NEOLIBERALISMO? OU: DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA DEMOCRACIA NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO?
Profa. Dra. Vânia Rubia Farias Vlach
Instituto de
Geografia – UFU
Brasil
La crise que nous traversons est
ainsi indissociablement économique et anthropologique; elle est, à la fois,
crise de civilisation et crise de l’individu. Se trouvent simultanément en panne
les institutions de mise en ouevre du lien social et de la solidarité (la crise
de l’Etat-providence), les formes du rapport entre l’économie et la société (la
crise du travail) et les modes de constitution des identités individuelles et
collectives (la crise du sujet).
Fitoussi et Rosanvallon
Na medida em que os
defensores do neoliberalismo tendem a fazer uma análise
do mundo a partir de uma perspectiva essencialmente econômica, cabe
registrar que o político e o econômico não se dissociaram, em suas origens. O
político no sentido de que alguns, Friedrich Hayek à frente, consideravam
necessária uma oposição implacável à ação política do Estado que, sobretudo na
Europa ocidental, instituiu o Estado de bem-estar pós Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), aproveitando a “brecha” que a destruição provocada por essa
deflagração bélica abria, sobretudo por meio da implantação do Plano
Marshall. Do ponto de vista do
econômico, naquele momento, o capitalismo iniciava um período de grande
prosperidade, cujas taxas de crescimento foram as maiores da História desse modo
de produção. Tal prosperidade só seria abalada com a crise do petróleo, em 1973.
Esta crise foi decisiva para fomentar o neoliberalismo. Ou a globalização
neoliberal.
De certa maneira, vivemos
as conseqüências da crise de 1973, que, na década de 1980, estimularam os
governos de Margaret Thatcher (Grã-Bretanha) e Ronald Reagan (Estados Unidos da
América - EUA) a criarem “um novo regime político-social”, nas palavras de
Santos (2005), mais tarde disseminado pela superfície terrestre, dado que
imposto aos Estados do Sul, por intermédio do Consenso de Washington (1986).
Esse novo regime
político-social pode ser sintetizado, a nosso ver, pela defesa intransigente da
lei do mercado, que se tornaria o princípio da política ainda hoje vigente, isto
é, passou-se dos debates políticos sobre as relações sociais (inclusive os
fenômenos econômicos), que geralmente ocorriam na esfera pública estatal, para a
técnica da administração dos conflitos políticos, econômicos e sociais, de sorte
que o próprio Estado seria preterido em favor do mercado; como se o Estado-nação
e a lei do mercado não houvessem se firmado juntos, quando da irrupção da
sociedade capitalista e moderna, em
fins do século XVIII, posto que, contraditoriamente, um complementa o outro, um
cria as condições que permitem a existência do outro! Ou não foi o Estado-nação,
assentado na idéia de território, que tornou possível o desenvolvimento das
redes (qualquer que seja a sua natureza), cuja lógica deriva da instantaneidade
da informação? Será que a complementaridade entre a idéia de território e a
lógica das redes deixou de existir? E a lógica das redes se voltou,
efetivamente, contra o Estado-nação, ao longo da década de
1980?
Porém, como entender o surgimento de
novos Estados-nações no processo de desmonte da antiga União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas – URSS, após a queda do Muro de Berlim (1989)? O
desaparecimento da antiga Iugoslávia, posteriormente, ensejou igual processo,
gerando várias guerras (como a do Kosovo), com desdobramentos que se estenderam
até o início do século XXI. No pós Segunda Guerra, movimentos separatistas
irromperam na Europa ocidental, na Europa setentrional, no Canadá, pleiteando a
constituição de novos Estados-nações a partir das aspirações de um grupo
étnico-lingüístico. Na Europa oriental, um separatismo de veludo se realizou
quando a República Theca se separou da Eslováquia, em 1991. No Oriente Médio (a
exemplo do Afeganistão); em parte da Ásia, assim como em parte considerável da
África, contudo, o Estado-nação se desintegrou em fins do século XX. Por sinal,
a reunificação das Alemanhas (1990), ainda que se argumente que a Alemanha
ocidental anexou a Alemanha oriental, foi exceção no quadro em que a
globalização da economia parecia solapar o Estado-nação.
Hayek e seguidores, a
exemplo de Milton Friedman nos EUA, consideravam que o movimento operário, por
meio de seus sindicatos, havia comprometido a acumulação capitalista ao colocar
em prática os direitos das classes trabalhadoras (o Estado de bem-estar) nas
(quase) três décadas do “boom
econômico” pós 1945. As baixas taxas de crescimento das economias nacionais e as
taxas de inflação elevadas, que levaram à eclosão da crise capitalista de 1973,
fizeram com que o conflito capital-trabalho saísse da arena política e fosse
administrado via estabilidade monetária, a técnica que nortearia os governos na
tarefa de recuperarem suas economias.
