número da população rural do
país.
O município de Guaramiranga e o
turismo
Guaramiranga localiza-se na Macrorregião Norte-Cearense, mais
precisamente na Microrregião de Baturité, a 4º15’48” de latitude sul e
38o55’59” longitude oeste de Greenwich. Tem uma área de
95,00km2, é uma das cidades de maior altitude do estado do Ceará com
865m. A temperatura
média varia entre a mínima de 17°C e a máxima de 220C. A população,
conforme censo do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de 2000
era de 5.712 habitantes, sendo 2.331 residentes na área urbana (40,8%) e 3.381
na área rural (59,2%), com uma densidade demográfica de 60,12
hab/km2. (IBGE, 2000).
Nas duas últimas décadas ocorreram mudanças significativas no
município de Guaramiranga; pois a região de Baturité da qual faz parte,
historicamente era concebida como importante fornecedora de frutas e legumes
para a capital; cana-de-açúcar (transformada em rapadura) para os
“sertões” e café para exportação. A partir da década de 1970, houve uma
estagnação na economia com a decadência do café, os problemas ambientais
intensificados e a nítida exaustão dos solos.
Mesmo sem ter valor de mercado as marcas deixadas pelo domínio do
café são evidentes na paisagem e nas lembranças dos mais velhos.
Arrancaram
quase todo o café, foi muito triste, era uma coisa que gerava renda uma vez por
ano, mas agente já tinha certeza que tinha como se manter. A primeira apanha que
era apanha de cima aí depois passava a apanhar o que caia no chão era um bom
dinheirinho. Hoje poucas pessoas ainda trabalham com o café. (agricultora e artesã -
Pé de Ladeira).
Assim, no final da década de 80, empresários locais, que viam suas terras improdutivas e alguns moradores
ambientalistas, formaram um grupo que reivindicavam a criação da Área de
Proteção Ambiental de Baturité, que foi instituída através do Decreto Estadual
N0 20.956 de 18 de setembro de 1990.
No entanto, as taxas de crescimento da região de Baturité se
apresentavam praticamente inalteradas. As terras improdutivas, foram colocadas à
venda e compradas por investidores que usavam a serra para lazer, descanso e
tratamento de saúde.
A atividade turística paulatinamente foi sendo implementada como
uma alternativa encontrada pelos empresários e governantes na esfera local e
estadual para buscar o crescimento econômico e o desenvolvimento
territorial.
A paisagem serrana se destaca pelo verde abundante, em contraste
com as áreas semi-áridas do seu entorno. Assim, características naturais,
temperaturas amenas, presença de cachoeiras, belas paisagens e o fato de possuir
a maior oferta de leitos da região contribuem de forma significativa para que o
município tenha sido escolhido como sendo uma das áreas de lazer, pelas classes
média e alta de Fortaleza.
Nas últimas décadas, diversos festivais e mostras culturais têm se
apresentado nos palcos de Guaramiranga, sendo os principais: Festival de Jazz e
Blues, Festival de Fondue, Festival de Gastronomia, Festival de Vinhos, entre
outros apoiados pelo poder público. Eles têm contribuído para atrair um maior
número de visitantes, aumentando a especulação imobiliária.
Os que compraram a
terra para lazer, passam a usufruir da área preservada – o que contribui para a
agregação de valor à sua propriedade –, enquanto a população local fica impedida
do acesso à terra, uma vez que se insere nesse processo apenas como mão-de-obra
necessária para o funcionamento da atividade ou ainda utilizando-se da
infra-estrutura implantada para viabilizar a expansão do turismo local, mas é
claro que o desenvolvimento territorial não atinge a toda sociedade local de uma
maneira benéfica e justa, assim, poucos são realmente beneficiados enquanto a
maioria é incluída marginalmente nesse processo. Dessa forma Martins(2002,p.21)
enfatiza:
A exclusão moderna é um problema social porque abrange a todos: a
uns porque os priva do básico para viver com dignidade, como cidadãos; a outros
porque lhes impõe o terror da incerteza quanto ao próprio destino e ao destino
dos filhos e dos próximos. A verdadeira exclusão está na desumanização própria
da sociedade contemporânea, que ou nos torna panfletários na mentalidade ou nos
torna indiferentes em relação aos seus indícios visíveis no sorriso pálido dos
que não tem um teto, não têm trabalho e, sobretudo, não têm esperança.
