Estilo de vida,
fetiche da mercadoria e mercado imobiliário - relações com a segregação
sócio-espacial em Águas Claras/DF
Dulciene da Costa
Frazão
Resumo:
Este artigo
procura fazer uma reflexão a respeito da ligação entre o estilo de vida, o
fetiche da mercadoria e o mercado imobiliário em Águas Claras (DF), tomando a
segregação sócio-espacial existente nesta cidade como referência. Para alcançar
este objetivo, tentou-se discutir inicialmente a respeito dos conceitos
envolvidos: fetiche da mercadoria, estilo de vida e espaço urbano - suas
relações e resultados. Em seguida, realizou-se uma breve contextualização da
produção do espaço urbano no Brasil e, finalmente, analisou o mercado
imobiliário de Brasília (no qual a segregação sócio-espacial é reforçada pelo
estilo de vida existente) e a origem e desenvolvimento de uma de suas regiões
administrativas – Águas Claras. Nesta cidade, foi possível compreender como o
estilo de vida e o fetiche da mercadoria podem influenciar na organização
espacial, gerando uma considerável segregação.
Abstract:
This
paper intend to do a reflection about the relation among life style, fetishism
of products and property market in Águas Claras (DF), getting socio-spatial
segregation existent at this city as reference. To get this objective, tried to
argue about the concepts: fetishism of products, life style and urban space -
relations and results. Following that, implemented a short context about the
production of urban space in Brazil and, finally, analyzed the property market
in Brasília (where the socio-spatial segregation is reinforced by the life
style) and the origin and development of one of its administrative region –
Águas Claras. At this city, it was possible to understand how life style and
fetishism of products can influence the spatial organization, creating a
considerable segregation.
- Introdução
A
organização espacial no Brasil tem ocorrido de forma impactante no
desenvolvimento do país de maneira ampla, o que se constitui interesse de
diversos campos da ciência, bem como da sociedade. O espaço urbano capitalista
é, ao mesmo tempo, fragmentado e articulado, reflexo e condicionante da
sociedade que abriga. Portanto, caracteriza-se como um conjunto de símbolos e
representa o campo de lutas (CORRÊA, 1999, p. 9).
A
sociedade cujo modo de produção é capitalista, de modo geral, tem sua riqueza
demonstrada por uma “imensa coleção de mercadorias”, ao passo que essa é
responsável pela satisfação das necessidades humanas (MARX, 1996, p. 165). No entanto, essa mercadoria não pode ser
encarada como uma coisa comum, ao passo que seu valor não consiste apenas no seu
uso, mas sim no processo social envolvido na sua troca e, por conseguinte, no
seu caráter fetichista. O produto como objeto de desejo é uma representação de
grupos de indivíduos com status
específicos, com estilo de vida determinados pelo fetiche da mercadoria. Em
outras palavras, a individualidade do gosto e o senso de estilo são
manifestações de grupos específicos da sociedade, o que nos permite inferir que
esse estilo de vida agirá, aliado a outros agentes, na organização espacial. A
área residencial, por exemplo, é um meio no qual os indivíduos expressam seus
valores, seus hábitos de consumo (HARVEY, apud, CORRÊA, 1999, p. 65), ou seja, seu
estilo de vida, o que induz à uma diferenciação residencial, à uma segregação
sócio-espacial.
No
Brasil, o acúmulo de riquezas foi a base do processo de produção e de expansão
urbana (KOWARICK, 1980), o que contribuiu para que a terra e a habitação fossem
transformadas em mercadorias. Fato que, juntamente com a ação do Estado, dos
promotores imobiliários e de outros agentes, estorvou parte da população de seu
acesso e disseminou a segregação no país.
Embora
o processo de organização espacial em Brasília avoque peculiaridades
(principalmente por se tratar de um plano nacional), essa dinâmica também ficou
evidente. A negociação de terra urbana em Brasília foi consideravelmente
influenciada pelo Estado, fazendo com que houvesse a periferização planejada,
onde regiões administrativas (como Águas Claras) foram criadas com o objetivo de
manter esse mecanismo. Embora a cidade referida não tenha sido criada para
abrigar os trabalhadores da capital federal, como diversas regiões
administrativas, também foi originada da segregação planejada de Brasília e
apresenta peculiaridades no seu espaço urbano.
