EXTERNALIDADES NEGATIVAS:
ESTRATÉGIAS PÚBLICAS E PRIVADAS DE INTERVENÇÃO NA DRAMATICIDADE SOCIAL NO
ESTADO DO PARA, BRASIL.
Maria Alice
Nunes Costa
e
Wilson Madeira
Filho
Resumo
O presente artigo procura examinar dois
modelos de intervenção em cidades do sudeste e do sul do Pará, marcadas por
históricos dramáticos. Analisamos a intervenção social realizada voluntariamente
por universidades públicas e particulares e de ações empresariais de
cunho social também voluntário. Trataremos esses modelos a partir de dois estudos de
caso. O primeiro envolve
atividades voluntárias de universitários e professores, através do Projeto Rondon, coordenado pelo
Ministério da Defesa na implantação de atividades comunitárias solidárias que
atendam à infra-estrutura municipal, em particular nas áreas do desenvolvimento
local sustentável e da elaboração de planos diretores. Será retratada a intervenção realizada no município
de São Domingos do Araguaia, através da promoção à elaboração de um Plano
Diretor Municipal Participativo. O segundo caso trata dos projetos sociais
patrocinados pela Companhia Vale do Rio Doce, diante da devastação causada pelo
garimpo de Serra Pelada, no município de Curionópolis, enquanto parte de uma
concepção de solidariedade e responsabilidade social da empresa. Analisamos ambos os
casos como estratégias que classificamos de neo-colonização
democrática. Por um lado, na
tentativa de confiar ao Estado, em particular o
Ministério da Defesa, certas tarefas de regulamentação do
bem-estar social, que o poder público local e estadual não atende; e, por outro
lado, a tendência de transferir essas funções sociais aos agentes econômicos
empresariais. São estratégias intercambiáveis do Estado capitalista brasileiro,
que se alternam pendularmente, para atender as disfunções enraizadas do sistema
social do país.
Palavras-chave: intervenção social, responsabilidade social empresarial,
planos diretores.
Introdução
Desde
cerca de 150 anos atrás, quando a expedição pioneira de Couto de Magalhães
(1974) cruzou as águas do Araguaia, vindo o jovem militar a se sagrar Presidente
do Pará, alternando uma visão de domínio público às iniciativas privadas
(especialmente no setor da navegação), as estratégias de controle territorial
vem oscilando entre o centralismo estatal e o modelo
liberal.
Na atualidade, novas demandas estratégicas, como os planos diretores
participativos e a noção mais apurada de responsabilidade social das empresas
(advinda, em boa parte, do processo de privatização das estatais na era FHC),
apresenta releituras para os mesmos cenários, em face da devastação ambiental e
das externalidades negativas da exploração predatória, causando imensos passivos
sociais.
O presente artigo procura examinar dois modelos de intervenção em cidades
do sudeste e do sul do Pará, marcadas por históricos dramáticos. Em um primeiro
momento analisa a ação militar, em consonância com a universidade federal, no
município de São Domingos do Araguaia – promovendo o que classificamos como
neo-colonização democrática, através da promoção à elaboração de um Plano
Diretor municipal Participativo. Em um segundo momento, analisamos a atuação de
projetos sociais patrocinados pela Companhia Vale do rio Doce, ex-estatal,
privatizada em 1997, diante da devastação causada pelo garimpo de Serra Pelada,
no município de Curionópolis, enquanto parte de uma concepção de
responsabilidade social da empresa.
Num
momento, encarregando o Exército de promover a participação social, com o apoio
de Universidades e responsabilizando a população pela sua própria sorte; assim,
desonera o Estado de obrigações sociais, que ele não tem mais condições de
cumprir, em vista da escassez de recursos disponíveis e do mau uso da verba
pública. O Estado é assim liberado de reivindicações, cujo não-atendimento
acabaria por privá-lo de sua legitimidade. Noutro momento, deixa na mão das
empresas a solução dos problemas sociais, que ela não tem condições de arcar
sozinha.
A
compreensão da crise da legitimidade do Estado, nos anos 70, pautava-se na idéia
de que a crise era derivada do descontentamento dos grupos excluídos e,
portanto, a solução era transformar o Estado e aumentar a participação popular.
Nos anos 80, a crise da
legitimidade foi convertida em crise da governabilidade, na medida em que o
Estado aparece como sobrecarregado de demandas sociais. Hoje, as redes sociais
de solidariedade voluntária surgem para dar conta de responder as questões
sociais.
A
Neo-colonização
democrática brasileira
No Brasil, observamos que a participação social vem sofrendo
alterações diante das mudanças operadas pelo Estado. Nos anos 1990, muitas
reivindicações são incorporadas no aparelho do Estado e, perdem o vigor de
contestação gerado nos anos 1970.
Nos
anos 1950 emergira a proposta de "desenvolvimento de comunidade",
criada por
instituições americanas envolvidas com a política de ajuda e sedução a países
subdesenvolvidos,
no contexto da Guerra Fria. Surgiram programas de desenvolvimento
econômico e social para os quais era proposta a participação comunitária
e ensaiava a introdução de tecnologias voltadas à melhoria da qualidade de
vida.
Conforme Carvalho (1995), a base do referencial teórico dessas
propostas de participação comunitária é a categoria comunidade, definida como um
agrupamento social e cultural homegêneo, portanto com identidade própria e
predisposição ao trabalho solidário e voluntário. O combate à pobreza e à doença
ocorreria em função da capacidade da comunidade se unir e se organizar, numa
realação onde a participação é fetichizada como passaporte para as melhorias
sociais (Id., p. 17).
É
no contexto de crise social e, associado
com o fim
da ditadura militar, que surge outra forma de participação da sociedade: a
participação popular. Os movimentos e organizações populares se multiplicam em
fins dos anos 1970 e início dos anos 1980, alguns ligados
à Igreja, outros a associações ou a sindicatos, mas todos com o objetivo
comum
de transformação política.
Tem sentido de luta e contestação a partir da idéia de que, as melhorias sociais
são
obtidas através das conquistas por pressão, e o mau funcionamento é, portanto,
debitado
antes na política do que em questões de ordem técnica.
Pouco
a pouco, a idéia de participação popular vai dando lugar a propostas de gestões
colegiadas e
representativas, que passam a reconhecer e legitimar as organizações da
sociedade civil. Portanto, nos anos 1980, a
participação social será tida como direito de cidadania relacionada à idéia de democratização.