A maior parte dos visitantes de Guaramiranga vem da capital do
estado Fortaleza, cidade com aproximadamente dois milhões e meio de habitantes e
que enfrenta muitos problemas sociais com alto índice de desigualdade social.
Dessa forma as mudanças ocorridas no município nem sempre são percebidas pelos
visitantes que buscam no local o lazer.
Com o turismo a área foi valorizada, os sítios se transformaram em
área de lazer, dispensando os antigos moradores. Sem muitas alternativas de
sobrevivência e diante das ofertas tentadoras os moradores acabam vendendo suas
terras. Como mostra a fala a seguir:
Tá
ficando dum jeito que se eu quiser vender minha casa eu vendo e vou comprar uma
casa muito boa em Fortaleza, mas aí nós vamos vender nossa dignidade. Aqui é
desse jeito, se eu vender minha casa nunca mais eu vou ter o gosto de voltar pra
cá, porque a especulação imobiliária é muito grande. Já ofereceram R$ 250.000,00
na minha casa de 35m por 15m. Os que já saíram daqui morrem de vontade de
voltar, mas como? Se sair é pra nunca mais voltar. (Aposentada e comerciante no
centro de artesanato)
O município com
aproximadamente seis mil habitantes tem apenas um distrito, Pernambuquinho e
várias localidades, a maioria formada por grupos familiares que trabalhavam na
colheita do café os que não conseguem comprar a moradia migram para a capital.
Para Andrade (1995, p. 10), ao mesmo tempo em que o urbano se expande no meio
rural, este se estende também na periferia das cidades, passando a formar
grandes arruados, conjunto de casebres para pessoas de baixa renda, em áreas em
que subsistem algumas atividades agrícolas, beneficiadas com a proximidade do
mercado urbano. Como
exemplifica uma das entrevistadas:
Esse é
um sistema de expulsão indireta do homem do campo. Tem colônias de
Guaramiranguenses no Edson Queirós, no Barroso, na Messejana
eram agricultores e foram prá lá. Dá dó, quando vejo pessoas que foram criadas direto em contato com a
natureza produzindo pra sobreviver. Quando chego em Fortaleza e vejo aquele povo
que não pode mais sentar nas calçadas, as portas com cadeado isso me dói demais.
Quando vejo meus irmãos e meus filhos que gostariam de estar aqui. A nossa
situação é muito dolorosa a historia do nosso povo é muito dolorosa. (Aposentada, comerciante no centro de
artesanato).
Percebe-se, então, que a imagem do município que está se
construindo a partir do foco do turismo e dos interesses da especulação
imobiliária se torna superficial e com muitas contradições. A fala a seguir
esclarece que:
Isso aqui é bom de
acordo com sua criatividade com sua intuição que ai você transforma aquilo que
poderia ser ruim, como é o meu caso né. Muitas pessoas desistiram de lutar aqui
porque viram que o turismo pra eles não é uma saída porque eles foram pessoas
que se firmaram na agricultura e quando a atividade passou a ser turismo eles
ficaram desnorteado sem saber encontrar outros caminhos pra seguir. Quem só
sabia trabalhar com horta com roçado ficou perdido. Agora aqui é uma APA não
pode desmatar. Pra mim eu acho que foi bom porque comecei mexer com retalho
comecei fazer aproveitamento de fruta fazendo poupa, xarope, doce, café
ecológico tudo isso eu sei fazer. (Aposentada e comerciante no centro de
artesanato)
A comunidade Linha da Serra: os que vêm de fora
A Linha da Serra é na
verdade a cimeira da serra
com uma altitude média de 900 m, nesse local ocorre a
separação entre as áreas mais elevadas como é o caso do Pico Alto com 1.114m de
altitude e as mais baixas em direção ao Sertão. Localizada a 12 km da sede fica
no
limite entre o platô úmido e a vertente ocidental, apresentando uma excelente
vista dos sertões de Canindé/Caridade. Sem dúvida esta é a
localidade que mais recebe influências do turismo, grandes modificações
ocorreram principalmente após a década de 1990, a construção de pousadas,
restaurantes e casas de veraneios.
