A EstÉTICA DO FRIO E O TEMPLADISMO:
representações da paisagem platina através
da música popular
Lucas MANASSI PANITZ
Graduando em Geografia. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul
RESUMO
O presente artigo propõe uma discussão das representações da
paisagem através da música popular platina. Para tanto, foram escolhidos dois
compositores platinos e seus respectivos universos músicais: o brasileiro Vítor
Ramil e sua “Estética do frio”e o uruguaio Daniel Drexler com seu Templadismo.
A importância destes compositores diz respeito à reivindicação que fazem da
ligação de sua produção musical com as paisagens contidas no espaço platino. Abordo
as perspectivas teóricas em espaço e cultura, inseridos no âmbito da geografia
humanista e cultural renovada e da geografia das representações, que dão conta
da interpretação que faço sobre das canções e dos universos musicais de tais
compositores. Esses dois universos musicais – a “Estética do
frio” de Ramil e o Templadismo de Daniel Drexler – apontam
para uma representação do espaço platino através da paisagem, que atua como
definidora de uma identidade regional do Prata. Como argumentos conclusivos
chamo a atenção à importância das manifestações artísticas para a compreensão
da representação das paisagens humanas, bem como aponto alguns caminhos de
estudos futuros envolvendo música popular platina, paisagem, território e
identidade.
ABSTRACT
In this paper I discuss the representations on landscape through Platino
popular music. In order to do so, two Platino composers and their music
repertoire were selected: a Brazilian, Vitor Ramil and his “cold
esthetics” and the uruguayan Daniel Drexler and his Templadismo. The
importance of these two composers is related to their claim for a connection
between their artistic production and the landscape that composes the Platino
space. The theoretical framework to be applied is based on the themes of culture
and space, within the scope of Cultural and Humanist Geography, as well as
Geography of Representations, mobilized to interpret the songs and the musical
universe of each of the composers. These two musical universes – Cold
Esthetics and Templadismo -, point to the Platino representation of the space
through landscape, which stands as a resource to define the Prata
regional identity. As a concluding argument, I point to the importance of the
artistic manifestations for a compreheension of human landscapes, then showing
the path to explore further connections on Platino popular music,
landscape, territory and identity.
PALAVRAS-CHAVE
Paisagem; representações; música
popular; cultura platina
Introdução
O Prata ou o espaço platino – entendido como
aquele que foi construído historicamente dentro de uma região que contempla, em
sua maior parte, o que hoje corresponde ao sul do Brasil, ao leste da Argentina
e à totalidade do Uruguai – é resultante de uma configuração
sócioespacial particular que engendra as culturas indígenas, negras,
ibéricas/européias e brasileiras. Esse espaço possui suas próprias
representações, que são tão diversas quanto são as culturas que o formam.
Contudo, não é o objetivo, por hora, caracterizar e situar cada uma dessas
culturas. Para entendê-las e situá-las, pelo menos em parte, primeiramente vou
partir das representações da paisagem contidas nesse espaço platino através da
música popular¹. Para tanto escolhi dois compositores: o brasileiro Vitor Ramil
e o uruguaio Daniel Drexler. Tais compositores reinvidicam uma produção musical
influenciada diretamente pelas paisagens contidas nesse espaço, através de seus
universos musicais particulares. Também realizam uma leitura da influência
climática sobre sua maneira de compor, estabelecem analogias entre as
paisagens, os regimes climáticos e os sentimentos que nascem da vivência nesse
espaço e os respectivos rebatimentos disso em suas obras artísticas². Uma forma
de problematizar este fenômeno é mediante um diálogo com as teorias da Geografia
que apontam para as representações sociais e para a fenomenologia. Tal
abordagem permite lidar de um lado com “sistemas de interpretação [que]
regem nossas relações com o mundo (...) orientam e organizam os comportamentos
e as comunicações sociais, interferem na definição de identidades pessoais e
sociais” (ALMEIDA, 2003, p.72); e de outro lado com “aquele mundo
de ambiguidades, comprometimentos e significados no qual estamos
inextricavelmente envolvidos em nossas vidas diárias, mas o qual tomamos por
muito certo” (RELPH, 1978, p.3). Nesse sentido, busquei as paisagens
contidas nas canções dos tais compositores, identifiquei seus universos
musicais e interpretei as representações das paisagens nesses artistas.
