NORDESTE BRASILEIRO: RAZÃO E SENSIBILIDADE
Carla Torres Cavalcanti do Nascimento
Este trabalho se inscreve num campo reflexivo de problematização
da construção do Brasil enquanto Nação, num processo de rupturas que levou a
constituição de uma Questão Regional Nordeste enquanto questão de caráter
nacional. O paradigma industrial de desenvolvimento, um Estado empreendedor e
planificador, a decadência das oligarquias agrárias do Nordeste, a agudização do
quadro de desigualdades intra e inter-regioanais e o fortalecimento do movimento
social das Ligas Camponesas são algumas características da Questão Regional
Nordeste. No plano cultural, o movimento cultural do Cinema Novo, que se
organizou em oposição ao esquema industrial da produção cinematográfica
desenvolvida em São Paulo nos primeiros anos da
década de 50 (RAMOS, 1996), e que propunha a superação da dependência brasileira
em relação à produção dita “imperialista”, através da produção nacional de baixo
custo e de caráter alternativo, imprimindo uma transformação de conteúdo na arte
do cinema, que o fizesse mais comprometido com o quadro social do
país
Nesta época, como em qualquer época,
imagens/idéias em torno do que seria Nordeste/nordestino foram construídas. É
nosso objetivo estudar dois discursos que tomaram parte na construção dos
Nordestes e nordestinos no Brasil: 1) o semanário Novos Rumos, realizado pelo Partido
Comunista Brasileiro a partir de 1959, e 2) o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, dirigido
em 1963 por Glauber Rocha, no âmbito do Cinema Novo. Tanto
o discurso jornalístico, como o discurso cinematográfico acima citados fizeram
parte de um processo de embates e rupturas, que acabaram por acionar o
regionalismo no qual Nordeste se constituiu numa questão de Estado, ou seja, uma
questão nacional, assumida como objeto de discursos específicos, que estavam
imersos em interesses diversos, entre eles os relacionados à questão
agrária. Ambos os discursos
são territorializantes, produtores de diferentes “identidade/territorialidades
Nordeste/nordestinos”, apesar de não deixarem de assumir como pressuposto um
espaço já recortado e inventado ao longo dos tempos. São discursos que
“nordestam”, ou seja, constroem Nordestes
e nordestinos a partir de práticas sociais que os inventam, moldam e
sustentam - práticas sociais que assumem diversos caráteres - econômico,
político, cultural. Segundo Albuquerque, A imagem Nordeste seria uma construção
iniciada em tempos anteriores e que não pretende esgotar-se numa idéia
definitiva:
O Nordeste é, em grande medida, filho das secas; produto
imagético-discursivo de toda uma série de imagens e textos, produzidos a
respeito deste fenômeno, desde que a grande seca de 1877 veio colocá-la como o
problema mais importante desta área (ALBUQUERQUE, 1999:68).
Neste
trabalho, o
cinema é compreendido como linguagem audiovisual singular, que transcende o
caráter instrumental e de simples meio de representação, sendo uma atividade de
criação e expressão de idéias e, como tal, constitui-se enquanto campo
analítico, propositivo e enunciativo, tanto quanto o são as produções
literárias, jornalísticas e científicas.
Também o que se entende por identidade e território aqui, se
localiza no tempo e no espaço, não são conceitos representacionais, mas
“simulacros discursivos, na medida em que se entende que essa positivação
epistemológica – nem essencialista, nem idealista – coloca em destaque o papel
do sujeito no campo do embate das formulações sobre o mundo (ARAUJO, 2005:5)”. A
todo território, então, corresponde uma territorialidade, ou seja, um
referencial simbólico que não existe na forma concreta e é fruto de processos
constantes de territorialização, em
relação com os demais objetos no mundo. Este trabalho, portanto, defende a
desnaturalização dos processos de construção do Nordeste enquanto região, e
também do sentido atribuído ao nordestino, propondo a problematização de sua
invenção no campo discursivo.
Não pretendemos encontrar o sentido de um “Nordeste real”, muito
menos verificar a correspondência entre representação e realidade, mas
investigar, em meio a luta pelo poder que se dava naquele período histórico,
quais Nordeste/nordestinos se encontravam e se enfrentavam naquela época. Deus e o Diabo na Terra do Sol é visto
em dialogismo com o jornal Novos
Rumos, e nos chama a atenção para elementos que não são da ordem do
racionalismo planificador e racional sobre o cenário político-social da
época.
Manoéis, Sebastiões, Satanás e os rumos...
Em Deus e o Diabo
na Terra do Sol, Manoel é um vaqueiro
como outro qualquer, um sertanejo que tem a vida simples, marcada pelo trabalho
junto à terra, também cuidando das cabeças de gado de seu patrão. Rosa, sua
esposa, trabalha nos afazeres da casa, junto à mãe de Manoel. Este casal vive
sob as formas mais arcaicas de vida, ilhados na imensidão do sertão, por uma
vegetação seca e rasteira, sob um céu estourado de luz e calor. Comem a farinha
com as mãos, sentados no chão do casebre onde vivem, e tudo o que possuem é um
equipamento rústico de moer macaxeira, o que parece ser seu único sustento.

