A terra mercadoria e a urbanização: uma análise do
planejamento e da ocupação do solo no
Gama/DF
Dulciene da Costa Frazão
Resumo: Este artigo procura fazer uma reflexão a
respeito da ligação entre a transformação da terra em mercadoria e da
urbanização no Gama, Distrito Federal, tomando o planejamento e a ocupação do
solo dessa cidade como referência. A análise da terra enquanto mercadoria
relacionada à urbanização demonstra a necessidade de compreensão do processo de
valorização e de ocupação do solo urbano e suas consequências. Dessa forma, após
o estudo envolvendo a origem e a reprodução da sociedade brasileira, foi
constatado que o cenário urbano da atualidade é fruto de um processo político,
social e econômico iniciado juntamente com a urbanização. A situação de
iniquidade instiga uma desordem em praticamente todos os setores da sociedade,
evidenciada por greves, depredações e tensões em geral e no Gama, cidade
originada da segregação planejada de Brasília, o estado não poderia ser distinto
do descrito.
Abstract: This paper intend to do a reflection about
the relation among the transformation of land into a product and the
urbanization in Gama, Distrito Federal, getting urban planning and land
occupation at this city as reference. The analysis of land as a product in
relation of urbanization shows the necessity of understanding the value and
urban land occupation and its consequences. This way, after a study about the
origin and reproduction of brazilian society, it was realized that present urban
scenery is consequence of a political, social and economic process that begun
with the urbanization. The iniquity situation instigates a disorder in many
society sectors, evidenced by strikes, depredators and many other tenses and in
Gama, city originates of planning segregation of Brasilia, the case couldn’t be
different of this.
1.
Introdução
O estudo da terra enquanto mercadoria intrinsecamente ligada ao
processo de urbanização apresenta-se realizado por meio de uma investigação do
processo de valorização, que caracteriza o espaço urbano atual da cidade
satélite do Gama, periferia de Brasília.
A origem e a reprodução da sociedade brasileira, relevante para o
entendimento das questões urbanas, a história da gestão urbana no Brasil,
baseada nos planos de melhoramentos e embelezamento, e o processo de
periferização da metrópole são abordados de maneira a facilitar o entendimento
das transformações ocorridas desde que foi iniciada a urbanização, passando
pelas crises enfrentadas e chegando ao cenário urbano atual, repleto de
problemas e de planos inconsistentes e não
efetuados.
Desde o momento em que a população menos favorecida tentou ocupar
o centro, não só de Brasília como de várias cidades do Brasil e até do mundo,
foi expulsa para a periferia, segregada e privada de vários benefícios
praticamente monopolizados, iniciou-se uma corrida em busca de terra urbana. Os
abastados, como não poderia ser diferente, foram beneficiados.
Terras públicas urbanas, do Distrito Federal e do seu entorno no
Goiás, foram reduzidas a mercadorias e negociadas de forma completamente iníqua.
Os pobres, maioria da população no Distrito Federal, foram alocados longe do
centro, delineando um espaço urbano que denuncia a desigualdade com que se
debatem diuturnamente.
As cidades satélites do Distrito Federal são um retrato
irrefutável da valorização que levou à origem da sua segregação. Uma exploração
de terras na qual apenas uma das partes é favorecida, o que leva ao resultado de
um espaço urbano mal distribuído e caracterizado pelo caos. Essa situação de
iniquidade instiga uma desordem em praticamente todos os setores da sociedade,
evidenciada por greves, depredações e tensões em geral. Na região administrativa
do Gama, uma cidade pequena originada da segregação planejada do Distrito
Federal, o estado não é distinto do descrito.
Nessa perspectiva, o principal objetivo deste trabalho é
demonstrar como o processo de urbanização e ocupação do solo, responsável por
delinear o espaço urbano atual, originou, desenvolveu e aumentou o valor das
terras no Gama.
2.
Terra e
capital: primeiros passos da especulação urbana
Sposito (1998) fez uma análise de cidade remetendo-se do nomadismo
do paleolítico às aglomerações urbanas contemporâneas, passando pelas aldeias,
cidades na antigüidade, impérios e cidades na idade média. Mesmo com a falta de
habitação fixa, pôde-se perceber no Paleolítico o momento inicial de construção
da complexidade do espaço a partir da criação de um laço estreito com o
território. Tal fato foi corroborado pela relação dos homens paleolíticos com a
caverna, usando-a para guardar os instrumentos e os mortos e para praticar
rituais.