Importa, aqui, uma leitura das músicas e contextos musicais que apontem para
uma representação do espaço platino e discutir as potencialidades desse tipo de
abordagem dentro dos estudos culturais em Geografia, buscando “um mundo
que pode ser entendido geograficamente e, também, que o homem possa sentir e
conhecer a si como sendo ligado a Terra” (ibidem).
A partir
de estudos geográficos envolvendo música popular, indicados por Correia (2007)-
tais como os de Mesquita (1995, 1996) e de Haesbaert (2002) – e outros
como os de Mello (1991) e Evangelista (2005), foi possível reconhecer algumas
abordagens que buscaram “entender geograficamente” a música
popular. No presente caso procurou-se entender geograficamente essas
representações que são elaboradas a partir de seus universos musicais, que reivindicam
uma identidade platina na qual a paisagem é um dos componentes fundamentais
– e em algumas vezes considerada como determinante.
perspectivas teóricas
É entendido cada vez mais como
fundamental os estudos que buscam a dimensão cultural do espaço geográfico, por
sua característica em compreender as formas de perceber e representar o mundo
– que é realizada pela cultura. O geógrafo Roberto Lobato Correa (2007)
nesse sentido é enfático:
A literatura e a
música popular são expressões culturais e, como tais, têm uma dimensão
espacial. Nascem em determinados contextos espaço-temporais, difundem-se no
espaço e no tempo e, em muitos casos, abordam características sócio-espaciais.
São, assim, veículos através dos quais a “personalidade” dos
lugares e regiões, a identidade sócio-espacial, a experiência e o gosto pelos
lugares, as diferenças e semelhanças entre lugares e regiões, assim como o
desvelamento da organização sócio-espacial são explicitados em uma linguagem
não-científica.
É fundamental, portanto, as
considerações do geógrafo inglês Denis Cosgrove quando afirma que é estranho
para muitos geógrafos o estudo das paisagens humanas através de, por exemplo,
um filme, um romance, um poema. Assim, ao reduzirem suas análises às forças
demográficas e econômicas, deixam escapar muitos dos significados expressos nas
paisagens humanas. O autor sugere, então, como Correa, superar o uso exclusivo
de fontes documentais e cartográficas, buscando as evidências das paisagens nos
produtos culturais – como pinturas, poemas, romances, contos populares,
músicas, filmes e canções (COSGROVE, 1998, p.97). São importantes, também, as
considerações de Augustin Berque sobre paisagem-marca e paisagem-matriz.
Berque, afirma que a paisagem ao mesmo tempo que é marca, porque
expressa uma civilização – o produto material e imaterial desta –,
também é matriz, porque participa dos esquemas da percepção humana
(1998, p. 85). Afirma Berque (idem, p.87-88) que, em termos de trabalho
o papel do geógrafo, estudando as paisagens, é o de inventariar as formas da
epiderme terreste, percebidas numa escala humana. Portanto
ao contrário
da maioria das ciências sociais, a geografia cultural sempre levará
cuidadosamente em conta o material físico no qual cada cultura imprime a marca
que lhe é própria – marca que ela considerará como uma geo-grafia
em primeiro grau: a escrita da terra por uma sociedade. Essa marca, como vimos,
possui um sentido que implica toda uma cadeia de processos físicos, mentais e
sociais na qual a paisagem desempenha um papel perpétuo e simultâneo de marca
de e matriz.
