Estratégias alternativas de re-apropriação da
natureza:
autogestão territorial em áreas protegidas
Dilermando Cattaneo
Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
E-mail:
dilercat@ig.com.br / dilercs@gmail.com
Resumo:
Estratégias alternativas de
re-apropriação da natureza: autogestão territorial em áreas
protegidas
Este trabalho se baseia
na premissa de que as áreas naturais protegidas não resolvem os problemas aos
quais se destinam solucionar. Em que pese suas diferentes categorias e
objetivos, muitas vezes acabam criando uma série de outros problemas, visto que
na maioria dos casos suas políticas de planejamento e gestão prevêem uma série
de restrições e até mesmo a retirada dos habitantes presentes na área. Além
disso, as teorias que fundamentam a idéia de áreas protegidas estão alicerçadas
em bases epistêmicas que pressupõem a dicotomia homem x meio, construindo um
olhar disjuntivo das relações entre sociedade e natureza. O trabalho se propõe,
então, a refletir sobre estratégias de apropriação da natureza fundamentadas em
olhares menos cartesianos, que, ao mesmo tempo em que evoquem uma desconstrução
do racionalismo cartesiano objetivo e disjuntivo, promovam uma participação
ativa e direta da população. Esta desconstrução (no campo teórico-conceitual), e
a participação direta (no campo político-democrático), podem tomar forma com as
idéias de autonomia e autogestão, analisadas a partir de olhares não puramente
economicistas e tecnicistas, mas sim sob uma ótica política e
territorial.
Palavras-chave: re-apropriação da
natureza, autogestão territorial, áreas protegidas.
Abstract:
Alternative
strategies of re-appropriation of the nature: territorial self-management in
protected areas
This work has bases on the premise
of that the protected natural areas do not decide the problems which destine to
solve. Notwithstanding its different categories and objectives, many times
creates a train of other problems, whereas in the most of the occasions its
policy of planning and management presume a series of restrictions and not once
or twice the withdrawal of the inhabitants residents in the area. Moreover, the
theories that bases the idea of protected areas are constructed in epistemic
bases that presume the dichotomy “man x environment”, constructing a disjunctive
look of the relations between society and nature. The work propose to reflect
upon strategies of appropriation of the nature based on less cartesian looks,
that, at the same time where they evoke a disconstruction of the objective and
disjunctive cartesian rationalism, promote an active and direct participation of
the population. This disconstruction (in the theoretician-conceptual field), and
the direct participation (in the politician-democratic field), can take place
with the autonomy and self-management ideas, analyzed from not purely
economicist and technicist looks, but under a territorial and politics
view.
Key-words:
re-appropriation of the nature, territorial self-management, protected
areas.
Introdução
O
presente trabalho representa parte do projeto de pesquisa desenvolvido junto ao
Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRGS. Tal pesquisa pretende ser um
passo adiante em relação aos estudos efetuados durante nossa passagem pelo
mestrado, descritos na dissertação intitulada "Identidade territorial em
Unidades de Conservação: ponto de apoio para uma análise epistemológica da
questão ambiental". O trabalho de investigação ali realizado buscou analisar, a
partir de críticas ao modelo de preservação da natureza baseado em unidades de
conservação, as epistèmes inscritas nos discursos e práticas de vários
atores envolvidos na questão ambiental. Para isso, utilizou-se como subsídio a
problemática da presença humana neste tipo de áreas protegidas. A idéia, nesta
nova pesquisa, é ir além do caráter analítico, buscando um aprofundamento
teórico e, acima de tudo, um ideal mais propositivo, caracterizando, de fato,
uma tese para
doutoramento.
Uma
das premissas da pesquisa que estamos desenvolvendo é que as áreas naturais
protegidas - que no Brasil se expressam sobretudo sob o nome de “unidades de
conservação” - não resolvem os problemas aos quais se destinam solucionar. Em
que pese suas diferentes categorias e objetivos, acabam criando uma série de
outros problemas, dentre os quais destacamos os conflitos gerados com as
populações ocupantes do interior e do entorno das unidades, visto que muitas
vezes suas políticas de planejamento e gestão prevêem uma série de restrições e
até mesmo a retirada dos habitantes, sejam eles considerados tradicionais ou
não.