Ao discutir com o coronel para quem trabalhava, pois este não lhe queria
pagar o combinado, Manoel o mata, a raivosos golpes de facão. A cena de
enfrentamento entre um camponês e um patrão, entre um trabalhador rural
humilhado e um coronel arrogante, dono de vacas, terras e gente, é o ponto de
partida ao conhecimento de um universo desigual, místico, desequilibrado,
violento, fantástico e revolucionário que é o Nordeste DDTS.
O vaqueiro fugitivo abandona sua casa com a mulher, em busca da salvação
de suas vidas. Desamparado e cego pela angústia e desejo de mudança, Manoel se
entrega, de corpo e alma, primeiramente, ao misticismo religioso, representado
na personagem do beato Sebastião, o “deus negro”, que promete um mundo melhor
aos camponeses, um lugar onde o “leite sairá das pedras”. O vaqueiro é tomado
por diversos momentos de transe e delírio, em que pratica o auto flagelo,
penitências, e até mesmo o sacrifício de um bebê, em meio a um surto de fé
religiosa que invade seu corpo e sua mente, convicto que estava em sua utopia,
de busca pela salvação. Dizia o beato Sebastião aos seus
fiéis:
Do outro lado deste
monte santo, existe uma terra onde tudo é verde. Os cavalo comendo as flor e os
menino bebendo as água na beira do rio. Os homens comem o pó feito de terra, e
poeira vira farinha. Tem água e comida, tem a fartura do céu...
[...] As tropas do Governo
perseguiram os inocentes, com suas balas da injustiça. É preciso mostrar aos
donos da terra o poder e a força do santo.
A personagem Antônio das Mortes é um matador de aluguel contratado
pela Igreja e políticos locais para assassinar o beato Sebastião e todos os seus
seguidores, por ameaçarem a ordem local. Quando chega a Monte Santo, encontra o
beato já morto, mas executa o restante do serviço, poupando a vida apenas de
Rosa e Manoel. Desiludido com a experiência religiosa, Manoel se junta ao
pequeno grupo de Corisco - cangaceiro sobrevivente do ataque em que morrera seu
parceiro, Lampião - e é batizado com o nome de Satanás. Dizia Corisco: “É o gigante da
maldade comendo o povo para engordar o Governo da República. Mas São Jorge me
emprestou a lança dele pra matar o gigante da maldade. Aqui o meu fuzil pra não
deixar pobre morrer de fome”. Satanás passa a viver junto com este grupo e,
ainda motivado por um violento desejo de transformação, começa a tomar parte em
roubos e assassinatos.

Manoel junto ao beato Sebastião
Com o cangaceiro Corisco, agora como Satanás
DDTS abriga uma carga política forte e,
de maneira ambígua, exteriorizada sob a forma de profecias apocalípticas
religiosas e rompantes de violência extrema, constrói Manuel/Satanás, o
nordestino submetido, não só às dificuldades naturais do meio ambiente, mas
também ao chicote do coronel e tudo o que está por trás, ou ao lado disso,
minando suas esperanças de, algum dia, conseguir comprar um pedaço de terra e
sobreviver dignamente. Nordeste é, antes de mais nada, um caldeirão explosivo,
lugar de conflito entre coronéis e Manoéis. Se bem o filme constrói um Nordeste
atrasado e pobre, de pés descalços sobre a terra rachada, não o faz sem dar nome
aos donos do boi, da terra e das vidas naquele lugar, atribuindo a todos os seus
personagens místicos um senso crítico. Novos Rumos chega à mesma construção do
Nordeste árido e pobre, lugar de seca e escassez, de miséria e, até certo nível,
de desinformação. No entanto, este Nordeste NR que também é fruto de relações
arcaicas de vida e do atraso do latifúndio, é espaço de revolução, rumo à
reforma agrária e à industrialização.