Berque sugere, portanto, como um
dos procedimentos ao estudo das paisagens, o “inventário das
representações”, ou seja, como a paisagem é percebida, como é evocada
e idealizada sua relação com a natureza através da pintura, da literatura, de
jardins etc (idem, p.88). Considero neste trabalho, portanto, a paisagem
como marca e matriz – ao mesmo tempo em que é uma impressão de uma
sociedade no espaço, também é uma representação – que é gerada a partir
do espaço vivido, pois a paisagem não existe senão na medida em que ela é
experimentada, interpretada e organizada por uma sociedade (BERQUE apud
HAESBAERT, 2002, p.144).
Dardel considera a paisagem como
“um conjunto, uma convergência, um momento vivido. Há uma ligação
interna ... que une todos os elementos” (apud RELPH, 1978, p.14). Relph
explica que a ligação interna que une esses elementos da paisagem é a presença
do homem e o envolvimento nela – para isso recorre ao pintor Cézanne que
afirma: “A paisagem concebe-se em mim e eu sou sua consciência” (idem,
p.16). Interessante analisar tais proposições sob a ótica das representações .
Almeida nos alerta que “o olhar, o ato de contemplar a natureza não é uma
atidude natural. Pelo contrário, ele é resultante de uma instituição da cultura
que inventou essa contemplação e lhe deu uma significação e valor” (2003, p.71). A consciência que concebe a paisagem, portanto, não é
deslocada da história – é a consciência de um sujeito imerso e contextualizado
na cultura, concebendo a paisagem apartir dela. O estudo das representações
permite, assim, captar as formas de apreender o mundo e, por meio do
reconhecimento das representações das pessoas é possível “captar toda a
riqueza de valores que dão sentido aos lugares de vida dos homens e
mulheres” (ibidem). Em termos de paisagem, que é o caso tratado
aqui, abordar as representações se torna fundamental uma vez que elas informam
também “a base material na qual se move determinado grupo social” (idem,
p.72).
Identificar as representações
espaciais através arte é, portanto, reconhecer que ela – a arte –
possui “uma importante dimensão histórica de leitura do espaço
socialmente produzido e se traduz como um instrumento de percepção e reconhecimento
da realidade” (BARBOSA, 2000, p.69-70) e que ela é “um ato
essencial para a própria vida e um momento importante para a existência humana,
pois a arte significa um modo de entender e agir no mundo” (idem;
71). Uma contribuição da Geografia de inspiração fenomenológica é que não
estamos tratando de uma paisagem somente vista, mas de espaços vividos. Como afirma Tuan “uma pessoa que
simplesmente ‘vê’ é um espectador, um observador, alguém que não
está envolvido com a cena (...) um ser humano percebe o mundo simultaneamente
através de todos os seus sentidos” (1978, p.12). Estamos implicados no
espaço, portanto, como inexorável condição da existência humana e, captar a diversidade de olhares da arte sobre esse
espaço, que é o mundo, é trabalhar na esfera de uma variedade de concepções que
os seres humanos têm sobre como são e funcionam as coisas. (GEERTZ, 2006,
p.181). Trabalhando dessa forma acredito estarmos tratando a Geografia como uma
ciência social e como uma humanidade, tal como propõe Cosgrove.
Knigth (2003, p.39) afirma que os geografos
identificados com as correntes humanistas desejam saber como as pessoas, não
apenas pela ação imaginativa mas também através da fala vivenciada e da
composição musical, criam e re-criam seus mundos caleidoscópicos e multifacetados.
A música, portanto, pode ser considerada como elemento de estudo geográfico,
pois como afirma Bennet (2004, p.2) tanto como prática criativa quanto forma de
consumo a música apresenta – e representa – um importante
repertório de narrativas dos lugares, das maneiras de as pessoas se
relacionarem com o local. Ouvir música, é possível afirmar, é extremamente
ordinário e se realiza a qualquer momento e nos mais diversos espaços da vida
diária – ela perfaz tanto a trilha sonora dos filmes quanto a trilha sonora
de um viajante em um ônibus ou de transeunte que caminha pela cidade. O
cotidiano e os espaços, por seu turno, são ricos mananciais da materia da
poesia elaborada pela música. Para compreender isso bastaria o exemplo de
alguns versos da Ramilonga de Vitor Ramil ao cantar:
“Chove na
tarde fria de Porto Alegre/ Trago sozinho o verde do chimarrão / Olho o
cotidiano, sei que vou embora / Nunca mais, nunca mais (...) O tango dos
guarda-chuvas na Praça XV / Confere a elegância ao passo da multidão / Triste
lambe-lambe / Aquém, além do tempo / Nunca mais, nunca mais”.