A especulação imobiliária é bem visível, com a grande procura de
terrenos por aqueles que se encantam com o lugar. Inclusive, muitos moradores
são convencidos a venderem sua única moradia. O número de casas de veranistas
aumentou, e vários terrenos estão a venda. As placas de venda indicam que o
projeto já foi aprovado sendo uma facilidade para o comprador construir, já que
a SEMACE exige licença ambiental. (Foto 1).

Foto 1. Terrenos a
venda com projeto aprovado. Foto da autora/ jul. 08
Mas a fala de um morador revela a dificuldade para construir uma
nova casa no local, já que é exigida uma licença
ambiental.
Teve uma coisa que mudou muito foi esse negócio de construção.
Pelo menos se eu fosse construir hoje talvez não desse nem certo. A SEMACE dar
em cima demais. Pros ricos é fácil e pra nós é difícil. É que eles não liberam
pra gente construir uma casinha, é
caro, tem que pagar, ai quem não tem condição de pagar fica difícil construir, o
dinheiro que era pra comprar material tem que passar pra eles (SEMACE) tem que
pagar. (morador da Linha da Serra, 07.2008)
Recentemente, foi
inaugurada uma pousada com diárias acima de cem reais. Possui um restaurante
mirante privilegiando a paisagem. Funciona nos finais de semana, férias e
feriados. Apesar do turismo está sendo desenvolvido em uma área com fortes
traços rurais não é desenvolvido atividade ligada ao turismo rural. Assim fica
claro que o turismo local depende da conservação da paisagem. Foto
2.

Foto 2. Pousada e restaurante na Linha da Serra. Foto da autora/
fev. 08
As visitas a área identificam que nem todos conseguem sobreviver
do turismo, esse setor exige investimento com melhorias de infra-estrutura e
mão-de-obra qualificada. Na área, ainda existe um expressivo grupo de famílias
que sempre viveu da agricultura e atualmente enfrentam
dificuldades.
A paisagem apreciada pelos visitantes, nos mirantes, nada mais é
do que o local de trabalho daqueles que vivem da agricultura e que percorrem um
longo caminho diariamente. São longas caminhadas ladeira abaixo para cuidar do
roçado, quase sempre em terra alheia. No final da tarde, após o dia de trabalho,
enfrentando o calor do sertão, retornam para suas casas ladeira acima, para no
outro dia o trabalho se repetir. (Fotos 3 e 4).


Foto 3: Mirante do restaurante Tramonto.
Foto 4: Vista do Sertão - Quebradas
A comunidade Linha da Serra: o trabalho e
terra.
Para a população local formada por pequenos comerciantes e
agricultores algumas melhorias foram observadas em relação a infra-estrutura,
como a construção de um posto de saúde, uma escola, água encanada, casas
populares construídas pela associação de moradores, melhoria das estradas. No
entanto, inexiste saneamento básico, não dispõe de transporte público, apenas um
ônibus escolar faz o transporte dos alunos do Ensino Médio para a Sede. Os que
não têm transporte próprio resta o serviço de mototaxi, os usuários em Julho de
2008, pagavam 10,00 reais para ir até a sede de Guaramiranga. Já os novos
moradores e visitantes usam transporte particular. Além da vila que já se forma
no local várias casas estão em áreas com declives acentuados. Os antigos
moradores construíam a entrada do lado oposto da paisagem já as novas
construções preferem dar destaque a paisagem. Foto 5 e
6.