Sua relação com o Estado visa o
controle social deste. Carvalho (1995, p. 28) acredita que este controle
é resultado de duas visões: "a dura realidade da exclusão social e o caráter
secularmente clientelista e privatizado do
Estado brasileiro". Neste sentido, o autor afirma que o controle social
tem um forte sentido fiscalizatório
significando “impedir o Estado de transgredir”. Neste caso, o Estado é visto como inimigo
da sociedade e se esforçará para
mudar esta visão nos anos
1990.
É
nessa trajetória que a relação entre Estado/sociedade sofre alterações.
Quando
nas décadas de 1970 e 1980 o Estado era visto como "inimigo"; nos anos 90,
passa-se à compreensão de
que ambos são responsáveis e parceiros no enfrentamento dos problemas
sociais.
Nos
anos 1980 ganha preponderância na agenda pública da estruturação de um Estado
mínimo, liberando as forças do mercado e “libertando” a energia da sociedade
para arcar com a função social, seguindo valores de solidariedade voluntária, da
auto-ajuda e da ajuda mútua. A matriz estadocêntrica passou a ser questionada
como nociva ao desenvolvimento econômico e social do país. A natureza da
intervenção estatal e os caminhos da reforma do Estado transformaram-se em
grandes temas na agenda brasileira. Os anos 1990 se iniciam com a proposta de se
radicalizar o corte com o modelo de intervenção do passado até alcançar uma
reestruturação do papel do Estado, ainda em processo
(COSTA, 2006).
A
reforma do Estado vai sendo impulsionada para melhorar a capacidade de
intervenção do aparelho estatal na economia e no sistema de proteção social.
Dentre as propostas de políticas sociais está a concepção de governança entre
Estado, mercado e sociedade civil para a produção de bens públicos. Nesse
sentido, o Estado deve incentivar a co-responsabilidade com a sociedade civil
organizada.
Desta
forma, aparece uma pluralidade de atores sociais disputando e convergindo seus
próprios interesses diante das incertezas e da precariedade social. Contudo,
conforme Petras (1999 apud MONTAÑO,
2002:272), o Banco Mundial - como representante das idéias neoliberais - temendo
a polarização da sociedade, aumentou a destinação de verbas para organizações
não-governamentais nos anos 1980 com o objetivo de cooptar as lideranças sociais
e amortecer os ideários de luta que emergiam. Assim, observamos nos anos 1990 um
recuo das propostas emancipatórias desses movimentos sociais. Ao invés de pensar
a sociedade como um todo, as organizações da sociedade civil passaram a elaborar
projetos pontuais em parceria com o Estado mediante a força relativa, capital
social e informações disponíveis de grupos que tivessem mérito para assegurar a
negociação nesta parceria.
O incentivo à participação societária solidária é resultado do
entendimento de que a interdição centralizadora do Estado é insuficiente para
controlar a ação coletiva dos movimentos sociais que emergem por justiça social.
A
máquina burocrática abre canais de comunicação e cria novas institucionalidades
jurídicas que promovam a participação social. Assim, a energia solidária
mobilizada para o enfrentamento dos problemas sociais cotidianos é capturada
para o interior do aparelho estatal com o objetivo de domesticar impulsos mais
conflitantes de luta social.
Pode-se dizer que uma nova configuração institucional
“sociocêntrica” é elaborada com a expectativa de que a transferência de
responsabilidade do Estado para outras instâncias sociais pode tornar o Estado
mais eficaz e eficiente para promover a coesão social e garantir a
governabilidade.
O governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) criou em 1996, o
Conselho da Comunidade Solidária. Este órgão ligado à Presidência da República
concentrou suas atividades na promoção de ações sociais com base no
voluntariado; na realização de projetos de parceria entre Estado e sociedade; na
revisão do marco legal que regula as relações entre Estado e sociedade; e, no
fortalecimento das instituições da sociedade civil organizada. Desta forma,
havia a expectativa que o Estado poderia manter seu caráter social,
assegurando-lhe eficiência, na medida em que induziria as entidades públicas
não-estatais a competir entre si para prestar serviços à comunidade com
financiamento parcial do Estado. A Comunidade Solidária existiu até o fim do
governo FHC com o seguinte objetivo:
Mobilizar os esforços
disponíveis do governo e na sociedade para melhorar a qualidade de vida dos
segmentos mais pobres da população. Somando esforços, governo e sociedade são
capazes de gerar recursos humanos, técnicos e financeiros para agir
eficientemente no combate à pobreza. Por isso a proposta da Comunidade Solidária
baseia-se no princípio da parceria (…) (BRASIL. Presidência da República Federativa, Secretaria de Comunicação Social,
Subsecretaria de Imprensa e Divulgação, Comunidade Solidária -Todos por
todos, 1996, grifo nosso.)
Eli Diniz (2004) lembra a distinção da efervecência social dos
anos 1980 para os anos 1990. A autora
afirma, segundo estudos dos cientistas políticos Wanderley Guilherme dos Santos
(1985) e de Renato Boschi (1987), que o impacto do avanço da globalização e da
revolução tecnológica, associada à redução do crescimento econômico, revelará,
nos anos 1990, um retraimento dos movimentos populares e o refluxo do movimento
sindical:
Efetivamente, a década neoliberal implicou o esvaziamento da
capacidade de ação e mobilização dos trabalhadores organizados, como resultado
do aumento do desemprego, da expansão da informalidade e da retração dos
direitos sociais (DINIZ, 2004, p. 5).
A participação cidadã dos anos 1980 serviu como referencial para
garantir o fortalecimento dos mecanismos democráticos do processo de
redemocratização; e, nos anos 1990, para garantir a execução eficiente de
programas governamentais de compensação social, propostos e financiados pelas
agências multilaterais de desenvolvimento, face ao contexto de ajuste
estrutural, liberalização da economia e privatização do patrimônio do Estado.
A mobilização social dos anos 1990 veio impulsionar uma capacidade
artificial da sociedade se mobilizar em função de uma proposta de participação
“domesticada” pelo Estado. Conforme Santos:
É inegável
que a ´reemergência da sociedade civil´ tem um núcleo genuíno que se traduz na
reafirmação dos valores do autogoverno, da expansão da subjetividade, do
comunitarismo e da organização autônoma dos interesses e dos modos de vida. Mas
esse núcleo tende a ser omitido no discurso dominante ou apenas subscrito na
medida em que corresponde às exigências do novo autoritarismo (SANTOS, 1999, p.