Num momento seguinte surgiu a necessidade de produção do próprio
alimento, um dos fatores relevantes para a manifestação das cidades, que se deu
mediante outros aspectos, como a divisão da sociedade em classes, da
complexificação da rede econômica, social e política, da industrialização e
comercialização associadas ao crescimento urbano, etc. O que se pode chamar de
estágios das cidades (aldeias, impérios, feudos, etc) foram de suma importância
para o desenvolvimento da urbanização.
Num processo lento e intrincado, surgiu a idéia de lucro, do
capital. A equação cujo resultado era o mero uso saiu e entrou a que resultava
em lucro. Pode-se dizer que, de forma muito breve, assim foi iniciado o modo de
produção capitalista, responsável por delinear o processo de urbanização
mundial, partindo da premissa de que a cidade é seu gestor. A cidade vai ficando
mais complexa devido à mercadoria e ao consequente lucro. É possível, então,
deduzir que o capitalismo significou o advento da cidade, pois à proporção que
essa forma de produção avançou, ganhou-se novos espaços e mercadorias e
disseminou-se o predomínio do lucro, delineando uma peculiar
urbanização.
As cidades cresceram, por conseguinte, o mercado também, fazendo
com que o uso do dinheiro fosse disseminado, pois era necessário para a produção
e venda de produtos, e fazendo com que os camponeses saíssem do campo,
especializassem seu trabalho e vivessem na cidade para produzir em maior
escala.
Após a Revolução Industrial e com a manutenção das redes urbanas,
as cidades passaram gradativamente a anular algumas diferenças, inclusive as
culturais. Tais problemas não foram os únicos. Houve também nas metrópoles,
grandes aglomerados urbanos, um rápido crescimento populacional que transformou
em centro tudo o que era espaço urbano e ao que ficava em volta denominou-se de
periferia. Com a desordem instalada, o Estado esquivou-se dos planos,
regulamentos e fiscalizações e tornou-se, agregado aos ricos como um mero
especulador imobiliário.
Com a ênfase na industrialização e a instalação do mercantilismo,
sobressaiu-se uma relação econômica desigual. Trocava-se produtos
industrializados por produtos primários, dificultando a concentração de capital
nos países periféricos e a concorrência de outros capitalistas, o que
caracterizou o capitalismo monopolista
internacional.
Os espaços produzidos pelo modo de produção, articulados entre si,
em especial a cidade, reunia as condições necessárias ao desenvolvimento do
capitalismo e passou a ser o local de produção, comercialização e redistribuição
da mercadoria. As decisões passaram a ser tomadas a partir de uma gestão
central, gerando uma substancial discrepância, pois espaços foram segregados do
resto da cidade e poucos podiam pagar pela tecnologia. Segundo Sposito (1998),
os níveis de urbanização são determinados pela forma com que a cidade se
relaciona, ou seja, não há uma manifestação única da urbanidade, mas sim uma
grande discrepância entre as cidades.
Já para Corrêa (2001), a cidade capitalista e seus processos de
transformação pode ser pensada como sendo o reflexo da sociedade que abriga, das
relações sociais. O autor mostra que o processo de produção não é tão
determinante, e faz uma análise de cunho social da cidade, independente do ponto
onde está localizada e a remete ao caráter universal: toda cidade tem relação
estreita com a sociedade. Assim surgem processos como o de centralização,
descentralização e coesão, que contribuem para a formação de aglomerados urbanos
e de um espaço multifacetado. Ou seja, capital e sociedade não podem ser vistos
como dissociados ou antagônicos.