Foto 5. Casa de agricultor
Foto 6. Casa de veraneio.
Fotos da autora/
agosto de 2008
Geralmente as
famílias trabalham em terras arrendadas, a aproximadamente, duas horas de
caminhada em direção ao sertão. Martins (2002, p. 61-62) comenta os tipos de
arrendamento:
O
arrendamento pode ser feito mediante pagamento da renda em trabalho ou uma segunda modalidade de renda é a renda em espécie paga
diretamente com uma parte da produção do camponês. Ele tem mais liberdade do que
o camponês que paga renda em trabalho porque pode usar a parcela de terra como
se fosse sua enquanto durar o arrendamento. No Brasil, o arrendamento em espécie
se concretiza basicamente na figura do parceiro, aquele que paga o aluguel da
terra entregando ao proprietário uma parte de sua
produção.
A partir da criação da APA de Baturité as terras acima de 600m de
altitude aumentaram as restrições quanto ao seu uso. Os roçados tradicionais com
a limpa e queima do terreno não podem ser realizados na área que abrange essa
unidade de conservação. E mesmo no entorno é necessário tirar licença ambiental.
Carneiro (1996, p. 99) esclarece que:
Surge uma nova hierarquia de valores em que a agricultura, como
forma de uso social da terra, é colocada no degrau mais inferior. Se, de um
lado, os agricultores mais velhos, acuados pela expansão do turismo e pelo
avanço da mata, se ressentem ao verem diminuídas as condições para a realização
de sua identidade social, de outro, percebem que não há alternativas para seus
filhos a não ser que também se engajarem em atividades fora do setor agrícola.
Dessa
forma os que dependem da terra para tirar o seu sustento com a prática da
agricultura procuram terras mais distantes nas áreas fora da área preservada,
nas “quebradas” como é de costume
chamar. Essa
denominação não existe nos mapas oficiais mas si encontra presente na memória de
todos que lá trabalham e se deslocam diariamente. No período de plantio alguns
agricultores preferem ficar acampados em barracas cobertas apenas com folhas,
fazem as refeições e alguns dormem com a família.
Nas quebradas é bom, tem barraca, agente faz comida pros
trabalhador, eu gosto mais de lá, se eu pudesse nem via aqui. Eu só acho mais
ruim pra subir eu subo bem devagar. (Agricultora, 70
anos)
A produção da
agricultura local apesar de envolver várias famílias é pequena muitas vezes
insuficiente para o consumo familiar anual, com poucos recursos. Wanderley
(2001,p. 33) esclarece: A agricultura camponesa é, em geral, pequena; dispõe de
poucos recursos e tem restrições para potencializar suas forças produtivas;
porém, ela não é camponesa porque é pequena, isto é, não é a sua dimensão que
determina sua natureza, e, sim, suas relações internas e externas.
O conhecimento camponês é um patrimônio transmitido a partir da
experiência vivida, através do qual essas famílias conseguem sobreviver
retirando da terra seu sustento, aproveitando os recursos disponíveis. Segundo
Ellen Woortman, a herança
cultural, é adquirida desde cedo
pelos filhos quando acompanhavam seus pais na roça. Em seu livro: O Trabalho da
Terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa, a autora esclarece:
A transmissão do saber para o trabalho faz-se no próprio trabalho
– pois o saber é um saber-fazer, parte da hierarquia familiar – subordinado ao
chefe da família, via de regra o pai. Se é este quem governa o trabalho, como
dizem os sitiantes, ele é também quem governa o fazer-aprender. A transmissão do
saber é mais do que transmissão de técnicas: ela envolve valores, construção de
papéis, etc. (WOORTMANN, 1997,p.11)
Atualmente essa prática está ameaçada de extinção seja pela falta
de terra para plantar, seja pelas leis ambientais ou ainda a falta de incentivos
governamentais. Assim, Wanderley (2001, p.29) comenta:
Para enfrentar o presente e preparar o futuro, o agricultor
camponês recorre ao passado, que lhe permite construir um saber tradicional,
transmissível aos filhos, e justificar as decisões referentes à alocação dos
recursos, especialmente do trabalho familiar, bem como à maneira como deverá
diferir no tempo o consumo da família. O campesinato tem, pois, uma cultura
própria, que se refere a uma tradição, inspiradora, entre outras, das regras de
parentesco, de herança e das formas de vida local, etc.