124).
A proposta de parceria entre Estado e sociedade pode ser um
estímulo estatal para a ação cidadã e para ampliar a participação e o controle
social das políticas públicas. Sob outro ponto de vista, estas alianças não representam uma lógica de
assistência com responsabilidade social. Mas sinalizam a desresponsabilização do
Estado aos problemas sociais, desonerando-o de certas funções que ele não tem
capacidade para gerir. Desta forma, representa o que chamamos de neo-colonização democrática, onde o
Estado compensa estrategicamente seu déficit com a ampliação da participação
social, domesticando-a no intuito de controlar possíveis turbulências a ordem
social.
Trata-se de veicular o discurso estatal através de estratégias
emancipatórias, face a um modelo deliberativo, que, por conseguinte, sofre a
pressão da sociedade civil organizada emergente em sua
delimitação.
(....)
observemos que toda a dinâmica da Política Nacional de Meio Ambiente, em suas
sucessivas reformas e acréscimos, tem procurado estabelecer regras gerais que
sempre terminam por efetivar um sistema regulatório produzido e posto em prática
por comitês locais. É o caso dos Planejamentos Urbanos, é a idéia das audiências
públicas, é o que se pretende com os Conselhos Municipais, é o caso dos Comitês
de Bacia. Enfim, a mesma regra, por possuir estrutura aberta, dialoga com a
construção social de realidades diversas (MADEIRA FILHO, 2002,
p.52)
Frente à
ampliação da participação social, encontramos nos anos 1990, algumas
empresas privadas também se mobilizando na elaboração e no desenvolvimento de
projetos sociais para comunidades de baixa renda. Este é o outro pólo da neo-colonização democratica: a
responsabilidade social empresarial.
Na agenda de reformas do Estado, muitos empresários passaram a
divulgar o discurso de desenvolvimento e justiça social além das fronteiras
limitadas pelo poder público. Alguns empresários passaram a reconhecer os
problemas sociais como uma dificuldade para o desenvolvimento
econômico.
A resistência das mazelas
brasileiras no Pará
O Estado do Pará está localizado ao Norte do Brasil e é o segundo
maior estado do país. Possui uma área de 1.248.042
quilômetros quadrados, com uma população de 3.468.700
habitantes. É o desaguadouro de milhares de camponeses em busca de terra. Há
ainda os contingentes atraídos no passado pela ilusão do garimpo ou de algum
emprego na Cia. Vale do Rio Doce, que domina a exploração de minério. Milhões de
hectares de terra desta região foram grilados, antes para a exploração de
madeira e agora para algumas pastagens próximas às
rodovias.
A região sul do Estado do Pará caracteriza-se pela presença de
grandes grupos financeiros e industriais –Volkswagem, Liquigás, Banco Real e
BCN, entre outros, que, beneficiados pela redução de impostos de até 50% sob a
condição de investir 2/3 na agricultura, abocanharam grandes extensões de
terras, impedindo o desenvolvimento, já que a propriedade fundiária fora
adquirida apenas para a especulação imobiliária.
O surgimento de novos municípios gerou cidades pobres e sem
infra-estrutura para suportar o crescimento populacional. O resultado são os
altos índices de desemprego, marginalização, pobreza e exclusão social dos
habitantes da região.
A tensão social provocada pela concentração injusta de terras, à
negligência do equacionamento das desigualdades, a proteção aos latifundiários e
a impunidade faz com que nesta área os conflitos fundiários sejam graves e
constantes e, o emprego da violência seja um meio natural para a solução destes
conflitos.
Episódios trágicos têm marcado a região e isto não é novidade.
Em Eldorado dos
Carajás, no dia 17 de abril de 1996 dezenove trabalhadores
rurais foram mortos pela polícia militar. O
massacre ocorreu quando 1.500 sem-terra que estavam acampados na região
decidiram fazer uma marcha em protesto contra a demora da desapropriação de
terras, principalmente as da Fazenda Macaxeira. A Polícia Militar foi
encarregada de tirá-los do local, pois estavam obstruindo a Rodovia PA 150, que
liga Belém ao Sul do Pará. A ordem partiu do Secretário de Segurança do Pará que
declarou, depois do ocorrido, que autorizara "usar a força necessária, inclusive
atirar" (cfe. http://pt.wikipedia.org,
acesso em 11/2006). 19 pessoas morreram na hora, outras duas morreram anos
depois, vítimas das seqüelas e outras 67 ficaram feridas e mutiladas. Segundo o
legista que fez a perícia dos corpos, pelo menos 10 sem-terra foram executados.
Sete lavradores foram mortos por instrumentos cortantes, como foices e
facões.
Em 12 de fevereiro de 2005, a Irmã
Dorothy Mae Stang foi assassinada, com sete tiros, aos 73 anos de idade, no dia
12 de
fevereiro de 2005, em uma estrada de terra de difícil acesso, a
53
quilômetros da sede do município de Anapu. Defensora de uma
reforma
agrária justa e conseqüente, Irmã Dorothy
mantinha intensa agenda de diálogo com lideranças camponesas, políticas e
religiosas, na busca de soluções duradouras para os conflitos relacionados à
posse e à exploração da terra na Região
Amazônica.
A violência no campo é dramática e está aliada a constante impunidade. De
1971 a 2006, foram
assasinados 774 trabalhadores e, 70% dos inquéritos não foram abertos ou
concluídos pela polícia. O julgamento da Irmã Dorothy foi considerado uma
exceção ”relâmpago”, onde quatro de seus cinco assasinos foram condenados e
estão presos. Este fato tem sido justificado pela repercussão e pressão
internacional geradas (O globo, 22/06/2007).
Em quase todos os casos de homicídio, a perseguição é dirigida
contra líderes camponeses, sindicalistas, padres e outros religiosos. A
perseguição é praticada por pistoleiros, integrantes da Polícia Militar ou
colaboradores da corporação. A impunidade é comum nos conflitos fundiários.
O
Pará tornou-se a região com maior incidência de conflitos agrários e ambientais
no país e também uma das áreas com maior incidência de denúncias de existência
de trabalho em condições análoga a de escravos. Por conseqüência, trata-se de
uma das áreas no mundo com maior incidência de ameaça aos direitos
humanos.