O
espaço urbano é um produto social, resultado de ações dos seus agentes na
dinâmica de acumulação de capital: proprietários dos meios de produção,
proprietários fundiários, promotores imobiliários, grupos sociais excluídos e o
Estado.Sabendo que a posse e o controle do uso da terra urbana é o que direciona
a ação desses agentes, pode-se dizer que os proprietários dos meios de produção
são relevantes consumidores de espaço, ao passo que a terra é tida como suporte
físico e também como expressão de requisitos locacionais. Os proprietários de
terra interessam-se fundamentalmente pelo valor de troca da terra, visto que
objetivam a obtenção de renda fundiária otimizada (principalmente com uso
comercial e residencial de status). Os promotores imobiliários visam a um preço
de venda paulatinamente maior pela sua mercadoria, que, via de regra, exclui as
camadas populares. Os grupos sociais excluídos não são modeladores do espaço
urbano, pois estão submetidos à lógica dos proprietários fundiários, mas
torna-se agente modelador ao produzir a favela. O Estado, por sua vez, age
principalmente na dinâmica da sociedade assumindo papel de grande industrial,
consumidor de espaço, proprietário fundiário, promotor imobiliário e regulador
do uso do solo. Suas ações não são socialmente neutras, visto que tende a
privilegiar a classe dominante (CORRÊA, 1999, p.
13-31).
3.
Terra
urbana no Brasil: entre o sonho e o sangue
Sob o ponto de vista de Rodrigues (1997), a terra urbana e as
edificações foram transformadas em mercadorias e, por conseguinte, passaram a
favorecer o acúmulo de riquezas em 1850, quando instituiu-se legalmente que o
dono da terra seria quem pudesse comprá-la, fato que declarou a propriedade
particular da terra e assumiu sua característica de
capital.
O custo da terra, seja agrária ou urbana, foi definido com o
objetivo de estorvar seu acesso aos trabalhadores livres para estes permanecerem
apenas como mão-de-obra para a lavoura. Enfim, a terra não era uma mercadoria
popular e sim acessível tão somente a certa classe. Mesmo não possuindo preço
atrelado ao valor de produção, a terra urbana é regida pelos mecanismos do
capitalismo, o que levou a dedução de que ao adquirir esse bem o proprietário
visava o retorno do capital. Além disso, a terra não se comporta como um produto
comum no mercado no que diz respeito à lei de oferta e de procura, ao passo que
quanto maior o volume de terrenos, maior o
preço.
Um dos principais responsáveis pela produção do espaço urbano
no Brasil é o Estado, que distribui infra-estrutura e valoriza diversamente o
espaço. O preço do terreno passou a variar de acordo com a localização, a
produção social da cidade e os investimentos realizados para o consumo coletivo.
Assim, o espaço urbano foi produzido socialmente, mas apropriado
individualmente.
O cidadão também constrói o espaço quando, por exemplo, compra
um terreno em um local praticamente ermo e realiza nele uma construção,
despertando assim o interesse de outros compradores. Mais tarde, estes se
organizam e recebem infra-estrutura, valorizando ainda mais o local e
beneficiando os que esperavam por isto. Tal situação é uma forma de ocupação
planejada, ou seja, de especulação imobiliária, na qual são vendidos
inicialmente os lotes desprovidos de equipamentos e serviços para a valorização
dos demais.
O loteamento de glebas também constitui uma forma de
especulação, na qual deixa-se uma área vazia entre dois loteamentos para a
posterior incorporação de trabalho e alteração no preço da terra. Os
proprietários beneficiam-se com a produção social e com a dos terrenos vizinhos.
Enquanto isso, as pessoas que necessitam de uma cidade dotada de infra-estrutura
vêem-se obrigados a comprar algo mais longe do trabalho por ser mais barato,
enfrentando maiores dificuldades e lutando pela melhoria do
local.
Kowarick (1980) corrobora o fato de o processo de expansão urbana,
juntamente com a infra-estrutura, os serviços, as relações sociais existentes e
os níveis de consumo, ser calcado no acúmulo de riquezas. Consequentemente, o
aspecto desordenado das metrópoles não poderia ser considerado como algo
fortuito ou mesmo incoerente.
A grande São Paulo é o centro econômico do país, marcada pelo
aspecto irregular do espaço urbano, cuja distribuição populacional revela o
nível de segregação social e econômica existente. Os trabalhadores se acumulam
em crescentes bairros periféricos, cortiços e favelas, ícones da pobreza e da
privação. Tal periferia surgiu no momento em que as empresas acabaram com as
construções de vilas operárias devido ao instantâneo aumento da força de
trabalho, que foi demandado pela intensificação da industrialização. Os
trabalhadores, com o seu baixo poder aquisitivo, foram obrigados a se afastar
gradativamente do centro e a enfrentar inúmeros obstáculos, dentre os quais um
dos mais freqüentes foi o transporte. Não obstante, a especulação também
imperava nas áreas centrais, considerando que as melhorias urbanas realizadas
atraíam ainda mais os especuladores, encarecendo os terrenos. Contudo, tais
espaços pertenciam apenas às camadas privilegiadas, favorecidas até mesmo pelo
Banco Nacional da Habitação (BNH) que era voltado para as camadas de baixo poder
aquisitivo.