Os moradores locais não costumam cercar os quintais, o que
facilita o acesso entre as casas. No entanto, comentam que o turista ao comprar
a terra logo constrói muros, dificultando a passagem dos que moram lá, quebrando
a sociabilidade existente. Nesse sentido Para MARTINS
(1993,p.63)
Não se trata de introduzir nada na vida dessas populações, mas de
tirar-lhes o que tem de vital para sua sobrevivência, não só econômica: terras e
territórios, meios e condições de existência material, social, cultural e
política. È como se elas não existissem ou, existindo, não tivessem direito ao
reconhecimento da sua humanidade.
Uma das famílias visitadas, em fevereiro de 2007, composta de um
casal e duas filhas, relatou que, além de contar com R$ 94,00 (noventa e quatro
reais) de Bolsa Escola, vive da agricultura de subsistência. Mas como na área
serrana esta prática é proibida por Lei, eles deslocam-se diariamente para o
sertão nos períodos de preparo da terra, plantio, capina e colheita. Em
fevereiro de 2008, já haviam realizado o primeiro plantio, mas com a estiagem já
haviam perdido tudo. Deram entrada no seguro safra, mas por morarem em área serrana, com umidade superior ao sertão semi-árido,
não foram contemplados.
Como estratégia de sobrevivência, alguns moradores criam animais
como cabra, porco e galhinha, para ajudar na dieta alimentar – animais muitas
vezes conseguidos através com pequenos empréstimos bancários – em torno de R$
1.500,00 (Mil e quinhentos reais), pagos em duas prestações
anuais.
Fiz um
empréstimo de R$ 1.500,00 e comprei a cabra por R$ 550,00 isso aí é uma pedra de
ouro é uma mina de ouro, pra quem tem criança, eu não compro leite. A minha
cabra só não da mais leite porque a comida é pouca, é criada preza e agente não
pode comprar ração (agricultora da Linha da Serra, fev. 2007)
A rotina do agricultor começa antes do amanhecer, nas tarefas
domésticas. As sete horas da manhã
após um café com bolacha estão pronto para ir para o roçado fazer a colheita
antes do sol esquentar. Numa segunda-feira Agosto de 2008, acompanhei um grupo
de agricultores que iam colher fava em um roçado próximo uns 40 minutos de caminhada. O percurso foi
feito em estreitos caminhos de terra, ora descendo ora subido. O roçado tinha
sido plantado pelo Sr. (nome) e sua esposa (nome), com milho, feijão e fava os
dois primeiros já haviam sido colhidos. Para o agricultor esse ano deu pouco
porque demorou a chover e a primeira planta foi perdida e ao plantar a segunda
vez já não se desenvolve como se fosse a primeira, o tempo de chuva não foi
suficiente. Como nesse período o sol é muito quente a fava já começa abrir dando
sinal que está na hora de ser colhida. A terra plantada foi emprestada por um
amigo que também participou da colheita, ainda tinha um segundo convidado,
aposentado morava sozinho já não faz mais roçado, mas não deixa de participar de
uma colheita com os amigos além de garantir o alimento de boa qualidade também é
uma distração.
Minha profissão mesmo é agricultor, agora não planto mais roçado
os meus filhos são tudo casado e eu sozinho não dá. E hoje em dia o serviço da
roça só é vantagem a pessoa plantar pro consumo, pra fazer gasto pra vender e
tirar a despesa não compensa não. (agricultor
aposentado)
Apesar da dificuldade em colher a fava já que o terreno era bem
íngreme e com muitas rochas, as dez horas os sacos e baldes já estavam cheios e
o sol já começava a esquentar, um dos convidados comenta: isso aqui da meidia
pra tarde não é qualquer um que aguenta não, aqui o sol treme e a fava começa a estalar,
aí tem que ir embora mesmo.