Uma Geografia que dê conta das representações das
paisagens a partir da música deveria considerar, usando os termos da
historiadora Simone Luci Pereira,
uma legibilidade/audibilidade³ dos espaços (2005, p.156). Ler seus
manifestos fundadores; ler e ouvir as canções como uma paisagem representada;
compreender os contextos onde nascem tais representações; idenficar
pontos-chave dessas formas, entendendo seus discursos. Tais foram os passos
seguidos para este estudo. O presente trabalho é um esforço de compreensão das
representações das paisagens platinas contidas em dois compositores populares
de Brasil e Uruguai, respectivamente, que entendo estarem formando de ambos os
lados da fronteira considerações semelhantes: a busca de uma forma de
representação da paisagem platina, que é, em suas concepções, uma forma de
representar a identidade dos habitantes desse espaço.
A ESTÉTICA DO FRIO E o TEMPLADISMO
E me veio a imagem invernal de um gaúcho solitário
tomando seu chimarrão, a olhar a imensidão fria do pampa sob o céu cristalino
da manhã. Uma imagem de pura definição! Uma expressiva composição de poucos
elementos: a figura imóvel e bem delineada do gaúcho, o céu claro, o verde
regular e a linha reta do pampa no horizonte. E me vieram palavras como rigor,
precisão, concisão, sutileza. (...) Eu estava vislumbrando naquele pampa a
música que eu queria (...) Eu estava vislumbrando uma concepção naquele
universo “frio”. Uma concepção “fria”. Talvez o tempo me
estivesse fazendo transformar sentimentos em idéias.
(Vitor Ramil)
El Templadismo es una estética que se relaciona
con la geografia, con el lugar dónde el arte se origina, es una estética que
viene por el lado del equilibrio, del no exceso, la no estridencia, que no
plantea cosas demagógicas ni hace aseveraciones usando la voz lo menos imposta
y lo mas natural posible
(Daniel Drexler)
Vitor Ramil, compositor
brasileiro, publicou um ensaio no volume Nós, os gaúchos (FISCHER, 1993)
denominado “A estética do frio” onde realiza algumas reflexões da
sua própria criação musical e uma tentativa de sistematizar essas reflexões e
criar uma concepção fria da música brasileira, típica dos habitantes
gaúchos. Nos tempos em que estava radicado no Rio de Janeiro, acompanhava em
junho o noticiário nacional que mostrava imagens de festas populares na Bahia
em pleno clima tropical, ao lado de imagens do inverno gaúcho que mostrava a
geada, as temperaturas negativas e o cotidiano das pessoas naquele ambiente. Porém
Ramil afirma que essas imagens eram mostradas num tom de anormalidade, como se
estivessem descoladas da realidade do Brasil ou chegassem mesmo de outro
país. Concluiu, então, que de alguma maneira o frio simbolizava o gaúcho, e viu
nesse frio uma metáfora definidora desse habitante. Porém, conforme Ramil, se o
gaúcho é realmente diferente da concepção quente do Brasil, ainda
continua sendo irreversivelmente brasileiro e à diversidade cultural brasileira
também pertencia esse universo frio. Trazendo essa reflexão para dentro
de sua produção musical, pergunta-se “tenho diferenças que me distanciam
da comunhão tropical? É natural que eu atue com e a partir dessa tradição fria?
Sim! (...) Estou pensando em uma estética do frio” (RAMIL, 2007, p.265).