Além
disso, as teorias que fundamentam a idéia de áreas protegidas estão alicerçadas
em bases epistêmicas que pressupõem a dicotomia homem x meio, construindo um
olhar disjuntivo das relações entre sociedade e natureza. Na verdade,
fundamentam-se em um pensamento disciplinar, simplificador e unitário que, como
nos diz Enrique Leff, tendem a ajustar-se a “racionalidades totalitárias”, que
remetem a uma vontade de unidade, homogeneidade e globalização (2000). Assim
sendo, as áreas naturais protegidas não são capazes de promover uma relação mais
harmoniosa entre sociedade e natureza, já que, nas suas concepções balizadoras,
há a noção de que o social é algo externo ao natural, e tudo que é próprio do
humano é necessariamente prejudicial à natureza.
Nossa
proposta, então, é refletir sobre estratégias de apropriação da natureza
fundamentadas em olhares menos cartesianos, que, ao mesmo tempo em que evoquem
uma desconstrução do racionalismo cartesiano objetivo e disjuntivo, promovam uma
participação ativa e direta da população, em uma ou em várias das esferas
políticas reguladoras das áreas protegidas em que estão inseridas. Esta
desconstrução - no campo teórico-conceitual -, e a participação direta - no
campo político-democrático -, podem tomar forma com a idéia de autonomia – analisada sob o enfoque de
Cornelius Castoriadis (1983, 1987, 1990) - e, mais especificamente, com a idéia
de autogestão, analisada a partir de
olhares não puramente economicistas e tecnicistas, mas sim sob uma ótica
política e territorial.
A
idéia de autogestão territorial, obviamente a ser construída e praticada pelos
ocupantes de áreas protegidas, pretende ser uma proposta que englobe tanto a
democracia direta na gestão territorial destas áreas, quanto uma alternativa ao
conjunto epistêmico edificador da racionalidade ocidental moderna, unificador e
simplificador de saberes e balizador de práticas científicas pretensamente
neutras e de políticas dominatórias para com povos tidos como “inferiores” ou
“primitivos”. Isto porque nossa proposta exclui de seu campo de ação a
tecnocracia ambientalista que, ao se apropriar do agir ambiental, se apropriou
também dos conceitos relativos ao ambiente e à natureza, fazendo uma apropriação
teórica aliada a uma apropriação política da questão ambiental. É neste contexto
que uma série de conflitos e contradições se inscrevem na gestão das áreas
protegidas, e que, no entanto, são relegadas pelos planejadores e gestores
“oficiais” das mesmas. Assim, a idéia de autonomia e autogestão territorial,
efetivada pelos moradores de áreas protegidas, poderia abrir caminho para uma re-apropriação da natureza, no sentido
político-concreto de (re)tomar para si o controle sobre um território
condensador de identidades e saberes, e também no sentido filosófico-epistêmico,
ao vislumbrar uma desconstrução da ordem dicotômica e uniformizadora da
tecno-ciência moderna, já que tal re-apropriação estaria baseada na
multiplicidade e no diálogo de saberes, no reconhecimento da diversidade como
princípio organizativo das territorialidades, e na complexidade como paradigma
de um conhecimento menos “totalitário” e mais aberto às
incertezas.
Para
que nossa proposta seja aprimorada, é necessário analisar diversas experiências
em que estratégias parecidas com as que colocamos, de re-apropriação e
autogestão de áreas com algum tipo de restrição, foram ao menos tentadas, para
não dizer as que ainda estão em prática. Estas
análises se baseiam em um levantamento que envolve tanto os exemplos brasileiros
como os que acontecem (ou aconteceram) em outros países, notadamente os
subdesenvolvidos, como é o caso da Índia, da Colômbia e do México, só para citar
os que temos algum conhecimento prévio.