A periferia era responsável por abrigar estes trabalhadores, que
foram literalmente expulsos do centro, onde foi esboçado um espaço urbano
amotinado, tendo em vista que essa desordem ocorreu em função do capital, cujos
mecanismos resultaram freqüentemente em dano para a
metrópole.
Em suas inferências, Maricato (1996) afirma que de onde deveriam
ter surgido soluções para o uso do solo urbano de forma justa, foram originados
meros paliativos. O Legislativo, o Executivo e o Judiciário aproveitaram a
situação e, literalmente, ludibriaram alguns em detrimento dos seus comparsas.
Isso foi perceptível em Recife, metrópole brasileira com a maior disposição de
favelados, onde as favelas surgiam instantaneamente e os conflitos daí
originados foram, em maior parte, apaziguados pelo Judiciário, ou mesmo pelos
governos municipal e estadual (Neto e Souza, apud, Maricato,
1996).
Em outras instâncias a ação judiciária para a desocupação de
imóveis originou lutas impetuosas, de onde decorreu até morte. Essa discrepância
permitiu que Maricato (1996) inferisse sobre a possível aplicabilidade da lei
frente ao mercado imobiliário. Ou seja, a legislação só era utilizada, o Estado
só intervia, quando os imóveis não possuíam valor de mercado, pois a partir do
momento que foram valorizadas passaram a interessar à elite e, por conseguinte,
a excluir os demais. Historicamente, até mesmo as políticas saneadoras eram
postas em prática para o despejo dos moradores de favelas e cortiços no Brasil
em áreas valorizadas pelo mercado imobiliário. Ou seja, sociedade e capital,
apesar de não serem antagônicos, estão frequentemente
desconexos.
A remoção da população pobre de áreas ilegais só é realizada
quando está em locais de valorização imobiliária, e não quando as pessoas
constroem suas moradias em locais com risco de vida ou em áreas de proteção
ambiental, onde não interferem no lucro imobiliário privado. Tal constatação
mostra que a degradação ambiental e a habitação coexistem no Brasil,
prejudicando as camadas populares em especial, que vêem-se submetidas a
precárias condições de saúde.
Há ainda que se considerar a gestão pública no Brasil, que
prioriza investimentos em áreas centrais e manipula a opinião pública,
construindo, por exemplo, um conjunto habitacional em Goiânia com o “mutirão das
mil casas em um dia”. A partir daí, mil famílias foram literalmente isoladas, às
custas da promoção do secretário do planejamento para o Ministério do
Desenvolvimento Urbano (Maricato & Moraes, apud, Maricato, 1996).
Percebe-se, então, que a ideologia é o gestor urbano no Brasil, o que cerceia o
direito à cidade, à moradia legal e à urbanização que deveria ser inerente ao
cidadão brasileiro, mas que é indiscutivelmente protelada pelo
Estado.
4.
Brasília:
a cidade que já nasceu especulada
Com esse cerceamento, os pobres viviam sempre à margem da
sociedade, relembrando o período colonial da América latina, conforme Paviani
(1989), no qual uma reduzida elite controlava as melhores localizações urbanas
e, quanto mais longe vivia-se desse ponto, menor o nível social. A semelhança
com o espaço urbano descrito é incontestável e demonstrou a secular desigualdade
social. Esse inacesso nas cidades levou ao surgimento das favelas, que, quando
desarraigadas, aumentaram consideravelmente a periferização e todas as suas
consequências. Em Brasília, por exemplo, criou-se a Ceilândia, um Centro de
Erradicação das Invasões, cuja população era das favelas erradicadas,
caracterizando o acesso dado (Henry, apud, Paviani,
1989).
Na dedução de Paviani (1989), a pobreza passou a ser percebida
como um problema a partir do momento em que as favelas se instalaram e a pobreza
se alastrou. À proporção que a metrópole crescia, os problemas emergiam.