Novas
estratégias sobre o mesmo território: a neo-colonização democrática no
Pará
A – A
intervenção social em São
Domingos do Araguaia e o Projeto
Rondon
A
retomada do Projeto Rondon teve como um dos seus focos centrais de atuação em
2006 uma inserção de caráter político-social em várias regiões no Brasil, em
especial a Amazônia, com trabalhos realizados em 87 municípios. O conjunto de
ações foi subdividido em dois blocos, um a propor iniciativas nos campos da
Saúde e da Cidadania e outro a trabalhar com os temas da formação de
Cooperativas de Trabalhadores Rurais e a elaboração de debates preparatórios
para um Plano Diretor Participativo. De forma bastante distinta a um perfil mais
propriamente assistencialista, que caracterizou o Projeto Rondon no passado, a
nova configuração indicava, na maioria dos seus itens, uma atuação indutora, por
parte das equipes universitárias, a auto-organização local.
“Integrar
para não entregar!” era o lema, na década de 1960, dos primeiros rondonistas. Em
1966, um grupo de professores da Universidade, do então Estado da Guanabara,
procurara incentivar os estudantes universitários a conhecer a realidade deste
país continental, multicultural e multirracial e, especialmente, proporcionar a
oportunidade de contribuir para o desenvolvimento social e econômico do país. A
primeira operação ocorreu em 1967, onde estudantes e professores do Rio de
Janeiro deslocaram-se para o então Território de Rondônia, com o intuito de ter
contato com o interior da Amazônia.
A
iniciativa conquistou os estudantes, que participavam cada vez em maior número.
Em 1970, o Projeto Rondon foi organizado como órgão autônomo, e em, 1975, foi
transformado em Fundação Projeto
Rondon. Durante os 22 anos em que permaneceu em atividade o
projeto envolveu mais de 350 mil universitários em caravanas que percorreram
todas as regiões do país. O Projeto Rondon foi extinto em 1989.
Em
2003, a UNE
encaminhou uma proposta ao governo federal, sugerindo a reativação do Projeto
Rondon. Para viabilizar a proposta apresentada foi criado um grupo de trabalho
inter-ministerial, que estabeleceu as diretrizes e objetivos do Projeto e
definiu a sistemática de trabalho a ser adotada na sua execução. Assim, o
Projeto Rondon foi retomado no ano de 2005.
Ao
assumir como enfoque três pontos anteriormente polêmicos dentro de quatro, resta
saber se as equipes militares que implementaram a logística dessas Operações, em
especial a Operação Amazônia 2006, estavam cientes da complexidade que se
avizinhava. Cremos que não, pelo menos não de todo, ainda que estivesse clara
uma orientação geral para uma convivência amistosa e mesmo
paternalista para com todo o contingente de jovens estudantes. Dos quatro pontos
estratégicos da missão, Saúde, Cidadania, Formação de cooperativas e Planos
Diretores, os três últimos se distinguiam completamente do perfil do antigo
Rondon. E, não obstante essa profunda alteração nas diretrizes, assumindo metas
claramente políticas e forçosamente críticas em face do histórico de violência
na região, parecia não haver uma atitude diferenciada na apresentação dos
militares, conseqüente aos objetivos apresentados pelo Edital que convocara a
participação das universidades.
Praticamente todas as equipes tiveram que, num primeiro momento,
deslocar-se das diversas capitais no país, para Brasília, onde o presidente Luís
Inácio Lula da Silva, saudou os rondonistas. Em seguida, cada grupo rondonista
seguiu em novo vôo, em aviões
Hércules, para suas regiões de destino. As equipes que iriam
atuar na Amazônia Oriental desembarcaram em Marabá, onde restaram durante dois
dias junto ao 34º Batalhão de Infantaria de Selva, sendo recebidos com muita
atenção e entusiasmo, em meio a desfiles das tropas, apresentação das armas,
demonstração de artilharia, apresentação de práticas de guerra etc.
No segundo dia, todos tiveram de participar de um “curso de
sobrevivência na Selva”, que incluía noções sobre acender fogo com elementos
primários, fazer forno com folhas e gravetos, identificar vegetais que guardavam
água, capturar cobras venenosas e mesmo estripar animais para alimentação. Os
mandamentos do guerreiro da selva eram repetidos em tom de ladainha e o grito
“Selva!” tornou-se um sucesso, na versão ainda que irônica dos estudantes. O
binômio hierarquia-disciplina era apresentada como eixo central para se auferir
resultados em prol de uma nação efetivamente soberana. O objetivo parecia ser
impressionar positivamente os jovens, apresentando um Exército audaz, pleno de
valores cívicos e pronto a defender a floresta amazônica de toda e qualquer
sorte de ameaças. Todavia, em conversas já em meio a esses treinamentos,
relativas à força utilizada pelos militares na Operação Araguaia, todos, sem
exceção, mesmo os oficiais mais jovens, foram partidários de considerar aquela
como uma ação necessária e que, se fosse o caso, estariam prontos a implementar,
uma vez que o que estivera em jogo fôra a segurança nacional, ameaçada pela
tática de guerrilha do PCdoB.
Ao
determinar, através de seu artigo 182, a elaboração
de planos diretores participativos para os municípios com mais de 20 mil
habitantes, a CF 1988 e, em seguida, o Estatuto da Cidade, Lei 10.251/2001,
iniciou uma nova estratégia de controle territorial, numa profunda alteração de
paradigmas na hierarquia de poderes entre os entes federativos. O Município, que
até então, diante do jogo de forças na política brasileira, sofrera,
historicamente, uma subalternização a um modelo de empoderamento dos Estados e
até mesmo dos centros de decisão regionais, a partir da construção de um modelo
de federalismo artificial, passava a concentrar ferramentas para uma atuação
efetiva que possibilitasse a intervenção sobre o ordenamento territorial.
De
uma hora para a outra, a estrutura deliberativa tornara-se o cerne da gravidade
política local, regional e nacional, propalada pelos ciclos de Conferências das
Cidades, realizados no correr dos anos de 2003 e 2005. E o poder público
municipal via-se convertido de mandonismo local para uma estrutura semelhante às
das empresas, devendo apresentar relatórios, balanços e cumprir etapas, metas e
objetivos bastante explícitos, sob o controle múltiplo dos Tribunais de Contas,
dos repasses dos governos estadual e federal e, sobretudo, dos próprios
munícipes, pela via dos conselhos deliberativos.