A
partir destas análises, de experiências alternativas de gestão territorial e
ambiental em áreas protegidas ou com restrições impostas pelo Estado, um dos
nossos objetivos é fazer propostas específicas para a autogestão territorial de
áreas protegidas, baseadas na autonomia dos povos ocupantes e na reconstrução e
valorização de suas identidades e saberes.
Para
uma maior elucidação em termos de referenciais teóricos que estão sendo
utilizados na pesquisa de doutorado, resolvemos expor aqui algumas idéias e
conceitos-chave no nosso trabalho. No entanto, como nossa proposta de pesquisa
envolve uma gama de referências nem sempre cabíveis numa seqüência linear e
conjunta de textos, decidimos por agrupá-las em eixos, para melhor
compreensão.
Re-apropriação da
natureza: saber, racionalidade e complexidade
ambiental
O
primeiro grande referencial é a noção de re-apropriação da natureza, que
trouxemos a partir da leitura dos textos de Enrique Leff. Para este autor, o que
comumente se chama de crise ambiental é sobretudo um problema do conhecimento
(Leff, 2000, p. 1). Assim, ele constrói uma série de concepções, expressas em
vários livros e artigos, em que o ambiente se torna um saber, mais do que um
objeto, e por isso se abre em uma série de possibilidades, como a epistemologia
ambiental, a racionalidade ambiental e a complexidade ambiental, que consiste em
“uma nova compreensão do mundo a partir do limite do conhecimento e da
incompletude do ser” (ibidem, p 3).
Além disso, ela implica “a reconstituição de identidades através do saber,
entranha uma re-apropriação [grifo nosso] do
mundo desde o ser e no ser, um re-aprender mais profundo e radical que a
aprendizagem das “ciências ambientais” que buscam internalizar a complexidade
ambiental dentro dos paradigmas dominantes do conhecimento” (ibidem, p. 2). O
saber ambiental, por sua vez, “implica um processo de “desconstrução” do pensado
para pensar o ainda não pensado, para desentranhar o mais entranhável de nossos
saberes e para dar curso ao inédito” [grifo nosso] (ibidem, p.
4).
Analisando a
interação entre o conceito de dialética, sob uma perspectiva idealista, e a
noção de complexidade ambiental, este mesmo autor faz uma ressalva à importância
de um pensamento dialético vinculado a um conhecimento crítico, para construir uma
racionalidade ambiental e o que ele chama de sociedade eco-comunitária (ibidem,
p. 6). Este termo se torna relevante para nossa análise, já que remete à questão
da diversidade de interesses em uma comunidade e do jogo de forças presente
quando se fala em apropriação da natureza:
Se a sociedade deve
reorganizar-se como um sistema de eco-comunidades descentralizadas,
internalizando as condições ecológicas de sustentabilidade, terá que pensar
crítica e estrategicamente a transição para uma nova ordem social. Enquanto
dentro da ordem econômica insustentável dominante se busca estabelecer uma
política de consenso capaz de agrupar os interesses de diferentes atores sociais
e orientá-los para um “futuro comum” (WCED, 1987), as lutas ambientalistas
revelam a oposição de forças e interesses diversos na apropriação social da natureza
[grifo nosso] (idem).
Embora
estas análises estejam intimamente ligadas com a noção de re-apropriação da
natureza que o autor nos traz, é com os conceitos de identidade e diversidade
que ele vai a fundo nesta perspectiva, pois tais conceitos fundamentam uma
lógica não formal de resistência ao pensamento externo, globalizante, unificador
e autoritário. Assim, reconhece que “a configuração das identidades e do ser na
complexidade ambiental se dá como o posicionamento do indivíduo e de um povo no
mundo; na construção de um saber que orienta estratégias de apropriação da
natureza [grifo nosso] e da construção de mundos de vida diversos”
(ibidem, p. 11). Esta perspectiva abre espaço para a noção de diálogo de saberes, que vai além
do conceito de interdisciplinaridade, pois, ao abrir caminho para a construção
de um saber não forjado dentro da lógica disciplinar, abre caminho também para a
validação do discurso construído a partir deste saber.