O dono do plantio concordou que era melhor subir, pois o que
tinham colhido já era suficiente para garantir o almoço da semana. Os convidados
com os sacos cheios de fava mostravam satisfação pois o que tinham colhido lhes
pertencia. Quando todo o alimento for colhido a terra é devolvida ao
proprietário e servirá de pasto para seus animais. (Foto 7 e
8)


Foto 7. Caminho da roça
Foto 8. Colheita da fava
Quando chegam em casa é hora da debulha, mais uma vez a
participação da família e amigos. Para o agricultor esse momento é de alegria já
que tem fartura de alimento, mesmo que sendo momentâneo pois sabe que não é
suficiente para a alimentação da família o ano todo, mesmo assim os que
participaram da colheita recebem a fava.
A fava dá pouco, o cabra vai apanhando e vai comendo, no fim não
dá um saco. Uma pessoa que não dá valor plantar e quiser pra comer, eu não tenho
pena de dar não. (agricultor, dono da roça visitada, Agosto de
2008)

Foto 9. Debulha da
fava.
08.2008
A manutenção das famílias produtoras durante o período seco
(localmente chamado de verão embora não corresponda a estação climática) depende
quase exclusivamente do que for colhido depois da estação chuvosa (localmente
chamado de inverno) assim, a boa ou má safra depende diretamente do período de
iníco, fim e quantidade de chuvas. Se o agricultor plantar nas primeiras chuvas
e em seguida ocorrer uma estiagem, a primeira planta é perdida então é
necessário plantar novamente sendo que a segunda planta não costuma dar uma boa
produção como a primeira como enfatiza um agricultor na roça de um
amigo:
o milho dele não deu muito bom não, já tô vendo que não deu porque
a primeira planta dele foi perdida pela metade. Colhe a primeira planta, aí a
segunda não dá de jeito nenhum como a primeira. (Agricultor Linha da Serra
em
04.08.2008)
A fala do agricultor revela a importância do trabalho autônomo que
a agricultura proporciona, enquanto os que trabalham empregado não tem liberdade
com seus horários.
Sô mais viver a minha vida trabalhando pra mim no mato de roçado
de que eu viver trabalhando de empregado,
porque quem trabalha empregado não tem uma folga. No dia que tô enfadado
não vou trabalhar, no dia que não quero não vou. Mas trabalho direto, não gosto
de ficar parado não. Já fui morador dos outros, hoje tá melhor porque tenho
minha casinha…A terra era da minha mãe aí o projeto São José ajudou a construir
a casa. (agricultor e artesão, Linha da Serra, julho de
2008)
Considerações Finais
Em Guaramiranga ainda percebe-se um imenso abismo entre o lugar
que o turista visita (área preservada com riqueza natural, cachoeiras, paisagens
exuberantes, trilhas ecológicas, diversidade de artesanato, restaurantes com
cardápios variados) e aquele vivido pelos moradores dos sítios e povoados. Para
esses a natureza, é a principal fonte de renda e matéria-prima para a sua
sobrevivência, através do artesanato e de pequenos cultivos agrícolas.
A paisagem apreciada pelos visitantes, nos mirantes, nada mais é
do que o local de trabalho daqueles que tem na agricultura seu único saber,
quase sempre a única herança deixada pelos pais. Diariamente percorrem longas
caminhadas ladeira abaixo para cuidar do roçado, quase sempre em terra alheia.
No final da tarde, após o dia de trabalho, enfrentando o calor do sertão,
retornam para suas casas ladeira acima, para no outro dia tudo se repetir.
Como a realidade turística já faz parte do calendário do
município, cabe ao poder público incentivar outras atividades, pois o turismo
não pode ser a principal fonte de desenvolvimento do Município, já que a cidade
é visitada apenas nos finais de semana, período de férias, feriados e festivais.