Então, buscando uma representação do gaúcho, lhe surgiram imagens frias:
o gaúcho tomando seu mate apreciando a imensidão do pampa, o verde dos campos
em contrates com o azul do céu, poucos elementos formando a paisagem, e lhe
vieram palavras como rigor, precisão, concisão etc –
todas elas relacionadas à um quadro limpo, com poucos elementos constitutivos,
mas significativa. Traçando um paralelo da música com a paisagem gaúcha, Ramil
enxerga na milonga um caminho para seguir sua concepção fria e ressalta
características desse estilo musical: “A milonga em tom menor, reflexiva,
densa, profunda e melancólica. Rigorosa em sua cadência, seu ponteio, seu
fraseado; sutil em seu movimento melódico sinuoso, oriental.” (idem,
p.268) A partir dessa concepção fria, Ramil traça caminhos para sua
produção de canções:
O ritmo
brasileiro, negro, dançante, tratado com certa dureza (o rigor do tango) e
preciosismo planejados. O ritmo como um raciocínio minucioso. Mas intuitivo.
(...) timbres percussivos incomuns (mas não muita variedade timbrística).
(...) O ritmo trazendo leveza. Limpeza. Uma analogia? Montanhas e morros do Rio
colocados aqui e ali, criteriosamente, na vastidão lisa do pampa (ibidem).
Do outro lado da fronteira
platina, os músicos uruguaios, irmãos, Jorge e Daniel Drexler, criam o termo Templadismo
– uma alusão ao Tropicalismo de Caetano, Gil e Mautner. Templadismo
poderia ser traduzido como Subtropicalismo, Temperalismo ou Temperália. De fato
no bojo dessa concepção, assim como na Estética do Frio, está uma característica
que acompanha o espaço vivido – o clima e suas estações bem definidas, a
presença de verões e primaveras, mas também de outonos e de invernos, e suas
respectivas imagens e sensações criadas – como a melancolia, por exemplo.
Segundo matéria no periódico argentino Diario Hoy (2006), Daniel Drexler afirma
que
Esa melancolía, dicen, está claramente asociada
al clima y al paisaje. El templadismo forma una especie de corriente musical
del sur latinoamericano, que se caracteriza por el no exceso, donde reinan
colores, sonidos y climas calmos. En esa corriente se puede incluir por ejemplo
a Kevin Johansen; o, por supuesto, a Jorge Drexler.
Daniel Drexler na mesma
entrevista explica então que a denominação templadismo
surgió de una de esas largas y frecuentes charlas
que tenemos con Jorge. Estábamos hablando sobre el tropicalismo, la
antropofagia y el libro ‘La estética del frío’ de Vitor Ramil y a
mí se me ocurrió un tanto en broma plantear un ‘tropicalismo de las
pampas’ de los climas templados. Y bueno, se me ocurrió la palabra
‘templadismo’. Creo que Jorge se lo tomó un poco más en serio que
yo y empezó a mencionarlo en entrevistas. Si tuviera que definir el templadismo
en pocas palabras, te diría que es una especie de marco teórico para la creación
(en mi caso de canciones) desde la cuenca del Río de la Plata (ibidem).
O músico se reconhece na
paisagem e nas suas características, se situa geograficamente na espaço platino
e vê como Ramil, uma possibilidade categorizadora e um marco para sua produção
artística. Reconhece também que a extensão dessa paisagem não é delimitada por
uma identidade nacional, mas sim por limites culturais regionais
no regirnos por fronteras políticas parece ser
otro denominador común. La distribución geográfica de la Milonga (por poner un
ejemplo que nos toca muy de cerca), se saltea las fronteras de Argentina,
Uruguay y el sur de Brasil. La cultura es un ser vivo y a las flores del campo
no les gustan las macetas. (ibidem).
As semelhanças entre tais
concepções transparecem em vários momentos. A milonga, por exemplo, ritmo
regional historicamente situado no espaço platino, possui tais características
apontadas pelos músicos – tom menor, reflexiva, ou seja, profundamente
conectada com sentimentos, distribuição geográfica que não se limita à
fronteiras nacionais. Outras analogias são tomadas por ambos: leveza,
melancolia, climas calmos, “sem muita variedade timbrística” ou no
excesso – são atribuições à paisagem e ao temário da milonga. Hà,
portanto, no discurso de ambos, uma condição naturalizante das características
compartilhadas entre a milonga e a paisagem platina: a pouca variedade
timbrística e limpeza simbolizando a vastidão do pampa, uma paisagem pastoril
de poucos elementos constitutivos etc.