Cabe lembrar, também, que a noção de
identidade aqui colocada, a partir da complexidade ambiental, dissolve o seu
caráter de “identidade como igualdade do pensamento formal” e da “identificação
do sujeito baseada no seu “eu” subjetivo” (idem). Esta identidade teria
que
pensar o ser além de sua
condição existencial geral para penetrar no sentido das identidades coletivas, que se
constituem sempre a partir da diversidade cultural e da diferença, mobilizando
os atores sociais para a construção de estratégias alternativas de reapropriação da
natureza, frente aos sentidos antagônicos da sustentabilidade [grifos
nossos] (ibidem, p. 12).
Fica
demonstrado, então, como a idéia de re-apropriação da natureza perpassa por uma
complexa rede de atributos ontológicos e epistemológicos, que a tornam passível
de análise e utilização tanto no campo político-prático como no campo
teórico-filosófico.
Homem
e natureza: igualdade e diferença
Um
outro referencial que pretendemos estabelecer para a pesquisa de doutorado é a
adoção de uma concepção - quase um paradigma -, trabalhada em nossa dissertação
de mestrado, onde homem e natureza sejam iguais, mas diferentes. Explicamos:
quando falamos em igualdade, estamos atentando para a necessária
horizontalização da relação entre ambos, onde os elementos naturais não sejam
apenas recursos e objetos de dominação humana, mas também não ganhem uma
importância exagerada que chega a excluir qualquer possibilidade de intervenção
e interação com as sociedades (Cattaneo, 2004, p. 99). Na verdade, esta
igualdade é uma tentativa de ir além dos princípios de "externalização da
natureza" (ibidem, p. 91), aludidos naquele trabalho como um dos principais
elementos de fundamentação epistêmica das áreas protegidas. Mas é também, e ao
mesmo tempo, uma busca para ir além da "externalização do homem" (ibidem, p.
94), e da noção de que qualquer atuação deste homem sobre o meio natural é
necessariamente prejudicial. Colocados em um mesmo patamar, homem e natureza são
elementos que se complementam e se inscrevem um no outro, uma vez que a espécie
humana faz parte do conjunto de espécies da natureza, e a noção de natureza é
construída socialmente pelo homem, a partir de matizes políticos, econômicos,
simbólicos, míticos, etc. Esta não-verticalização busca, no fundo, a superação
da visão dicotômica que se sagrou com a ciência moderna, através dos métodos
positivistas, neopositivistas e até materialistas históricos. Busca, enfim, ir
além das concepções naturalistas e culturalistas que ainda hoje polarizam o
debate presente na questão ambiental. Homem e natureza são, neste caso, iguais
(Cattaneo, 2004, p. 99).
A
diferença à qual estamos falando, refere-se à heterogeneidade e diversidade
inerentes tanto aos elementos naturais quanto aos humanos. Se for verdade que
estes elementos são iguais em sua importância, até porque se interpenetram e
constituem um a base do outro, é verdade também que as diferenças entre eles não
são apenas perceptíveis, mas necessárias para romper com dimensões
deterministas, naturalistas, culturalistas, tecnicistas e todas as que
constituem a matriz racionalista que orienta as sociedades ocidentais modernas.
O homem é também natureza, mas possui, entre outras particularidades, a de
produzir cultura e ter consciência de si e de sua existência. Isto abre a ele
infinitas possibilidades de organizar-se, de produzir, de pensar, de entender-se
no mundo. Enfim, há inúmeras possibilidades do ser-humano realmente ser humano.