Novos
Rumos - matéria de
20/5/1960. “A miséria e as condições de vida no Nordeste levam milhares e
milhares de habitantes da região ao desespero. A fome e a dor rondam o lar do
sertanejo: a morte está sempre presente”.

Novos
Rumos –
20/1/1959.
O Nordestino NR não é apenas o
vaqueiro do semi-árido, é também o operário da cidade e o agricultor assalariado
da faixa úmida. Enquanto a transformação do nordestino DDTS se dá pelo processo da
sua experiência com as místicas contradições de “Deus” e do “Diabo” (que nesta
película não necessariamente representam bem e mal), num processo desorientado
de fé e sofrimento, o nordestino NR é
um coletivo que, dentro da visão marxista, inicia o processo de transição de
classe em si à classe para si, através da revolução legal e organizada
principalmente sob a forma das Ligas Camponesas e das coligações heterogêneas.
Não há dúvidas de que este processo é praticamente liderado pelas teses
marxistas e pelo Partido Comunista Brasileiro – o PCB. O Nordestino NR é um coletivo
materializado nas Ligas, enquanto o nordestino DDTS é salvação e justiça
urgentes, pela cruz ou pelo punhal, numa transformação em que o elemento
irracional da fé parece ser indispensável. Ele transborda força e fé por aquilo
que acredita, explode em violência e amor, junto a Deus e ao Diabo.

Matéria de 07/10/1960 – “A marcha dos
camponeses”
O Nordeste NR vai de encontro
ao DDTS, pois enxerga esse Nordeste DDTS como espaço de
irracionalidade, desordem e ilegalidade, onde as tradições religiosas e a
violência do banditismo parecem materializações de um lado passional e
irracional, em boa parte responsável por todo o atraso de uma nação, e que
parecem não fazer parte do paradigma do desenvolvimento industrial da época,
propagado desde os tempo de Getúlio. DDTS, por sua vez, “protesta” sobre este
novo paradigma da racionalidade, na medida em que constrói um Nordeste lugar de
conflito político exteriorizado na radicalidade da crise, da fé e da violência,
lugar em que as dimensões do messianismo e do cangaceirismo são praticamente
necessárias à transformação do homem como ser irracional e crente, radicalidade
esta expressa numa câmera na mão, em planos longos e elípticos e num quadro
estourado em luz.
A inspiração na literatura de cordel está presente nos textos que
introduzem cenas cruciais da narrativa em DDTS, como por exemplo quando Manoel
abandona sua casa para seguir o beato, ou quando ele se junta ao grupo de
cangaceiros, em nova tentativa de ver sua vida mudar: “Mas a história continua,
/ preste mais atenção: / andou Manoel e Rosa/ nas vereda do sertão,/ até que um
dia,/ pelo sim, pelo não,/ entrou na vida deles/ Corisco, diabo de Lampião”.
Apontando para a esperança e para o despertar de uma nova ação, a voz em off do cantador tem, acima de tudo a
função de fazer deste filme uma grande fábula, que vai nos contar uma história
de sofrimento, provação e sacrifício. O cantador recita os versos que são
musicados por ritmos do sertão, o que nos sugere a imagem de um Nordeste
tradição: “Procurando pelo sertão/ todo mês de fevereiro/ o dragão da maldade/
contra o santo guerreiro./ Procura Antônio das Mortes!”.
Sob os “olhos” do semanário Novos
Rumos, tradição, passionalidade, irracionalidade, são elementos que fazem
parte de um jeito de ser e encarar o Nordeste/Brasil/mundo de forma equivocada e
ultrapassada. Esse Nordeste tradicional precisa ser superado e modernizar-se,
também através da intervenção estatal, ou verá sua condição desafortunada piorar
ainda mais.

Trecho retirado da coluna “Nota Econômica”-
10/04/1059
DDTS, no entanto, se utiliza da tradição, do canto/música e cordel
sertanejos, mas não o faz por completo. São exemplos de transgressão ao estilo
da literatura de cordel a ausência de um final feliz em DDTS e o tratamento dado às idéias de
bem e mal, que, no filme, não assumem características bem definidas como nos
tradicionais cordéis. Tanto a música, quanto os versos aparecem nos momentos de
transgressão do protagonista ou de uma guinada na história.
O discurso DDTS tematiza, sobretudo, a
revolução/transformação neste território. “Como nas fábulas ou nas narrativas
míticas, os personagens de DDTS
representam entidades, ou melhor, representam forças em permanente confronto”
(NEMER, 1997: 137).
Considerado um dos ápices do
filme, um plano seqüência mostra Corisco e os cabras saqueando a casa do coronel
Calazans, onde acontecia um casamento. O clima é de total loucura, os cabras
destroem a casa e se fartam de bolo e bebida, enquanto Rosa veste-se com uma
grinalda, Corisco violenta a noiva e Satanás (Manoel) perambula pela casa
segurando um crucifixo, até que é ordenado a castrar o noivo.