Analisando empiricamente a manipulação da terra urbana do Distrito Federal
pôde-se comprovar o dito. A negociação da terra urbana foi iniciada a partir de
1960, quando terras públicas foram transformadas em residenciais e a população
pouco favorecida foi expulsa para a periferia. Até então a terra era
exclusivamente do Estado e com fins sociais.
Num projeto que envolveu relatórios, estudos e concursos para a
escolha do plano da cidade, a transferência da Capital Federal para o interior
do país se deu em 1957, quando um quadriláterio no interior do estado de Goiás
se transformou em um imenso canteiro de obras. A construção de Brasília durou
quase quatro anos e reuniu milhares de trabalhadores. Como não tinham onde
morar, se alojavam improvisadamente próximos às obras. No entanto, como uma
cidade planejada não poderia abrigar acampamentos, os trabalhadores foram sendo
transferidos para cidades específicas e distantes do
centro.
A expansão urbana de Brasília avoca uma peculiaridade. Enquanto
nas cidades em geral a densidade demográfica diminuía do centro para os bairros,
em Brasília taxa era maior nas chamadas regiões administrativas (RAs). A
influência do Estado na construção de Brasília fez com que houvesse a
periferização planejada, com um centro concentrando equipamentos e serviços e
regiões administrativas (RAs) criadas estrategicamente para manter esse
mecanismo, tal qual a criação do Gama (RA II), no início de 1960 a
aproximadamente 30 quilômetros do centro.
4.1 No
rastro da especulação: o Gama “copia” Brasília
A região administrativa do Gama (inaugurada no dia 12 de outubro
de 1960) foi construída estrategicamente a 30 km de Brasília para abrigar os
construtores da capital federal que foram removidos de invasões e é conhecida
como cidade colméia devido ao seu aspecto urbanístico hexagonal (CODEPLAN),
conforme é o mapa seguinte:
Mapa 1: Região Administrativa II -
Gama
Fonte: www.gama.df.gov.br
Versiani (2002) descreve a morfologia do Gama como marcada
sumariamente pela racionalidade, com um espaço bem delineado, setores definidos
e particularizados e sistema viário determinante para a organização de uma
cidade cuja população é visivelmente diversa à de Brasília (Machado, apud,
Versiani, 2002). Esse modelo racionalista está intrinsecamente ligado ao modelo
autoritário, ao passo que a lógica de construção da Região Administrativa II (RA
II) se deu em função da segregação dos menos abastados dos locais providos de
infra-estrutura, equipamentos e serviços. A constituição da cidade foi,
portanto, arquitetada de acordo com o mercado imobiliário enquanto representante
da economia capitalista. Foi, então, projetada
idealisticamente.
Apesar de todos os contratempos existentes, dados da Secretaria de
Fazenda revelam a expressiva valorização dos imóveis na RA II por setor no
período 1996-2002, conforme demonstra o quadro
seguinte:
Quadro 2: preço do imóvel por m2 nos setores do
Gama
setor |
ANO |
1996 |
1998 |
2000 |
2002 |
INDUSTRIAL |
22,79 |
27,04 |
28,42 |
37,83 |
DVO |
17,86 |
16,41 |
19,69 |
27,35 |
NORTE |
152,14 |
152,14 |
160,57 |
196,76 |
SUL |
141,14 |
141,14 |
148,28 |
180,24 |
LESTE |
206,34 |
206,34 |
216,83 |
263,58 |
OESTE |
150,35 |
150,35 |
158,10 |
192,38 |
CENTRAL |
251,05 |
251,05 |
263,82 |
320,63 |
Fonte: pesquisa de campo, 2004.
A partir do preço do metro quadrado pôde-se constatar o percentual
de valorização dos imóveis do Gama no mesmo período, como é percebido no quadro
a seguir:
Quadro 3: percentual de valorização dos imóveis no
Gama
SETOR |
período |
1996-2002 |
1996-1998 |
1998-2000 |
2000-2002 |
INDUSTRIAL |
60% |
84% |
95% |
75% |
DVO |
65% |
-91% |
83% |
71% |
NORTE |
77% |
-- |
94% |
81% |
SUL |
78% |
-- |
95% |
82% |
LESTE |
78% |
-- |
95% |
82% |
OESTE |
78% |
-- |
95% |
82% |
CENTRAL |
78% |
-- |
95% |
82% |
Fonte: pesquisa de campo, 2004.