Nessa
perspectiva, o principal objetivo desse trabalho é demonstrar qual a importância
do fetiche da mercadoria na produção do espaço urbano, mais especificamente na
formação do valor de troca da mercadoria imóvel em Águas Claras. Outrossim, o
trabalho em referência se faz necessário, portanto se justifica, na medida em
que busca explicações para o quadro urbano contemporâneo do Distrito Federal de
modo amplo, na tentativa de cooperar na compreensão da cidade. Para isso,
buscará subsídios para entender: a) como o processo de organização espacial é
constituído no capitalismo? b) De que forma os agentes produtores do espaço urbano contribuem
para a segregação sócio-espacial? c) qual a relação entre o estilo de vida, o
fetiche da mercadoria e o mercado imobiliário em Águas Claras? Como principal
referência para a análise crítica dessas questões serão utilizadas a revisão
bibliográfica e a análise de dados jornalísticos.
- Fetiche da
mercadoria, estilo de vida e produção do espaço urbano: conceitos e
relações
2.1
Fetiche da
mercadoria: o produto como objeto de desejo
De
acordo com Marx (1996, p. 165), nas sociedades em que predomina o modo de
produção capitalista, sua riqueza é determinada por uma coleção de mercadorias
ou de coisas, que são objetos responsáveis pela satisfação das necessidades
humanas de modo geral. Esta mercadoria possui caráter duplo, ao passo que
possuem o valor de uso (objeto de uso) e valor de troca (o valor-mercadoria). De
forma sintética, ao contrário do que possa parecer, a mercadoria não é uma coisa
trivial, ao passo que ela possui um caráter místico:
O
misterioso da forma mercadoria consiste [...] no fato de que ela reflete aos
homens as características sociais de seu próprio trabalho como características
objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais
dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o
trabalho total como uma relação social existente fora deles. [...] Não é mais
nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui
assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. [...] Isso eu chamo o
fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como
mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias (MARX,
1996, p. 198-199).
O
autor acrescenta ainda que a alma da mercadoria é revelada a partir do seu
valor, que é realizado somente na troca, ou seja, num processo social. Além
disso, infere que, segundo descobridores econômicos de pérolas e diamantes, o
valor de uso das coisas não depende de suas propriedades, mas o seu valor é
atribuído enquanto coisas (MARX, 1996, p. 207). Nessa perspectiva, pode-se dizer
que a casa pode ser vista como mercadoria da mesma forma que uma pérola: seu
valor não é referente apenas ao uso, como também ao processo social envolvido na
sua troca. Nessa troca, a terra é tida como objeto de desejo, assumindo uma
característica fetichista.
O
fetiche da mercadoria é responsável por criar identidades baseadas na máxima “eu
sou o que posso comprar ou o que possuo”, que, por sua vez, delineará os gostos
culturais e de consumo de grupos específicos, ou seja, seu estilo de vida
(WEBER, 1968; SOBEL, 1982; ROJEK, 1985 apud FEATHERSTONE, 1995,
p.119).
2.2
Estilo
de vida e consumo de mercadorias
Estilo
de vida é uma expressão cunhada pela sociologia no início do século XX, segundo
Reimer, citado em Freire Filho (2003). Com conceito sociológico restrito,
pode-se dizer que estilo de vida conota,
contemporaneamente,
individualidade,
auto-expressão e uma consciência de si estilizada. O corpo, as roupas, o
discurso, os entretenimentos de lazer, as preferências de comida e bebida,
a
casa,
o carro, a opção de férias, etc. de uma pessoa são vistos como indicadores da
individualidade do gosto e o senso de estilo do proprietário/consumidor
(FEATHERSTONE, 1995, p. 119, grifo nosso).
Não
obstante, o autor usa a expressão “cultura de consumo” para dar ênfase ao fato
de o mundo das mercadorias ser ponto central no entendimento da sociedade
contemporânea (FEATHERSTONE, 1995, p. 121). Para ele, o uso de bens materiais, a
oferta, a demanda, a acumulação de capital, etc devem ser vistos como operando
numa esfera de estilos de vida e mercadorias, além de serem tidos como
comunicadores e não apenas como utilidades (fato que corrobora as idéias
marxistas de que o valor da mercadoria vai além de suas propriedades ou do seu
uso, se realizando com a sua troca).