As canções fRIAS e templadas
Fiz a milonga em sete cidades / Rigor,
Profundidade, Clareza / Em Concisão, Pureza, Leveza / e Melancolia / Milonga é
feita solta no tempo / Jamais milonga solta no espaço / Sete cidades frias são
sua morada (...)
Em Clareza o pampa infinito e exato me fez andar
/ Em Rigor eu me entreguei / Aos caminhos mais sutis / Em Profundidade minha
alma eu encontrei e eu me vi em mim(...)
Concisão tem pátios pequenos de onde o universo
eu vi / Em Pureza fui sonhar / Em Leveza o céu se abriu / Em Melancolia minha
alma me sorriu e eu me vi feliz(...)
(Milonga de Sete Cidades – Vitor Ramil)
Em Milonga de Sete Cidades (RAMIL,
1997b), Ramil apresenta, sob a forma de cidades a maneira do seu fazer musical:
Rigor, Profundidade, Clareza, Concisão, Pureza, Leveza e Melancolia –
como já houvera planejado na “Estética do frio”. As sete cidades de
Ramil aparecem como marcos de sua criação musical; o caminho percorrido pelas
cidades se aproxima ao próprio fazer musical que passa por uma série de filtros
por onde sua música toma a forma desejada. Ramil encontra um sentido na
paisagem fria, constrói metáforas frias para dentro de sua música
e usa a paisagem como afirmadora dessas metáforas. As cidades frias são as
cidades do pampa gaúcho que vão sendo percorridas e nas quais o artista vai
representando sob a forma de paisagens os adjetivos de suas milongas. Tal
paralelo entre paisagem, clima, e música parece um rico manancial de estudo
geográfico. De fato há um campo potencialmente interessante a ser explorado
pelas geografias interessadas nas percepções humanas. Como ocorre a associação
entre paisagens e climas à determinados sentimentos como a melancolia, a
leveza, a pureza etc?
Vou num carro são / Sigo essa frente fria / Pampa
adentro e através / Desde o que é Libres sigo livre / E me espalho sob o céu /
Que estende tanta luz / No campo verde à meus pés / O que vejo lá? Mata nativa
instiga o olho que só visa me levar / Sobe fumaça branca e a pupila se abre pra
avisar / Se há fumaça, há Farrapos por lá (...) Eu indo ao pampa / O Pampa
indo em mim // Quase ano 2000 / Mas derrepente avanço a 1838 / Eu digo avanço
porque é claro que os homens por ali / Estão pra lá dos homens do ano 2000 // E lá vamos nós /Seguindo a frente fria / Pampa a dentro e através /
Séculos XIX e XXI fundidos sob o céu / Que estende tanta luz / No campo rubro a
meus pés(...) Eu indo ao pampa / O Pampa
indo em mim
(Indo ao Pampa – Vitor Ramil)
Indo ao Pampa narra a
experiência de cruzar os campos do Rio Grande do Sul; Ramil nos oferece a
paisagem e a história que nela reside, reconstitui a história a seu modo,
descrevendo o espaço dos Farrapos – tropas gaúchas que se rebelaram
contra o poder central do Brasil em busca de independência, num confronto que
durou dez anos (1838-1848). Ramil avança ao passado pois entende como
louvável bravura de tais homens. A canção realiza um ponte entre passado,
presente e futuro (o disco foi publicado em 1997, portanto o ano 2000
ainda não havia chegado). Toda a canção está presa no Pampa; a paisagem é o
cenário da história onde os séculos se fundem – mas também o espaço
vivido do artista. “Eu indo ao Pampa, o Pampa indo em mim”: ele, o
observador-compositor, vai pela paisagem; a paisagem o marca e ele a leva consigo.