A equipe da Universidade Federal Fluminense chegou em fevereiro de 2006
ao município de São Domingos do Araguaia, cuja avenida central fora aberta para
servir de pista de pouso para os aviões das Forças armadas quando da Operação
Araguaia. O local, então conhecido como São Domingos das Latas, fora também a
base do Destacamento A dos guerrilheiros do PCdoB e, em especial, do acampamento
conhecido como “Metade”, pois ficava entre os outros dois acampamentos do
Destacamento. O antigo lugarejo desenvolvera, ganhara autonomia e se
municipalizara, sendo atualmente a cidade mais próspera do
Araguaia.
Diversas foram as ações realizadas em São
Domingos do Araguaia e cabe aqui tão somente uma visão geral e
resumida.
Fôra feito, antes de partir, contato com o poder público local, na figura da
Secretária de Educação, a qual, todavia, não demonstrara conhecer da Operação.
Chegados ao município a equipe foi à sede da prefeitura e, juntamente com os
oficiais, solicitou reunião imediata com as autoridades locais. Acorreram quase
todos os secretários e o vice-prefeito, mas o prefeito não fora localizado;
julgava-se que estivesse em uma de suas fazendas, fora do local. Só então, a
partir da iniciativa da Secretária de Educação, que assumiu o comando político,
foram providenciadas instalações para as equipes da UFF e da Universidade
Metodista de Santos (UNIMES), que também atuaria em São
Domingos do Araguaia, com ênfase na meta
Saúde.
Foram eixos centrais da atuação da UFF, portanto, os temas do
Desenvolvimento local sustentável e da Gestão Pública. Quanto ao primeiro eixo,
centrado no fortalecimento de cooperativas rurais, foram realizadas reuniões no
Sindicato dos Trabalhadores rurais de São Domingos do Araguaia trabalhando os
seguintes temas: 07/02/2006 – Diagnósticos dos conflitos no campo; 08/02/2006 –
Legislação agrária, histórico e financiamento; 09/02/2006 – Direito ambiental e
desenvolvimento sustentável; 10/02/2006 – Tecnologias
sociais
Obteve-se, como resultado, cerca de 50 lideranças rurais presentes,
“capacitadas” quanto à criação e fortalecimento de cooperativas e sindicatos
rurais. Em diagnósticos prévios realizados, conheceu-se a forte organização
local, todavia permeada pelas disputas intestinas para a presidência do
Sindicato, o qual por sua vez, era visto como trampolim para a candidatura
política. Entre as dificuldades encontradas, sobressaia a distância de alguns
assentamentos, atuando como fator impeditivo para um público maior. Na segunda
semana, as ações foram concentradas na ampliação desse contato, realizando
visitas às vilas, comunidades tradicionais e assentamentos, chegando aos
seguintes locais: 11/02/2006 – Vila São José, comunidade de quebradeiras de
coco; 11/02/2006 – Reserva Indígena Suruí Sororó; 13/02/2006 – Vila Nazaré;
14/02/2006 – Projeto de Assentamento Veneza; 15/02/2006 – Comunidade São
Benedito; 16/02/2006 – Projeto de Assentamento
Almescão.
Como resultados dessa fase, foram realizadas palestras e debates com as
comunidades, apresentando os principais aspectos trabalhados nas oficinas na
semana anterior com as lideranças, chamando atenção à conscientização quanto à
importância de participarem também do processo de discussão do Plano Diretor
Participativo, em vista de a maior parte da população de São Domingos do
Araguaia residir no meio rural.
Contudo, algumas questões políticas específicas sobre o modelo de
planejamento da Operação Amazônia do Projeto Rondon começaram a ficar patentes.
Uma frase de uma liderança entre as quebradeiras de coco babaçu, quando
chegou-se à comunidade de Vila São José é exemplar para demonstrar esse impasse.
Ao notar o caminhão do Exército e o oficial fardado à porta, houve um momento de
recuo e de apreensão e a indignação que soou quase involuntária. “Quê esse faz
aqui?”, perguntou-nos, dirigindo um olhar ao tenente, “Eles só vem nos prender”.
Em conversas com ela e com os demais presentes e acabamos por dizer: “Há trinta
anos atrás, os militares vieram nos pegar, hoje eles vêm nos trazer, é sinal de
que, talvez, alguma coisa tenha mudado”.
Quanto ao segundo eixo, do desenvolvimento local sustentável, realizamos,
na primeira semana, o Curso Plano Diretor Participativo, com a seguinte
estrutura: 06/02/20006 – Plano Diretor Participativo: o que é?; 07/02/2006 –
Plano Diretor Participativo: principais diretrizes; 08/02/2006 – Legislação;
09/02/2006 – Projetos, como fazer;10/02/2006 – Cidades
sustentáveis
Como resultado, obteve-se cerca de 70 inscritos, em especial servidores
municipais e lideranças da sociedade civil organizada. Entre as dificuldades
encontradas, avultava a ausência dos gestores públicos, destacadamente os
secretários municipais e o prefeito.
Na segunda semana, realizou-se a Conferência preparatória do Plano
Diretor Participativo de São Domingos do Araguaia, com o seguinte cronograma:
13/02/2006 – Financiamento e Geração de emprego e renda; 14/02/2006 –
Desenvolvimento urbano e rural;15/02/2006 – Gestão democrática; 16/02/2006 –
Aprovação dos textos, do regimento interno, do regulamento e do
calendário
Entre os resultados, obteve-se a participação de cerca de 70 cidadãos,
dentre servidores municipais e lideranças da sociedade civil. Foram elaborados
vários documentos e entregues oficialmente ao prefeito, ao presidente da Câmara
de Vereadores e ao presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Foi
realizado abaixo-assinado solicitando a implementação imediata do Plano Diretor
Participativo, o qual, no momento da saída do Rondon contava com mais de 500
assinaturas. Dentre as dificuldades encontradas, sublinhe-se a completa omissão
do prefeito e da maioria do secretariado. Apenas houve apoio irrestrito das
secretárias de Educação e de Saúde.