Esse
afastamento da visão da mercadoria como simples utilidades possuidoras de valor
de uso e valor de troca, mostra que há outro fator importante nesse contexto: a
transformação da mercadoria num signo. Fato que enfatizou o papel da cultura na
reprodução do capitalismo, onde predomina “a publicidade e a exposição das
mercadorias nos ‘mundos de sonhos’ das lojas de departamento e dos centros
urbanos” (FEATHERSTONE, 1995, p. 122).
A
preocupação com o estilo de vida faz com que a sociedade não apenas use
determinado bem, como também o exponha. Para Featherstone (1995, p. 123), o
indivíduo moderno não se comunica somente a partir de suas roupas, como também
de sua casa, que será interpretada como presença ou falta de gosto. Portanto,
pode-se dizer que esse estilo de vida será também um dos responsáveis por
delinear o espaço urbano, já que este será consumido como uma
mercadoria.
2.3
O
espaço urbano capitalista
Considerando a
cidade como espaço urbano, Corrêa (1999, p. 8-9) afirma que fragmentação,
articulação, reflexo e condicionante social são características da organização
espacial da cidade. Além disso, é o lugar de diversas classes sociais, o que
inclui suas crenças, valores e seu estilo de vida, que são projetados nas formas
espaciais. Outrossim, o espaço urbano é um produto social, resultado de ações
dos seus agentes na dinâmica de acumulação de capital: proprietários dos meios
de produção, proprietários fundiários, promotores imobiliários, grupos sociais
excluídos e o Estado.
Sabendo que a
posse e o controle do uso da terra urbana é o que direciona a ação desses
agentes, pode-se dizer que os proprietários dos meios de produção são relevantes
consumidores de espaço, ao passo que a terra é tida como suporte físico e também
como expressão de requisitos locacionais. Os proprietários de terra
interessam-se fundamentalmente pelo valor de troca da terra, visto que objetivam
a obtenção de renda fundiária otimizada (principalmente com uso comercial e
residencial de status). Os promotores
imobiliários visam a um preço de venda paulatinamente maior pela sua mercadoria,
que, via de regra, exclui as camadas populares. Os grupos sociais excluídos não
são modeladores do espaço urbano, pois estão submetidos à lógica dos
proprietários fundiários, mas torna-se agente modelador ao produzir a favela. O
Estado, por sua vez, age principalmente na dinâmica da sociedade assumindo papel
de grande industrial, consumidor de espaço, proprietário fundiário, promotor
imobiliário e regulador do uso do solo. Suas ações não são socialmente neutras,
visto que tende a privilegiar a classe dominante (CORRÊA, 1999, p.
13-31).
Corroborando essa
idéia, Gottdiener (1997) afirma que o mercado imobiliário e o Estado
articulam-se para alcançar interesses especiais, influenciando, assim, na
organização espacial. Além disso, o autor também considera a cidade como
socialmente construída por fatores econômicos, sociais e políticos. Enfim,
mundialmente, tal articulação cria mecanismos que levam às segregações e, no
Brasil, essa criação de condições distintas de estilo de vida e a reprodução
diferenciada de classes sociais também foram evidenciadas.
2.3.1
A
segregação sócio-espacial
O
termo segregação foi conceituado pela primeira vez como fenômeno espacial pela
Escola de Chicago, caracterizado como um processo ecológico, resultado da
competição impessoal que formaria espaços de dominação dos distintos grupos
sociais. Por outro lado, os autores da chamada Economia Política Marxista,
distintamente dos estudos das linhas de pensamento científico já citadas,
passaram a se preocupar com os processos e causas da segregação (MIÑO,
2000).
Segundo
Castells (1983), a segregação sócio-espacial seria a expressão espacial das
classes sociais, o reflexo sobre o espaço urbano das desigualdades existentes
entre as relações sociais; um processo de aglutinação em áreas com uma
homogeneidade social interna e diferenças entre elas marcantes.