Esta
multiplicidade de culturas e de leituras não só o diferencia da natureza, como
também o diferencia de si mesmo. Essas diferenças todas produzem diferentes
sociedades, diferentes etnias e diferentes geo-grafias. Tudo isso compõe um
quadro de complexidade e diversidade que não pode ser esquecido quando se insere
o elemento humano na análise ambiental. Homem e natureza são, neste caso,
diferentes (ibidem, p. 100).
Em
relação às áreas protegidas, constatamos naquele trabalho que as políticas e
paradigmas que as orientam parecem não partilhar desta noção de
"igualdade-diferença" a que nos referimos. Daí a necessidade, como estamos
propondo neste anteprojeto, da formulação de um paradigma que supere a razão
cartesiana, a fim de apreender a igualdade e diversidade que compõem a
complexidade do mundo e do saber, para assim forjar espaços livres de dominação,
seja ela política ou epistêmica (ibidem, p. 101). Conforme colocamos na
dissertação:
Homens, naturezas, mundos e saberes são diversos e
diversas devem ser as formas de compreendê-los, para que se possa, desta forma,
pensar a questão ambiental e tudo que ela envolve a partir de baixo e de
diversos pontos. Assim, caberia aos povos historicamente oprimidos, inclusive os
habitantes das UC’s [tipo de área protegida], não mais um papel secundário ou
simplesmente assistencialista no que se refere à sua inserção na temática
ambiental. Ao invés de um “ambiental” feito para os “de baixo”, teríamos um
“ambiental” feitos pelos “de baixo” (idem).
Autogestão e
autonomia
O
conceito de autogestão vem sendo sistematicamente adotado para designar, no
campo econômico, um método de gestão de empresas, e no campo político, uma forma
de democracia direta (Viana, 2005, p. 1). Entretanto, tal conceito pode ser
entendido de maneira mais ampla, se analisado sob diferentes enfoques. De um
ponto de vista comunista-libertário, por exemplo, a autogestão é "uma relação de
produção que se generaliza e se expande para todas as outras esferas da vida
social" (ibidem, p. 4), o que significa dizer que "os próprios “produtores
associados” dirigem sua atividade e o produto dela derivado. Abole-se, assim, o
estado, as classes sociais, o mercado, etc., já que com a autogestão abole-se a
divisão social do trabalho. Conseqüentemente, abole-se a divisão entre
“economia”, “política”, etc" (idem). No entanto, para não cairmos em
posicionamentos mais dogmáticos e/ou vinculados a uma estrutura fragmentada e
sectária de concepção política, podemos entender a autogestão como uma idéia
mais ampla, onde os processos decisórios de qualquer esfera da vida podem ser
tomados de "baixo para cima" ou mesmo horizontalmente, invertendo a lógica
predominante, sobretudo em nosso cotidiano social e político, em que a gestão ou
gerência de vários aspectos deste cotidiano se dá por meio de relações de poder
verticalizadas. Assim, quando falamos em autogestão, estamos nos referindo, de
algum modo, a uma tentativa de socialização do poder, com o intuito, mais
profundo, de gerir-se a si mesmo(s). Inúmeras tentativas nesse sentido foram
postuladas e colocadas em
prática. No entanto, a grande maioria capitulou frente a
sistemas estatais-capitalistas. O interessante é que este caráter de efemeridade
das experiências autogestionárias já foi, além de analisado, até mesmo proposto
como estratégia de transformação da atual ordem social, em nível global, como o
fez Hakim Bey ao sugerir a proliferação de TAZ (sigla de Zonas Autônomas
Temporárias), enclaves independentes com experiências comunitárias
descentralizadas, espalhados pelo mundo e ligados em rede (2001, p.
12).