Durante a semana os que trabalham no ramo ficam ociosos e a cidade fica
praticamente parada, bares, restaurantes e algumas pousadas fecham e como a
maioria dos funcionários não têm carteira assinada não recebem pelos dias que
não trabalham, a maior movimentação é nos serviços públicos.
Os primeiros resultados desse estudo mostram que a maioria da
população local tem baixo nível de renda. As modificações ocorridas nas últimas
décadas em pouco contribuíram para a melhoria da qualidade de vida da população.
Pois, se de um lado foram beneficiados com estradas, moradias, trabalhos
informais, por outro foram impedidos do acesso a terra tanto no que diz respeito
ao poder de compra como a terra de trabalho. Assim, o estudo pretende contribuir
divulgando e colocando em debate essas contradições que vêm aumentando nas
localidades do município principalmente com o incentivo público que aposta na
“indústria do turismo” como principal atividade para o
desenvolvimento.
È necessário que o poder público ao pensar em desenvolvimento
passe a contar com essas pessoas que fazem parte da história do lugar e que dê
condições para os que não tiveram e provavelmente não vão ter oportunidades de
aprender uma nova profissão e dependem da atividade agrícola para sua
sobrevivência. Quando estas pessoas são convencidas a deixarem o lugar onde
exercem uma profissão adquirida durante uma vida toda de experiência com acertos
e erros, dificilmente terão essa mesma oportunidade nas periferias dos grandes
centros para onde a maioria migra, contribuindo para o grande aumento dos
problemas sociais.
Referências
Andrade, A. C.
& Vieira, M. L. (2006). Crescimento populacional e modificações na paisagem
e na qualidade de vida dos moradores de um centro receptor de turistas. In:
Geografia: ações e reflexões. Gerardi, L. H. O; Carvalho, P. F. (Org.) Rio
Claro:Unesp/IGCE: AGETEO.
ANDRADE, Manuel Correia de. Geografia rural: questões
teórico-metodológicas e técnicas. Boletim de Geografia Teórética, vol. 25,
n0 49-50, 1995.
Araújo, V. T.
(2008). Natureza e Cultura: Bens de Negócio, Bens de Sobrevivência. Revista Ateliê Geográfico, Goiânia-GO
v. 2, n. 3 maio/ p.103-118.
Carneiro, M. J. (2003) Agricultura, Meio Ambiente e
Turismo: desafios para uma agricultura multifuncional (Nova Friburgo, RJ) in:
Para além da produção: Multifuncionalidade e AgriculturaFamiliar. Carneiro, M.
J.: Maluf, R. S. (Org). Rio de Janeiro:
MAUAD.
LEFEBVRE, Henri. Problemas de Sociologia Rural. In:
Introdução Crítica a Sociologia Rural. (Org.) MARTINS, José de Souza. São Paulo:
Hucitec: 1981.
MARTINS, José de Souza. A chegada do estranho.
Editora HUCITEC. São Paulo, 1993.
_____. (2002). A sociedade vista do abismo: novos
estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Petrópolis, RJ:
Vozes.
WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Raízes
históricas do campesinato brasileiro. In. TEDESCO, João Carlos (Org.)
Agricultura familiar: realidades e perspectivas. Passo Fundo: UPE,
2001.
WOORTMANN, Ellen F. O Trabalho da Terra: a lógica e a
simbólica da lavoura camponesa. Brasília. Editora da Universidade de Brasília,
1997.
SEMACE- Superintendência Estadual do Meio Ambiente, órgão ambiental que
administra a APA de Baturité.
O
arrendatário dá ao proprietário um certo número de dias de trabalho nos cultivos
do proprietário.
O Seguro
safra é um programa instituído pelas Leis n° 10.420/10.700, tomando como
base o efeito cíclico da seca no semi-árido, e com o objetivo de oferecer uma
renda mínima aos agricultores de base familiar, que porventura venham a ter
prejuízos de 50% ou mais de suas lavouras prejudicadas pela
estiagem.