Roberto
Lobato Corrêa (1999), por sua vez, em menção feita a David Harvey, diz que a
diferenciação residencial (ou segregação sócio-espacial) deve ser vista como
parte das relações dentro da sociedade capitalista, contendo todos seus
desequilíbrios, desigualdades, violências, etc. entre as classes que a
constituem. Harvey (2001) argumenta que, nas crises de identidade, grupos com
padrões semelhantes tendem a criar espaços protegidos através de práticas
territoriais excludentes. As
cidades passam a abarcar estilos de vida, valores distintos e o fetiche pelas
imagens pré-fabricadas que influenciam na produção do
espaço.
- A produção do
espaço urbano no Brasil: breve contextualização
3.1 O acúmulo de
riqueza como base da organização espacial brasileira
De
acordo com Kowarick (1980), o processo de produção e de expansão urbana
brasileiro esteve calcado no acúmulo de riquezas, a partir do qual não pode-se
considerar o aspecto desordenado das cidades como algo incoerente. Até porque,
segundo Hirsch (2005), as crises e contradições evidenciadas são condições
essenciais para o processo de acumulação de capital.
Sob o
ponto de vista de Rodrigues (1997), no Brasil, a transformação da terra urbana
em mercadoria permitiu o acúmulo de riqueza e, embora sua valorização não fosse
produto do trabalho, fez com que assumisse característica de capital. Seu custo
foi definido para não ser uma mercadoria popular e sim acessível somente à
determinada classe.
No
entendimento de Corrêa (2001), a cidade moderna, capitalista, e seus processos
de transformação devem ser pensados como sendo reflexo da sociedade que abriga,
das relações sociais. Para ele, toda cidade tem relação estreita com a
sociedade. Esta relação pode ser evidenciada pelo já mencionado estilo de vida,
que determinará o tipo de espaço que será produzido para satisfazer determinado
grupo social.
Assim,
infere-se que a riqueza da sociedade brasileira pode ser demonstrada pela terra
enquanto mercadoria. Não como mercadoria comum, apenas com valor de uso, mas uma
terra que viabiliza um sonho de consumo, um objeto de desejo: a casa. Dessa
forma, bem como a casa, a terra também pode ser vista como indicador do estilo
de vida do indivíduo. Entretanto, como essa consciência de si estilizada é
distintivo de grupos de status
específicos, surge como reforço da segregação na cidade, dentre elas, a
segregação sócio-espacial.
3.2
A
segregação sócio-espacial no Brasil
Em
suma, no Brasil essa separação de determinada parcela da população ocorreu de
forma impactante, tendo visto que políticas falsamente foram elaboradas em nome
dos desassistidos (como o BNH e o SFH), a valorização imobiliária predominou,
grande parte das terras pertenciam ao Estado e uso do solo se deu de maneira
arbitrária. Além disso, pode-se perceber que a ideologia é o gestor urbano no
Brasil, o que cerceia o direito à cidade e à moradia legal que deveriam ser
inerentes ao cidadão brasileiro, mas que são protelados pelo
Estado.
De
onde deveriam ter surgido soluções para o uso do solo urbano de forma justa,
foram originados meros paliativos. Isso foi perceptível, por exemplo, em Recife,
onde as favelas surgiam instantaneamente e os conflitos daí originados foram, em
maior parte, apaziguados pelo Judiciário, ou mesmo pelos governos municipal e
estadual (Neto e Souza, apud,
Maricato, 1996).
De
acordo com Kowarick (1980), a grande São Paulo, por exemplo, é marcada pelo
aspecto irregular do espaço urbano, cuja distribuição populacional revela o
nível de segregação existente. Os trabalhadores se acumulam nos bairros
periféricos, cortiços ou favelas, ícones da pobreza e da privação, enquanto as
grandes áreas próximas ao centro permaneciam vazias à espera de valorização.
Aliada à valorização imobiliária, calcada nas relações capitalistas, é essa a
dinâmica que parece evidenciar-se em Brasília, a capital
federal.