Ora, as ações da primeira semana estiveram centradas na realização de
oficinas, na parte da manhã na sede do Sindicato dos trabalhadores rurais, na
parte da tarde, no auditório da prefeitura, tematizando o Plano Diretor
Participativo. Procurou-se centrar forças justamente neste para fazê-lo objetivo
aglutinador dos demais, trazendo para seu bojo, os temas referentes aos demais
eixos previstos no Edital do Projeto Rondon. Nesse sentido, foi organizada, para
o final de semana, reunião com as demais equipes, juntamente com a atuação de
pesquisadores e militantes locais, em especial do
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem terra (MST). A idéia era
realizarem-se duas ações especiais: um ato dos rondonistas na Curva do S,
em Eldorado dos
Carajás, simbolizando um protesto pelo massacre passado a dez
anos, e, ao final da Operação, a Marcha do Araguaia entre São Félix do Araguaia
e São Domingos do Araguaia, reunindo, em um evento para o qual seria dada ampla
publicidade, as diversas populações das diversas comunidades com suas faixas e
cartazes reivindicatórios.
Todavia, diante da pouca articulação conseguida pelas equipes rondonistas
presentes em São Félix do
Araguaia, o jeito foi converter a Marcha no que passou a ser chamada de Festa da
Cidadania. Assim, no coreto da Praça Central de São Domingos do Araguaia, como
encerramento das atividades do Projeto Rondon 2006, com coordenação conjunta das
duas equipes, a da UFF e a da UNIMES, reuniu-se cerca de 300 pessoas, com
apresentação de teatro popular, onde os adolescentes da cidade trabalharam temas
que lhes eram caros, como as drogas e a prostituição, com apresentação de
música, com autores locais e, em especial, com a brilhante e inesquecível
apresentação do coro das senhoras quebradeiras de coco babaçu, e dança, com
ritmos típicos maranhenses, migrados para o Araguaia, além de entrega de
troféus, medalhas e discursos. Cada comunidade rural levou seus produtos, sendo
montado uma grande “Mesa da terra”, além de diversas faixas e reivindicações. As
autoridades locais, impressionadas, agradeceram ao Projeto Rondon e enfatizaram
a continuidade que dariam ao processo do Plano Diretor
participativo.
De volta ao Batalhão, em Marabá, foram feitas apresentações das diversas
equipes e nossa sugestão ao comandante foi a de que houvesse mais troca entre
universidade pública e Forças Armadas, ambas braços do Executivo nacional, eles
deveriam participar mais de cursos universitários, ampliando o horizonte crítico
e acadêmico, nós deveríamos vir mais a campo, conhecendo mais e melhor a
realidade nacional, tão diferenciada.
Em São
Domingos do Araguaia, cumprindo o que fora acordado na Festa da
Cidadania, o Município elaborou o Projeto de Lei do Plano Diretor Participativo
(PDP) e realizou as Audiências Públicas, aprovando-o. O PDP de São Domingos de
Araguaia contemplou parte dos temas debatidos nas Oficinas e na Conferência
realizadas à época pelo Projeto Rondon e garantiu a gestão democrática da cidade
através da criação, em seus art. 110 usque 112, de um Conselho Municipal de
Desenvolvimento, além da realização de Conferências Municipais anuais (art.s 115
e 116) e da criação de um Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano (art.
118).
B – A intervenção social em Serra
Pelada e a Companhia do Vale do Rio
Doce
Serra Pelada é uma vila situada no Município de Curionópolis, a
50 km a leste da
Serra dos Carajás e 35 km a leste do
Município de Parauapebas. Fica a uma distância de 50 km do núcleo
urbano central. O povoado de Curionópolis nasceu em
Marabá, no final da década de 1970, a partir de
um aglomerado de pessoas que se instalou no km 30 da rodovia PA-275, na
expectativa de trabalho no Projeto Ferro Carajás da CVRD ou no garimpo de
ouro.
A população de Serra Pelada foi estimada, em 2004, em cerca de
1.500 famílias e cinco mil habitantes, com predominância das faixas etárias mais
jovens (até 15 anos) e avançadas (maiores de 60
anos).
À parte da CVRD, a principal atividade econômica da região é a
agricultura de subsistência e a criação de rebanhos, além de inúmeros pequenos
garimpos rudimentares clandestinos.
A organização social da vila envolve cinco grupos: (1) Associação de
Bairros (ABASP); (2) Associação de Moradores (AMOSP); (3) Associação dos
Hansenianos; (4) Cooperativa de Garimpeiros de Serra Pelada (COOMIGASP); e (5)
Sindicato dos Garimpeiros de Serra Pelada
(SINGASP).
A história da região da Serra dos Carajás muda radicalmente com a entrada
em cena da Companhia
Vale do Rio Doce, a partir de 1969, quando se formou a Amazônia
Mineração associada à empresa United
States Steel.
Em 1974, foi concedido à CVRD o direito de lavra sobre uma área de
10.000
hectares na região que viria a ser Serra Pelada. Em 1976,
um geólogo do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) encontrou
amostras de ouro nesta região. A notícia da descoberta, mantida inicialmente em
sigilo, começou a se espalhar em 1977. Em outubro deste ano, a CVRD confirmou a
existência de ouro na Serra dos Carajás e passou a ter o controle da exploração
na região (www.ufpa.br).
Em 1979, um garimpeiro encontrou ouro no local. O ministro de Minas e
Energia, do Governo Geisel, Shigeaki Ueki, fez o anúncio oficial da existência
do metal em Carajás. A
partir de 1980, levas de migrantes se deslocaram para o Pará e invadiram o
garimpo, que pertencia a uma subsidiária da CVRD, a Rio Doce Geologia e
Mineração (DOCEGEO).
Os garimpeiros faziam funcionar bombas ininterruptamente para drenar o
fundo da cava, já que ela havia descido vários metros abaixo do lençol freático.
Os “formigas”, pessoas que carregavam os sacos de aniagem que pesavam em torno
de 50 quilos, cheios de barro até a boca da cava, faziam em média, dez viagens
por dia pelas encostas íngremes do buraco. Essas encostas várias vezes
desabaram, soterrando dezenas de garimpeiros. Nos tempos áureos, entre 1980 e
1983, Serra Pelada produziu cerca de 40 toneladas de ouro. Em 1980, chegou a ter
80 mil habitantes e relata-se que a impressão que dava era de um verdadeiro
formigueiro humano (Jornal A Nova Democracia, dezembro de 2002 e janeiro de
2003).