Invasão à casa do Coronel Calazans
A cena, que termina com Corisco destruindo um piano a golpes de rifle,
recebe a música de Vila Lobos e é emblemática da linguagem poética e, muitas
vezes, surrealista, desta película, que aciona um inconsciente coletivo
desorientado, em estado de crise e delírio, totalmente entregue às mais diversas
manifestações instintivas e emocionais. Enquanto o NR organiza assembléias gerais e
articulações sociais heterogêneas, DDTS
explode em desabafo urgente, banhado a sonho e extrema
violência.
Manoel de DDTS
desconhece as assembléias das Ligas Camponesas e quer apenas um pedaço de terra
pra construir uma casa e plantar seu sustento. Está longe de ser um sujeito
equilibrado e planejado enquanto membro de um coletivo politicamente organizado.
No entanto, cada guinada em sua vida é precedida por forte questionamento sobre
o status quo. Ele questiona primeiro
se a Lei serve apenas para beneficiar o coronel. Depois, se pergunta se é certo
lavar a alma dos homens com o sangue dos inocentes e, por fim, manifesta sua
opinião a Corisco: Só se pode fazer justiça no derramamento de sangue?”. É um
camponês rude e inocente, mas observador e questionador.
Não é a toa que, DDTS
encerra sua história em aberto, após o fim dos líderes rebeldes Sebastião e
Corisco, com a imagem dos nordestinos
DDTS correndo desesperadamente pelo imenso sertão. Eles correm não se sabe
pra onde... Logo adiante, Rosa cai no chão, e Manoel simplesmente segue
correndo. Manoel corre pra onde? Para as fábricas da cidade? Para São Paulo ou
Rio de Janeiro? Para as assembléias das Ligas? Não se sabe, só sabemos que ele
corre de forma incansável. A câmera nos deixa ver o que há por perto: uma
imensidão de águas em movimentos vigorosos, o mar. Diz a canção ao
final:
O sertão vai virar mar/ O mar virar sertão!/ Ta contada a minha
história, Verdade e imaginação./ Espero que o sinhô/ tenha tirado uma lição: /
que assim mal dividido/ esse mundo anda errado,/ que a terra é do homem, / não é
de Deus nem do diabo.
Eis um final que pode representar a grande esperança do discurso
Novos Rumos, na regeneração do camponês Manoel. Quem sabe Manoel não caminha
para as Ligas e descobre a força do homem na organização deste movimento que o
espera?

Referências
Bibliográficas
ALBUQUERQUE, Junior Durval Muniz. A Invenção do
Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Editora Massangana; São Paulo: Cortez,
1999.
ARAUJO, F. G. B. e outros (2007). Para ‘compreender’ o discurso: uma
proposição metodológica de inspiração bakhtiniana. Mimeo. GPMC/IPPUR/UFRJ.
Trabalho apresentado na Sessão Livre “Epistemologias e Metodologias para o
Discurso Território”, realizada durante o XII Encontro Nacional da ANPUR,
acontecido em Belém (PA), 2007.
JULIÃO, Francisco. Que são as Ligas Camponesas? Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
NEMER, Silvia. Glauber Rocha e a Literatura de Cordel: uma
relação intertextual. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa,
2007.
OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE,
nordeste, planejamento e conflitos de classes. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1981.
PCB: vinte anos de política – 1958/1979. A questão Social no Brasil. Livraria
Editora Ciências Humanas: São Paulo, 1980.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a
FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
VIANY, Alex. O
Processo do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Aeroplano,
1999.
BENTES, Ivana. Terra de Fome e Sonho: o paraíso material de
Glauber Rocha, 2008. retirado da internet em 01/10/2008, disponível em:
http://www.bocc.ubi.pt/pag/bentes-ivana-glauber-rocha.html.
Filmografia
Deus
e o Diabo na Terra do Sol
(Glauber Rocha, 1963).