- O mercado
imobiliário de Brasília – o reforço da segregação pelo estilo de
vida
4.1
A expansão de Brasília e a segregação
planejada
Segundo Paviani
(1989), a negociação da terra urbana do Distrito Federal foi iniciada a partir
de 1960, quando terras públicas foram transformadas em residenciais e a
população pouco favorecida foi expulsa para a periferia. Até então a terra era
exclusivamente do Estado e com fins sociais.
A
influência do Estado na construção de Brasília fez com que houvesse a
periferização planejada, com um centro concentrando equipamentos e serviços e
regiões administrativas (RAs) criadas estrategicamente para manter esse
mecanismo, tal qual a criação de Águas Claras.
O
dirigismo estatal em Brasília foi fortemente constatado pela presença imutável
de assistencialismo e paternalismo, ações que sequer dirimiram a iniqüidade
social ou espacial. Tal fato foi corroborado pela não implantação de
infra-estrutura adequada nas periferias, o que aumentou o círculo da pobreza, os
custos sociais e, conseqüentemente, a especulação imobiliária. Nessa
perspectiva, Cidade (2005) enfatiza que o Estado reforça a segregação existente,
utilizando-se de seu caráter amenizador e de medidas paliativas, além de
privilegiar os interesses de certos grupos e reproduzir a dominação social. Não
obstante, pode-se dizer que esse esquema de reforço da segregação pelo Estado
foi dado em Brasília com a criação da Terracap (Companhia Imobiliária de
Brasília).
4.2 A Terracap: influência do Estado no
processo de periferização em Brasília
A
Terracap é uma empresa pública, desmembrada da Novacap (Companhia Urbanizadora
da Nova Capital), com participação acionária do GDF e da União, com 51% e 49%,
respectivamente, responsável pelos processos de licitação de terras públicas no
Distrito Federal. Sua atuação é componente essencial na lógica imobiliária em
Brasília, uma vez que se trata do preço referencial do solo que irá condicionar
a valorização imobiliária da Capital Federal.
Contudo,
pode-se perceber que a utilização do estilo de vida (por meio do fetiche da
mercadoria) como trunfo da valorização imobiliária tem alterado a lógica
inicialmente apresentada, sem que, necessariamente, o Estado deixe de deter o
papel preponderante de direção.
Enfim,
o projeto da construção de Brasília foi mitificado, originou-se igualitário e
segregou até fora do Distrito Federal com a criação estratégica das regiões
administrativas, denominadas na época de sua fundação de cidades satélite, para
alocar seus construtores, o que comprovou sua discrepância com a realidade
(PAVIANI, 1989). Águas Claras é uma evidência
não só dessa segregação, mas de uma dinâmica “peculiar” em
Brasília.
4.3
Otimização versus periferização: a origem de Águas
Claras
Águas
Claras é a vigésima região administrativa do Distrito Federal, possui uma área
de 808 hectares e distancia vinte quilômetros de Brasília. Começou a ser
construída em 1990, tendo sido projetada por Paulo Zimbres (arquiteto e
urbanista), mas foi classificada como região administrativa apenas em 2003.
Situa-se entre Taguantinga, Vicente Pires, Guará e Park Way e é dividida em
bairros Norte e Sul pelos trilhos do metrô. Além disso, suas avenidas, alamedas
e praças têm nomes inspirados em nomes de plantas e aves, possui um Parque
Ecológico (cuja vegetação é resquício dos chacareiros que viviam no local) e,
por possuir fatores como a população densa, debate-se diuturnamente com
problemas relacionados à infra-estrutura, como o fluxo intenso de veículos
(Wikipédia).
Deixando os
problemas com infra-estrutura em inevidência, percebe-se que Águas Claras é um
reduto para a classe média (aliada aos promotores imobiliários) exercer o
fetiche da mercadoria, criando identidades baseadas na máxima “eu sou o que
posso comprar ou o que possuo”. Dessa forma, o mercado imobiliário é o agente
mais evidenciado na cidade, visto que o bairro, que é um canteiro de obras,
detém cerca de 70% dos imóveis novos disponíveis no DF
(CorreioWeb).