No
campo ambiental, a idéia de autogestão toma força com o pressuposto da
racionalidade ambiental preconizado por Enrique Leff (2004), que coloca como um
pressuposto para a re-apropriação da natureza, pelas comunidades, o sentido de
uma autogestão produtiva e dos recursos naturais. Para este autor "os povos e as
comunidades estão re-significando o discurso da democracia e da sustentabilidade
para reconfigurar seus estilos de etno-eco-desenvolvimento, desencadeando
movimentos inéditos pela re-apropriação e autogestão produtiva da
biodiversidade" (p. 434). No entanto, faz uma ressalva ao papel que caberia aos
outros atores comprometidos com esta causa, colocando que "é necessário
legitimar os direitos das comunidades e fortalecê-las politicamente, dotando-as
ao mesmo tempo de uma maior capacidade técnica, científica, administrativa e
financeira, para a autogestão de seus recursos produtivos" (ibidem, p. 445).
Ainda é interessante trazer ao debate a noção de gestão participativa, que para
Leff pode desencadear a autogestão:
O princípio de gestão
participativa dos recursos ambientais implica uma democracia direta, em que a
ação cidadã não se restringe ao consenso social que pode se alcançar através dos
mecanismos de mediação e representação dos altos níveis da tomada de decisões.
Esta democracia desde as bases [grifo nosso] estabelece uma via direta de
apropriação dos recursos produtivos, para o manejo coletivo dos bens comuns da
humanidade e dos serviços ecológicos da natureza. Frente ao domínio dos
"tomadores de decisões" e "fazedores do mundo", eleitos "democraticamente", hoje
em dia emergem as identidades e autonomias dos povos, regenerando suas
capacidades de autogestão dos processos produtivos para eliminar a pobreza,
melhorar sua qualidade de vida e construir comunidades sustentáveis (ibidem, p.
420).
Em que
pesem estes diferentes olhares sobre a idéia e o próprio conceito de autogestão,
salientamos que a concebemos como uma estratégia que vai além do campo político
e econômico, até porque está demonstrada a sua relevância no campo ambiental,
ainda que este interpenetre nas esferas sociais, políticas, econômicas, etc. No
entanto, o que queremos ressaltar é a necessária articulação filosófica deste
conceito, uma vez que, para pensar o ambiente como um saber complexo, é
imprescindível atentar para a racionalidade ambiental forjada em uma outra
relação sociedade-natureza. Assim, a autogestão nos serve também como uma
estratégia epistêmica, pois, a partir dela, se desconstróem as bases do
pensamento herdado alicerçado na visão dicotômica de homem x meio, e
conseqüentemente se semeiam conhecimentos próximos da noção de
"igualdade-diferença" que está descrita no item anterior.
A
autonomia é outra concepção muito presente em nosso projeto de trabalho.
Cornelius Castoriadis nos traz uma contribuição muito própria para os objetivos
da pesquisa, quando afirma que "a autonomia não é a clausura, mas a abertura",
uma abertura ontológica que possibilita aos seres constituírem seu mundo e a si
próprios segundo diferentes leis (1987, p. 434). Este autor vai além faz uma
singela, porém contundente, relação da autonomia com a pólis grega e o
sentido de liberdade:
A liberdade numa
sociedade autônoma exprime-se por estas duas leis fundamentais: sem participação
igualitária na tomada de decisões não haverá execução; sem participação
igualitária no estabelecimento da lei, não haverá lei. Uma coletividade autônoma
tem por divisa e por auto-definição: nós somos aqueles cuja lei é dar a nós
mesmos as nossas próprias leis (Castoriadis, 1983, apud Souza, 2003, p.
105).
No que
concerne à autonomia e sua inserção na racionalidade ambiental, retomamos
novamente o ponto de vista de Leff, principalmente quando este autor coloca que
a autonomia "vem a questionar o princípio da representação da democracia
política que unifica a cidadania mas não responde a seus interesses. O princípio
de autonomia [...] rechaça a toda estrutura hierárquica e autoritária e as
formas estabelecidas de exercício do poder" (2004, p. 413). Em outro texto, vai
além desta análise e a insere na perspectiva do espaço, do lugar e do
tempo:
[...] A autonomia das
pessoas não pode ser concebida como o "empoderamento desde cima" dos oprimidos.