Nessa ânsia, se sujeitavam a viver da forma mais miserável
possível. Há histórias que revelam por quão pouco se podia matar em Serra
Pelada: morria-se por cachaça, por mulher e por ouro. Tudo era
feito à mão. Não havia esteiras para transportar rejeitos, nem equipamentos para
desenterrar as vítimas de desmoronamento. O mercúrio impregnava o ambiente com
seu halo de contaminação e morte. Os habitantes estavam sempre cobertos de
barro, alimentavam-se mal, dormiam em barracas de lona e, em volta acumulavam-se
lixo e animais. E a invasão dos garimpeiros na área de pesquisa da CVRD,
danificou o local impedindo a continuidade de novas pesquisas de ouro e de
outros minerais, como o cobre, ferro e o calcário (Entrevista realizada com o
Gerente de Projetos da Fundação Vale do Rio Doce, em
01/11/2005).
Como a entrada de bebidas e mulheres no garimpo era proibida,
várias “biroscas” e prostíbulos foram instalados a 35 km do garimpo,
onde mais tarde foi fundada a cidade de Curionópolis,
que se tornou município em 1988 (Jornal A Nova Democracia, Dezembro de
2003).
De 1984 a
1986 a extração do
ouro na região se manteve em torno de 2,6 toneladas anuais nesse biênio; caiu
para 2,2, em 1987; e, em 1988, reduziu-se para 745 quilos. Em 1992, no governo
de Fernando Collor (1990-1992), editou-se a instrução nº 24, que retirou Serra
Pelada dos garimpeiros, tombando-a pelo Instituto Brasileiro do Patrimônio
Cultural, e transferiu o domínio para a CVRD. A CVRD já não se interessava pela
região e o abandono generalizado do poder público fez aumentar consideravelmente
a pobreza, a miséria e a violência em Serra
Pelada (www.reporterbrasil.com.br)
.
A partir deste contexto, iniciou-se uma disputa acirrada entre
aqueles que abandonaram a região do garimpo e os que ficaram. Os que ficaram
eram liderados por Curió, já prefeito de Curionópolis e líder da Cooperativa dos
Garimpeiros de Serra Pelada. Os que abandonaram, não se viam representados pela
Cooperativa e criaram uma associação informal, que mais tarde, se transformou no
Sindicato do Garimpeiros de Serra Pelada, liderado por Luiz da Mata e António
Cunha Lemos.
Em 19 de Novembro de 2002, data da eleição para a escolha da nova
diretoria da Coomigasp, muitos garimpeiros foram para a região. Ocorreram
denúncias de que o grupo ligado ao Prefeito Curió (reeleito) estava impedindo a
entrada dos outros garimpeiros. Na época, dizia-se que o clima era de guerra
em Serra
Pelada. E no dia 17 de Novembro, foi
assassinado, com 5 tiros, o presidente do Sindicato dos Garimpeiros de Serra
Pelada (Antônio Cunha Lemos).
Enfim, a associação entre miséria e violência é evidente em Serra Pelada.
A expectativa de continuar a extraçãode ouro era tão grande nos
anos 1970, a ponto do
então ministro do governo militar Shigeaki Ueki afirmar na época, que pagaria a
dívida externa com a extração do ouro. Ao contrário, a exploração do ouro acabou
gerando um débito social interno muito maior.
Na tentativa de reverter este quadro, a CVRD desenvolveu o Programa de
Desenvolvimento Econômico e Social de Serra Pelada. A iniciativa envolveu um
diagnóstico das condições sociais da vila e a implantação de projetos agrícolas
e de assistência nas áreas de saúde e educação. “Com essas medidas, seria
possível gerar até 400 empregos”, explica Roberto Nomura, da CVRD, responsável
pela área de Serra Pelada (www.
reporterbrasil.com.br).
O diagnóstico da CVRD avaliou que de uma população total de 5.197 pessoas,
fixada no território, 90% moram
em Serra
Pelada há mais de 10 anos e, conforme
constatado, vivem em situação de miséria absoluta, aquém de parâmetros
aceitáveis. Como exemplo dessa situação, o diagnóstico indicou que 75% da
população não possui vaso sanitário, 85% não têm pia e 83% não possui chuveiro.
Do total da população, 60% vive com uma renda familiar menor que um salário
mínimo e mais de 50% com renda familiar per capita entre 0 e 0,5 salário mínimo.
Neste quadro de pobreza, o nível de escolaridade é bem baixo, principalmente,
para a
população
com 15 anos ou mais. Quanto ao tipo de trabalho na região, 60% afirma ter
experiência em atividades
agrícolas. Apesar das cinco organizações da sociedade civil
existentes em Serra
Pelada, o capital social necessário para gerar laços de
confiança e solidariedade na comunidade é quase inexistente e, os laços que ali
se fazem são permeados por inúmeros conflitos. Além disso, constatou-se que 49%
da população não tem, não sabe ou não reconhece a liderança local, mostrando a
ausência de uma liderança expressiva capaz de mobilizar as energias associativas
da comunidade ou mobilizar o poder público para uma ação comunitária (Relatório
do Programa de Desenvolvimento Econômico e Social de Serra Pelada, CVRD, 2004 e
do Projeto de Saúde de Serra Pelada, USP, 2005).
Destacaremos a seguir as estratégias do Projeto Saúde de Serra Pelada,
administrado pela CVRD, como forma de enfrentamento das externalidades negativas
da mineração.
Os recursos deste Programa estão vinculados à política estratégica de
responsabilidade social empresarial do BNDES, que concedeu financiamento
industrial à empresa para a criação da Usina de Pelotização em São Luís
(Maranhão) e
associou à operação, o empréstimo para investimentos sociais (subcrédito social)
em Serra
Pelada, distrito do município de Curionópolis, no sul do Pará,
no valor aproximado de R$ 4,7 milhões.
A motivação para a implementação deste Programa em Serra
Pelada surgiu a partir do interesse de geógrafos e demais
funcionários da empresa que trabalhavam na vila de Serra Pelada, e constataram a
situação de miserabilidade de seus moradores. Anteriormente, a contribuição
social da companhia limitava-se à doação de cestas básicas à população da
região. Avaliou-se que esta doação não estava gerando nenhuma mudança social e
que deveria ser feita uma intervenção mais direta pela CVRD. Envolvida com a
idéia de responsabilidade social, a companhia decidiu mudar a forma de atuação:
de ação assistencialista passou a atuar com investimento social
estratégico.