Com
base nos dados das
tabelas 1 e 2, percebe-se que a valorização dos imóveis na RA II se deu, via de
regra, de forma progressiva. O desvio foi o DVO, que, entre o período de 1996 e
1998, sofreu uma depreciação da ordem de 91%. Em relação à essa perda de valor
vale ressaltar que em 1996 a área analisada destinava-se à escola de ensino
médio e custava R$110.000. Já em 1998 a mesma área passou a ser destinada a
comércio e residência e seu preço caiu bruscamente para R$21.000. O DVO é a área
menos valorizada do Gama e, por ser mais distante (aproximadamente 5Km do centro
do Gama), praticamente não é considerada como RA II. Quase tido como pertencente
ao entorno, possui infra-estrutura básica deficitária, o que faz com que seus
habitantes dependam das instalações do Novo Gama – GO e do Gama.
O Setor Industrial,
embora tenha sido o menos valorizado no período 1996-2002, também apresentou uma
considerável alta no valor comercial dos imóveis. Essa área era inicialmente
destinada a implantação de fábricas de pequeno a médio porte. Como não houve
concretização desse objetivo, os lotes foram sendo ocupados por empresas e por
comércio e outros permanecem vazios, o que pode ser reflexo da falta de diálogo
entre o mercado imobiliário e as determinações do planejamento da cidade. A
partir de 2002 foram sendo construídos edifícios residenciais, bancos e escolas,
o que explica essa valorização. A área mais destacada do setor é onde se
localizam as lojas destinadas a peças e serviços de automóveis, uma avenida de
relevante movimentação onde estão instaladas diversas oficinas e lojas de
acessórios para automóveis.
A valorização dos imóveis do Setor Norte deve-se, precipuamente, à
tranqüilidade do local, além de há pouco ter ganho mais um centro comercial
popular, mais conhecido como Feira Popular do Gama. O local já possuía inclusive
outra feira ao lado dessa, chamada de Feira do Gaminha, muito popular entre os
moradores do Gama. Apesar disso, apresenta deficiência no comércio e na
prestação de serviços, no entanto é bem provido pelo sistema de transporte e,
sobretudo, é sossegado, sem agitação, marcado pela política da boa vizinhança e
apresenta baixo índice de ocorrência de crimes, fatores que atraem os
compradores de casas simples que não se importam com as ruas estreitas do
setor.
Os setores Sul, Oeste, Leste e Central, embora os dois últimos
sejam os mais valorizados do Gama, apresentaram a mesma alta no valor dos
imóveis no período 1996-2002 e entre esses seis anos. O Setor Sul, dependendo da
localização de algumas quadras, pode-se equiparar ao Setor Central, justificando
a idêntica valorização de 78% entre os dois. As quadras no chamado “pistão sul
do Gama” são as mais destacadas e os lotes, inicialmente destinados à
residência, passaram a ser ocupados, em sua maioria, pelas clínicas médicas e
agências de automóveis.
O Setor Oeste, não obstante o alto índice de violência que
perturba moradores e comerciantes, teve sua valorização em função, basicamente,
do aumento na quantidade de comércio. A avenida comercial, a título de exemplo,
que há pouco estava em má situação, atualmente encontra-se em pleno vigor, com
uma diversidade de lojas que atrai os habitantes. Já a Vila Roriz, uma área do
mesmo setor, é praticamente desprovida de valorização, ao passo que, no que se
refere à infra-estrutura, possui apenas o asfalto, uma quadra de esportes e uma
escola.
O
Setor Leste é o segundo mais valorizado do Gama, depois do Setor Central. É uma
área que dispõe de infra-estrutura satisfatória, de comércio, de comunicação e
de lazer. Há algumas quadras (21 a 26) que são mais valorizadas, nas quais as
casas são mais bonitas e estruturadas. Nessas quadras a vizinhança é de melhor
qualidade, há uma avenida comercial próximo e as quadras são as escolhidas por
quem tem poder aquisitivo relevante para os padrões do Gama. Até porque, apesar
de o Setor Central possuir casas tão boas quanto as do Leste, ou mesmo melhores,
este setor é o marcado pela ocorrência de roubo de casas.