A autonomia cultural não pode ser graciosamente outorgada aos que ficaram
marginalizados e excluídos das razões que têm organizado e legitimado o mundo
atual, ainda nesta era de democracia, cidadania e direitos humanos. O direito à
autonomia é a reivindicação das "localidades" oprimidas: culturas locais,
conhecimento local, gente local. [...] É através da reconstrução do ser que a
autonomia pode dirigir-se para a autogestão das condições de vida das pessoas
(Leff, 2000b, p. 64).
Território e
gestão territorial
O
território, conceito criado a partir da dimensão política da Geografia para
designar o espaço dos estados nacionais, é hoje um conceito largamente utilizado
em várias esferas do conhecimento. Na própria Geografia, a noção de "espaço
apropriado" e "espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder"
(Souza, 2003, p. 96) se dilui com a evolução de conceitos como territorialidade
(Souza, 2003, p. 99; Mesquita, 1995, p. 85) e consciência territorial (Mesquita,
1995, p. 85). Além disso, o território passa a não mais ser visto somente a
partir de um viés objetivo e material. A apropriação dos espaços pode se dar
também como uma manifestação da subjetividade e do imaginário, criando
territórios permeados pelo simbólico e geradores de uma identidade social
definida e expressa através do espaço: a identidade territorial (Haesbaert,
1999).
Todas
estas definições são de suma importância para nosso trabalho, uma vez que
implicam uma análise onde o espaço das áreas protegidas é visto como um
território, ao mesmo tempo rico de recursos e construtor/aglutinador de
identidades e territorialidades - muitas vezes conflitivas. Daí a importância de
entendermos a gestão territorial como o processo em que se dá o gerenciamento,
onde se definem as políticas e as ações que são postas ou não em prática, num
certo espaço apropriado material e/ou simbolicamente; onde, em síntese, ocorre a
"geo-grafia"
do território. A gestão territorial se torna relevante para os atores envolvidos
na problemática das áreas protegidas, principalmente para as comunidades que as
ocupam, pois "em todos os casos os atores se verão confrontados com necessidades
que passam pela defesa de um território, enquanto expressão da manutenção de um
modo de vida, de recursos vitais para a sobrevivência do grupo, de uma
identidade ou de liberdade de ação" (Souza, 2003, p. 109-110). Esta concepção de
gestão territorial, por sua vez, pode ser analisada e pensada a partir das
lógicas da autonomia e da autogestão. A respeito da autonomia e sua relação com
o território, Souza (2003), faz algumas observações interessantes, baseado em
uma leitura "castoriadisiana" do conceito de
autonomia:
Uma sociedade autônoma é
aquela que logra defender e gerir livremente seu território, catalisador de uma
identidade cultural e ao mesmo tempo continente de recursos, recursos cuja
acessibilidade se dá, potencialmente, de maneira igual para todos. Uma sociedade
autônoma não é uma sociedade sem poder. [...] No entanto, indubitavelmente, a
plena autonomia é incompatível com a existência de um "Estado" enquanto
instância de poder centralizadora e separada do restante da sociedade
(Castoriadis, 1990) (p. 106).
[...] em uma coletividade
autônoma, radicalmente democrática, o exercício do poder não é concebível sem
territorialidade (Souza, 2003, p. 107).
Com
relação à autogestão territorial, idéia-chave em nossa pesquisa, basta colocar
que agregamos à noção de autogestão, debatida anteriormente, os preceitos do que
vem ser uma gestão territorial, ou seja, a concebemos como um processo decisório
- sobre o território (e tudo que este conceito traz consigo) - construído e
posto em prática a partir de baixo e/ou horizontalmente, de forma livre e
autônoma. Retomando novamente Souza (2003, p. 112), "para uma dada coletividade,
gerir autonomamente o seu território e autogerir-se são apenas os dois lados de
uma mesma moeda, e representam ambos uma conditio sine qua non para uma
gestão socialmente justa dos recursos contidos no território". Nossa
coletividade, no caso, seriam as populações e comunidades habitantes de áreas
protegidas.