4.3.1
O
mercado imobiliário em Águas Claras
Num
breve apanhado realizado em anúncios de venda de apartamentos e em imobiliárias
que atuam no mercado de venda de imóveis em Águas Claras, conseguimos calcular
uma média de R$ 2500,00/m² de área privativa para apartamentos vendidos em
planta ou em fase de construção. Tal média só é superada, considerando o mesmo
tipo de imóvel (apartamentos em planta ou em fase de construção), no Plano
Piloto, Lago Sul e Lago Norte. A Região Administrativa de Águas Claras ainda é
deficitária em iluminação, vias para tráfego de veículos e comércio local, não
sendo estas razões que justifiquem os preços por metro quadrado negociados no
local. Também a localização não pode ser considerada como componente principal
da valorização imobiliária de Águas Claras, pois, verificando o preço do metro
quadrado de apartamentos na planta ou em fase de construção nas Regiões
Administrativas de Taguatinga e do Guará, circunvizinhas a Águas Claras, este
não ultrapassa R$ 2200,00/m² de área privativa.
Nas
propagandas dos apartamentos vendidos podemos encontrar alguns indícios que
“justifiquem” a média do preço por metro quadrado de Águas Claras. Além das
propagandas sempre evocarem a questão da segurança, ao descreverem os
empreendimentos como condomínios fechados, com segurança 24 horas (com cercas
eletrificadas nos muros e vigilância com câmeras operadas por seguranças),
também é recorrente o apelo pelo estilo de vida “sofisticado”, por meio da
presença de “acessórios” aos apartamentos. Esses “acessórios” são os espaços de
uso e lazer coletivos do condomínio: espaço gourmet (a nova versão para o
velho salão de festas), espaço fitness (com equipamentos de ginástica),
cinema, piscina, churrasqueira, playground, entre outros. Também há o
oferecimento de serviços de faxina em alguns casos. Todos esses “acessórios” são
de uso coletivo do condomínio, fazendo parte da taxa condominial a manutenção
pelos mesmos. Tais indícios deixam claro que o fetiche da mercadoria tem um
papel fundamental na formação do preço do metro quadrado em Águas Claras, pois
suscitam o estilo de vida para justificá-los, servindo como principal
fundamentação, por conseqüência, dos elevados preços em comparação com as áreas
circunvizinhas a Águas Claras.
Tudo
isso têm contribuído para uma valorização imobiliária desequilibrada e a
conseqüente segregação sócio-espacial. Evidenciando o caráter dúbio do Estado,
enquanto otimizador do centro e periferizador dos pobres (PAVIANI, 1989),
percebe-se que Águas Claras surgiu para abarcar um estilo de vida distintivo de
grupos específicos.
- Considerações
finais
Após
exploração da bibliografia acerca do fetiche da mercadoria, do estilo de vida e
da produção do espaço urbano capitalista, foi possível melhor compreender a
origem e os diversos elementos que podem configurar o espaço. Além disso,
pôde-se analisar uma nova abordagem para a análise do mercado imobiliário de
Brasília, a partir do estilo de vida proporcionado pelo fetiche da
mercadoria.
Para
isso, foram elencados os agentes que produzem o espaço urbano: os proprietários
dos meios de produção, os proprietários fundiários, os promotores imobiliários,
o Estado e os grupos sociais excluídos no intuito de verificar como se deu a
produção e a expansão do espaço socialmente produzido. Nesse aspecto,
verificou-se que a segregação sócio-espacial com a qual a sociedade se debate
diuturnamente não pode ser considerado como algo incoerente, ao passo que
contribui para a reprodução das relações sociais dentro da sociedade
capitalista. Ou seja, faz parte de uma lógica capitalista.
Outrossim,
sabendo que o modo de produção capitalista é o gestor do espaço urbano,
tornou-se possível perceber que a região administrativa de Águas Claras é um
refúgio do estilo de vida da classe média, ou seja, onde um grupo específico
pode exercer de maneira relevante o fetiche da mercadoria. Nessa perspectiva, o
imóvel não pode ser considerado como uma mercadoria comum, mas como um objeto de
desejo que indicará o senso de estilo do proprietário. Por isso, não há como se
falar em uma simples mercadoria, mas de uma esfera de estilo de vida, cuja
especialidade é demonstrada pelos artifícios usados pelos promotores
imobiliários.
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