O pampa é percebido através dos poros da sensibilidade do artista e permanece
dentro dele, construindo referenciais simbólicos da paisagem que se fundem em
história e espaço vivido e que o irão influenciar nas esferas da percepção de
sua vida – o fazer sensível da música, as topofilias, a identificação de
uma paisagem como marco para uma experimentação da existência. Essa afirmativa
é corroborada por PEREIRA (2001), a qual analisa a produção de Ramil pela ótica
da fenomenologia de Gaston Bachelard. Conforme o filósofo francês, as imagens
criadas pela experimentação da casa – e então poderíamos estender assim
também para a paisagem, pois se trata de um espaço igualmente vivido –
caminham nos dois sentidos: estão em nós tanto quanto estamos nelas.
Cuando amanece despacio en Santa Lucia / reflejos
de la piel del rio sobre las pupilas / la agua volcándose al mar / la rueda
sobre el asfalto y el puente que queda trás / Vamos para Paysandu, para Salto y
Artigas / cruzando la pradera verde sobre las cuchillas / las almas no quieren
llorar / saliendo de gira por el Uruguay / Tengo la luz en los ojos / y em la
piel las espinas / los huecos de los que se van / la pradera vacia (...)
(Salón B - Daniel Drexler)
Nessa milonga, Drexler vai
descrevendo uma viagem de um giro de apresentações pelo norte do Uruguay e suas
paisagens vividas – o rio, o amanhecer, os campos, a proximidade da
fronteira. Os elementos musicais da canção reforçam seu caráter regional
– o violão de nylon e a gaita. Lembra ainda “los huecos de los que
se van” aludindo à migração uruguaia a países como Espanha, deixando
“la pradera vacia”. Drexler vai mapeando as cidades por onde
vai passando, representando em tom melancólico a impressão que tais
experiências vão lhe sugerindo, insistindo que “las almas no quieren
llorar saliendo de gira por el Uruguay”. De novo aqui é impossível
separar paisagens e o contexto em que ela é representada; o autor reconhece a pradera
vacía como um dado concreto, relativo à fenômenos como a imigração.
Carretera toda azul costera / contorneando el mar
del sur frontera / cielo extraña latitud / la estampa de una cruz va girando
sobre el aire / va girando sobre el aire / Fortalezantaresalseca / mil
naufragios desde el fondo ondean / tarareando sobre el aire / tarareando sobre
el aire / delirante tur / mar del Conosur
(Delirante Tour – Daniel
Drexler)
Delirante Tour (DREXLER. 1998), por sua vez
descreve as paisagens do Conesul, sobretudo a região costeira, a latitude, a
percepção do céu, os espaços históricos e naturais visitados, relacionando com
o fazer musical, a tour, a viagem para uma apresentação musical. Nessa
música igualmente evocam-se, através de uma leitura contemporânea os ritmos
regionais como o camdombe, e adicionam-se instrumentos percussivos usualmente
brasileiros, como o triangulo. Interessante notar como se mesclam noções de
paisagem e território nesta canção, onde as paisagens vão sendo representadas e
“amarradas” no contexto das fronteiras do Conesul – os países
mais meridionais da América do Sul, excetuando-se o Brasil.
CONSIDERAÇÕES
Buscou-se apresentar
algumas canções provindas de dois compositores que afirman o protagonismo das
paisagens em suas criações musicais; dois compositores comprometidos com a
difusão de uma cultura platina, própria dos habitantes desse espaço, e
diferenciada tanto do Brasil quanto do contexto latino-americano em geral.