Cabe
lembrar ainda, ademais das colocações expostas até aqui, a importância do
território na questão ambiental, principalmente para aqueles que ainda acreditam
numa dicotomia e distanciamento entre a dimensão territorial e a dimensão
ambiental da vida, da política e do pensamento científico. Se pensarmos que o
território implica apropriação, e que boa parte dos problemas ambientais advém
da apropriação da natureza por grupos supra-nacionais para fins próprios,
portanto não comuns, haveremos de perceber que "o controle do território
coloca-se como fundamental para garantir o suprimento da demanda sempre em
ascensão por recursos naturais. [...] a natureza com suas qualidades é o que se
oferece à apropriação [grifo do autor] da
espécie humana, o que se dá por meio da cultura e da política" (Gonçalves, 2004,
p. 65).
Aqui,
levantamos esta questão para ressaltar a importância de haver estratégias
alternativas de apropriação da natureza, que sejam forjadas de baixo e com fins
coletivos, para fazer frente a outras maneiras de apropriação muito mais
degradatórias e que visam basicamente o aumento de
produção.
Áreas
protegidas
Não
poderíamos deixar de referenciar aqui um conceito balizador com enfoque mais
técnico, embora não menos importante, da nossa pesquisa: o conceito de áreas
protegidas. No Brasil, segundo o Ministério do Meio Ambiente, "áreas protegidas
são áreas de terra e/ou mar especialmente dedicadas à proteção e manutenção da
diversidade biológica, e de seus recursos naturais e culturais associados,
manejadas por meio de instrumentos legais ou outros meios efetivos" (MMA, 2005).
Há ainda um outro conceito, menos utilizado, que diz que "áreas protegidas são
áreas criadas para garantir a sobrevivência de todas as espécies de animais e
plantas, a chamada biodiversidade, e também para proteger locais de grande
beleza cênica, como montanhas, serras, cachoeiras, canyons, rios ou lagos"
(APREMAVI, 2005).
A
opção pelo uso do conceito de "áreas protegidas" neste trabalho, em detrimento
de outros relacionados ao mesmo tema, deve-se basicamente pelo fato de haver
conceitos similares em outros países. No México, por exemplo, vigora o conceito
de Áreas Naturais Protegidas, que são:
[...] porciones
terrestres o acuáticas del territorio nacional representativas de los diversos
ecosistemas, en donde el ambiente original no ha sido esencialmente alterado y
que producen beneficios ecológicos cada vez más reconocidos y valorados. Se
crean mediante un decreto presidencial y las actividades que pueden llevarse a
cabo en ellas se establecen de acuerdo con la Ley General del
Equilibrio Ecológico y Protección al Ambiente, su reglamento, el programa de
manejo y los programas de ordenamiento ecológico. Están sujetas a regímenes especiales de
protección, conservación, restauración y desarrollo, según categorías
establecidas en la
Ley (CONANP, 2005).
Além
disso, as áreas protegidas são um conceito mais amplo, pois englobam uma série
de outras categorias. No Brasil, algumas destas categorias são as Unidades de
Conservação (UC´s), estas divididas em sub-categorias de proteção integral e de
uso sustentável, as Áreas de Preservação Permanente (APP´s) e as áreas de
Reserva Legal (RL), estas duas definidas segundo os preceitos do Código
Florestal.
Para
este trabalho, será dada mais atenção àquelas áreas protegidas que contenham
moradores em seu interior (mesmo que isto não seja previsto) ou que apresentem
um conflito com a comunidade do seu entorno, devido à maneira como se dá a
gestão da área.
Referências bibliográficas
APREMAVI - Associação de preservação
do meio ambiente do Alto Vale do Itajaí. Áreas protegidas por lei e Unidades
de Conservação. [On line].
<http://www.apremavi.com.br/pmareproteg.htm>. [10 de janeiro de
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