Este Programa consistiu em estabelecer ações de desenvolvimento econômico
e social para o povoado de Serra Pelada, envolvendo auto-sustentabilidade,
geração de ocupação e renda, participação social, melhoria na saúde e na
educação através de três projetos: Educação, Saúde e Assistência Agrícola, para
uma população de aproximadamente cinco mil habitantes.
No intuito de estabelecer condições para o
desenvolvimento sustentado do povoado de Serra Pelada, seus objetivos
foram: 1)
garantir a
melhoria das condições de vida da população de Serra Pelada e o desenvolvimento
da sua organização e conseqüente autonomia; 2) promover a melhoria das condições
de educação e saúde da população; 3) incentivar a participação social, por meio
da criação de instrumentos de gestão compartilhada; 4) incentivar a produção e
as atividades promotoras de trabalho e geradoras de renda, por meio de arranjos
produtivos locais; e
Com essas ações a CVRD buscava a concretização da política de
responsabilidade social exigida pelo BNDES para o financiamento da Usina de
Pelotização no Maranhão.
Inicialmente este Programa abrangia a região de Serra
Pelada e cobria o período de 2002 a 2004. Ao
final de 2004, os coordenadores dos Projetos avaliaram que nem todos os
objetivos haviam sido atingidos. Seria necessário reunir esforços para dar maior
incremento à mobilização do poder público e da população local, aspectos
considerados mais frágeis para o desenvolvimento econômico e social da região de
Serra Pelada.
Resumindo, o Programa de Desenvolvimento Econômico e Social
em Serra
Pelada foi desenvolvido em três anos, a partir da atuação dos
seguintes projetos sociais: o Projeto
Educação, que consistiu basicamente na melhoria do desempenho dos alunos da rede
pública do ensino fundamental e na capacitação dos profissionais das escolas
públicas; o Projeto Agrícola, que teve o objetivo de capacitar os produtores
locais para o segmento agrícola buscando potencializar os recursos produtivos e
geradores de renda da comunidade; e o Projeto Saúde, que além de diagnosticar as
condições de saúde da população realizando atendimentos pontuais ambulatoriais,
preocupou-se em articular as ações de saúde com os poderes públicos municipais,
estaduais e federais.
Considerações finais
O
Pará inicia o século XXI com os mesmos conflitos do passado. Estado e empresa
disputam a definição de suas prioridades no território que está sob seus
domínios. As sobreposições de territórios e de domínios deixam claros os
diversos conflitos que surgem envolvendo diferentes setores da sociedade civil.
A resolução desses conflitos passa pela definição de prioridades e do grau de
desenvolvimento que cada um terá em relação ao território de seu domínio ou de
sua influência.
A
solidariedade construída em torno desses projetos (Rondon e CVRD) é uma resposta
individualista que tem se tornado hegemônica no Brasil frente às questões
sociais. Deixa de ser uma resposta da responsabilidade privilegiada do Estado ou
da responsabilidade de todos que contribuem compulsoriamente para o
financiamento do Estado.
Agora, predomina a auto-responsabilidade de indivíduos, inclusive
daqueles que possuem mais necessidade ou de ações sociais de empresas. Desta
forma, deixa de ser um direito dos cidadãos para ser um trabalho voluntário de
solidariedade.
Todas
as questões que envolvem as relações de poder e as formas de desenvolvimento dos
municípios do Pará estão ainda longe de serem resolvidas, devido a diferentes
interesses dos atores locais. Os municípios apresentam antigos problemas sociais
agravados com a introdução da mineração e por planejamentos realizados por
grupos rivais que disputam o poder local.
Sem
perspectivas de gerar renda ou de atrair indústrias e serviços, os municípios
paraenses entregam seu futuro em termos de desenvolvimento econômico às vontades
dos projetos que poderiam ser implantados voluntariamente por parte da Companhia
Vale do Rio Doce ou de universidades públicas e
privadas.
“Os
coronéis de hoje” são aqueles que recebem influência dos dirigentes da CVRD, e o
Estado um mero coadjuvante na economia dos recursos minerais.
Enquanto no passado a lógica das empresas e do Exército brasileiro
incorporava valores de obediência, ordem e disciplina; hoje, eles passaram a
valorizar a idéia moral de responsabilidade para com os cidadãos e com a
sociedade. Como afirma Comte-Sponville (2005), a moral tem se tornado desde os
anos 80 um tema da moda. Este fato não significa essencialmente que as pessoas e
as empresas se tornaram mais virtuosas; mas, esse retorno da moral na primeira
linha dos discursos e das preocupações já é um fenômeno que merece ser levado em
conta (2005: 17-19).
Portanto, observamos que a ambigüidade contida nestas novas
intervenções sociais representam o que chamamos de concepção neo-colonizadora
democrática.
Esta
idéia pode ser incorporada ao que Boltanski e Chiapello (2002) chamam de um
“novo espírito do capitalismo”. Os valores de responsabilidade e de
solidariedade foram capturados da “crítica artística” produzida nos anos 1960 e
o atual capitalismo passou a adotar o empreendedorismo criativo através de uma
proposição mais relacional na sociedade. Desta forma, contribui para justificar
a ordem e legitimar os modos de ação e disposições coerentes com o capitalismo.
Este “novo espírito do capitalismo”, ainda que não generalizado, é uma tentativa
para construir uma justificativa ideológica que venha garantir sua legitimidade
e o compromisso social dos indivíduos. Estamos, portanto, diante de uma nova
forma de atacar a violência e de resolver a questão
social.
É um risco político, na medida em que tenta domesticar o espaço público
na luta pelos direitos de cidadania. É difícil visualizar uma saída quando o
poder local não controla, não fiscaliza e não protege o bem público. As opções
das lideranças políticas nacionais e governamentais são aspectos decisivos na
definição das políticas sociais necessárias a serem implementadas. Ignorar o
peso do Estado dessas conduções, implica isentar os governos de sua
responsabilidade pelas decisões tomadas e seus resultados. A ação social
de empresas e o Projeto Rondon sozinhos não dão conta de responder a todas as
demandas sociais.
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