Essas paisagens, representadas sob a forma de canções, informam determinadas
concepções de o que venha a ser o espaço platino e a cultura nela contida. A
forma para diferenciar a cultura platina contida nesse espaço é realizada
através da paisagem. As paisagens são, na opinião dos compositores, definidoras
do habitante platino – elas contribuem para suscitar sentimentos de
reflexividade, melancolia, leveza nesses habitantes. O diálogo entre a
fenomenologia e as representações sociais e espaciais abre um campo
interessante para o estudo da cultura platina, pois permite situar tanto os
sujeitos geradores das representações, situados em um contexto social, mas
também dotados de características particulares, subjetivas, relativas aos seus
próprios espaços vividos. Também permite reconhecer como são as repercussões
dessas representações nos individuos que as experimentam. Seria importante
nesse sentido, em termos metodológicos, um aprofundamento tanto nos artistas
como também nos ouvintes. Ao longo do estudo foram surgindo novos
questionamentos e outros temas de interesse geográfico foram sendo colocados
pelas canções. Temas que mesclam a história dos espaços, fenômenos de imigração,
questões relativas à fronteiras e à territórios nacionais e supranacionais
(como o caso do Conesul) – todos esses podem ser tratados sob a ótica da
fenomenologia e/ou das representações sociais e espaciais contidas na música e
podem contribuir sobremaneira para debates4 que prescindam de uma abordagem puramente
econômica ou política.
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NOTAS
¹ O termo popular carrega um
polissemia de difícil resolução rápida e simplificada. Canclini (2003; 207)
afirma que “o popular não é o mesmo quando é posto em cena pelos
folcloristas e antropólogos para os museus (...) pelos comunicólogos para os meios
massivos (...) e pelos sociólogos políticos para o Estado ou para os partidos e
movimentos de oposição. Em parte, a crise teórica atual na investigação do
popular deriva da atribuição indiscriminada dessa noção a sujeitos sociais
formados em processos diferentes”. Contudo, o sentido de música popular
aqui diz respeito àquela que realiza um diálogo entre expressões
regionais/folclóricas com elementos difundidos globalmente pela indústria
cultural. Assim, os dois autores tratados neste artigo também se inserem num
grupo que mantém produções semelhantes como os realizados por Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Chico Science, Fito Paez, Jamie Ross etc. São compositores que
colocaram em evidência suas influências locais (o baião, o samba, o maracatu, o
tango, a murga e o candombe) combinados com influências da indústria cultural
de massa (como o rock, o reggae, o jazz, a soul music etc.).
² Esse trabalho foi realizado ao
longo da disciplina de Geografia Cultural, ministrada pelo professor Dr. Álvaro
Luiz Heidrich, e revisto e ampliado posteriormente. Foi fundamental a
orientação do professor Heidrich na indicação de leituras bem como a orientação
dessa pesquisa. Buscaram-se, também, outros campos das humanidades que
contribuíssem para o tema, como a antropologia e a história.
³ Simone Lucia Pereira (2005)
trabalha em seu artigo com a legibilidade/audibilidade da cidade do Rio de
Janeiro através dos ouvintes de Bossa Nova, incluindo tanto os espaços
urbanizados como as paisagens naturais contidas na cidade. O estudo de
Pereira mostra como as canções podem construir/alterar/sugerir referenciais dos
espaços que nem sempre condizem com a realidade dos mesmos. Fundamental,
portanto, para Pereira, é a maneira como vão sendo tecidos imaginários sobre a
cidade do Rio de Janeiro através das representações contidas na Bossa Nova.
4. Está sendo desenvolvido pelo autor o trabalho de graduação denominado
“As representações do espaço platino através da música popular” sob
a orientação do professor. Dr. Álvaro Luiz Heidrich. O estudo tem como objetivo
mapear temas de interesse geográfico contidos nas representações do espaço
platino através da música popular, envolvendo temas como território, paisagem e
identidade. Inclui, além de Daniel Drexler e Vitor Ramil, outros músicos
platinos comtemporâneos que desenvolvem temáticas semelhantes na representação
dos espaços, como é o caso do argentino Kevin Johansen, os brasileiros Bebeto
Alves e Nei Lisboa e os uruguaios Fernando Cabrera, Jorge Drexler e Ana Prada.
Ponencia presentada en el Décimo Encuentro
Internacional Humboldt. Rosario, província de Santa Fe – Argentina. 13 al
17 de octubre de 2008.