O Setor Central é o mais valorizado do Gama, pois é onde está
aglomerada a diversidade de serviços. A criação desse centro foi propiciada pela
otimização dos lucros, caracterizada por Corrêa (2001), como sendo o processo de
centralização. Este setor é um núcleo com facilidade de transporte, de
comunicação, infra-estrutura e proximidade com os outros. É onde estão
localizados quase todos os apartamentos da RA II, que foram muito valorizados
(95% no período 1998-2000) em função da inauguração do shopping do
Gama.
À medida que os fatores positivos de criação desse centro
tornaram-se negativos, foi sendo gerada uma deseconomia e os moradores começaram
a se deslocar para outro local, chamado de Setor de Mansões do Gama, antiga área
rural. No processo denominado por Corrêa (2001) de descentralização, o centro da
RA II foi fragmentado devido à especulação imobiliária, custos de transporte e à
deterioração do centro pela poluição, etc. Assim, o Setor de Mansões do Gama,
mesmo desprovido de infra-estrutura e não sendo legalizado, cresce
vertiginosamente e abriga casas até melhores do que as do Setor
Central.
Na RA II há 33.858 domicílios, dos quais 64,49% são casas de
alvenaria e 71,31% possui de cinco a dez cômodos. A densidade demográfica é de
489,18 hab/km², sendo atendidos em um hospital público e um particular e em duas
delegacias particulares. A população da região administrativa do Gama possui
renda bruta média mensal domiciliar de 7,3 salários mínimos e de 1,94 por
pessoa, sendo que 31,61% dos domicílios possuem renda de cinco a dez salários
mínimos. A situação de moradia é relativamente estável, ao passo que 54,32%
residem em imóvel próprio quitado (CODEPLAN). Um fator comum no Gama reside no
fato de a maioria das casas possuírem cômodos nos fundos para o aluguel e de
estarem sendo construídos diversos prédios em lotes comerciais ou de
residência
unifamiliar.
Todos esses fatores nos mostram que a cidade já não é mais
totalmente dependente de Brasília, como objetivou o plano original. Atualmente
ela se desenvolve e se valoriza, mostrando que um os fatores sociais, políticos
e econômicos não estão dissociados. Além disso, percebe-se que, ao contrário do
que previa seu plano original, há uma hierarquização em seus setores, o que
alija diversos indivíduos para outros locais menos apropriados. Tal fato pode
gerar futuramente uma segregação dentro da cidade, o que tratá outros
contratempos, que, como essa valorização, talvez não estivessem previstos no
plano da capital federal.
5.
Considerações
finais
Após exploração da bibliografia acerca do processo de urbanização,
da tranformação da terra em mercadoria e da especulação imobiliária, foi
possível melhor compreender a origem e os diversos elementos que podem
configurar o espaço urbano. No entanto, prevalece o questionamento sobre a
necessidade e a falta de moradia que assola os
brasileiros.
Outrossim, tornou-se possível perceber que os estudos do
planejamento urbano da RA II não são aplicáveis, ao passo que o espaço urbano
configura-se paulatinamente iníquo, demonstrando o grau de desigualdade
sócio-econômico existente e constante no Gama, bem como nas cidades
brasileiras.
A partir de então, foram elencados os fatores precípuos de
configuração do espaço urbano, tais quais a terra, o capital e a especulação
urbana. Nesse aspecto, verificou-se que à medida que a terra urbana é
transformada em mercadoria parte da população é segregada sócio-espacialmente,
privada de seus direitos mais elementares, e o planejamento, esperança de
minimização do quadro de iniquidade, fica cada vez mais distante da
realidade.
Por esta razão, foram explorados os elementos de especulação em
função da forma urbana do Gama, evidenciando quais os setores mais valorizados
da RA II nos últimos anos e os respectivos fatores que regem essa valorização.
Com isto, foi desenvolvido um estudo de caso do Gama através de pesquisas de
campo que permitiram compreender como o processo de urbanização constitui esse
espaço urbano desigual por excelência.
6.
Referências
bibliográficas
CORRÊA, Roberto Lobato. Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001.
DEÁK, Csaba e SCHIFFER, Sueli Ramos (organizadores). O processo de
urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp, 1999.
KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980.
LOJKINE, Jean. O estado capitalista e a questão urbana. São Paulo:
Martins Fontes, 1981.
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