Foi o que fizeram
Thatcher e Reagan, a partir de 1980. Há, porém, uma diferença importante entre
ambos: empenhado em combater o socialismo real, Reagan também investiu na
indústria armamentista, agravando o déficit público do Estado.
Gradativamente, a
privatização de empresas e setores públicos foi se alastrando na Europa
ocidental, em governos controlados pela nova direita ou não, como é o caso da
França, no segundo mandato do governo François Mitterand (1988-1995).
Paralelamente, ocorria a desregulamentação do aparelho de Estado no que concerne
às atividades econômicas. Os resultados não tardaram a aparecer: o desemprego
aumentou, as taxas de juros se elevaram, as desigualdades sociais se ampliaram
de maneira extraordinária. É preciso explicitar que Hayek e seguidores elegeram
a desigualdade como meta a ser atingida; Hayek a caracterizou como princípio
necessário da prosperidade capitalista e contraponto ao que designou de
“servidão moderna”, a seu ver o risco que a sociedade britânica corria, caso a
social-democracia se consolidasse no Reino Unido pós 1945.
A tributação dos salários
mais elevados caiu cerca de 20% na década de 1980, nos Estados da Organização
para a Cooperação e o Desenvolvimento – OCDE, o que atesta o aumento da
desigualdade. Nesses países, a taxa de inflação se reduziu de 8,8% para 5,2% nas
décadas de 1970 e 1980; a taxa de lucro das indústrias da Europa ocidental
saltou de 5,4 pontos negativos na década de 1970 para 5,3 pontos positivos nos
anos 1980 (Anderson, 1995).
Ou seja, as medidas
propugnadas pela globalização neoliberal, sob o argumento de que os atores
econômicos deveriam se sentir motivados a investirem tendo em vista um
crescimento econômico vigoroso e contínuo, obtiveram êxito na Europa ocidental,
nos EUA, na Nova Zelândia, na Austrália e, mais tarde, no Japão, durante essas
duas décadas.
Entretanto, o objetivo
maior – a recuperação e manutenção dos índices de crescimento da economia antes
da crise de 1973 – não foi atingido. Por quê?
Porque a
desregulamentação do aparelho de Estado, um dos pilares do neoliberalismo,
acabou favorecendo a especulação financeira, ou seja, o setor produtivo não foi
beneficiado pelo fluxo de capitais. Pelo contrário; as condições tecnológicas
tornaram possível o funcionamento ininterrupto e sincronizado das bolsas de
valores na Ásia, Europa e EUA, cujo movimento superou os valores dos salários
quatro vezes. Em segundo lugar, as taxas de desemprego, que atingiram a cifra de
8% na década de 1980 nos membros da OCDE, e o envelhecimento de sua população,
aumentaram os gastos sociais do Estado (Anderson, 1995).
É interessante registrar
que, na América do Sul, o governo de Augusto Pinochet, ainda na década de 1970,
pôs em prática o ideário neoliberal no Chile, inspirado por Milton Friedman, o
que lhe conferiu pioneirismo na reestruturação do Estado e da economia nessa
ótica. Os resultados foram positivos, certamente favorecidos pelo regime militar
da época.
Entretanto, outras
experiências latino-americanas mostram que o neoliberalismo avançou em governos
não-ditatoriais, como é o caso da Bolívia, onde Jeffrey Sachs, em 1985,
encontrou o laboratório onde desenvolveu experiências que Polônia e Rússia não
tardariam a seguir. No final da década de 1980, em governos eleitos quase sempre
em pleitos normais (à exceção de Carlos Salinas de Gortari, no México, em 1988),
Peru, Argentina e México conseguiram resultados positivos, no curto prazo. Na
Venezuela, porém, as medidas neoliberais fracassaram, em decorrência da ausência
de ditaduras militares e governos oligárquicos no país desde a década de 1950,
associada às melhores condições de vida de sua população, em razão da produção e
exportação de petróleo. Vale registrar, ainda no que se refere ao México, a
emergência do movimento social organizado pelos indígenas e seus descendentes na
região de Chiapas, em 1994, cujas reivindicações anunciavam uma mudança social a
partir da ótica indígena. Isso explica porque repercutiu fortemente no mundo, e
porque esse movimento se mantém na cena política
contemporânea.
No Brasil, o
neoliberalismo remonta ao governo de Fernando Collor de Mello (1990), que
estabeleceu o Plano Brasil Novo (mais conhecido como Plano Collor), elegendo a
privatização de empresas para conter o déficit público, abrindo o mercado
interno à concorrência internacional, entre outros. Os resultados, contudo,
foram os piores possíveis: em meados de 1990, a inflação (que
parecia ter sido zerada) voltou a ter dois dígitos, e estava acompanhada por uma
estagnação econômica (de janeiro a junho de 1990, a indústria demitiu
170 mil trabalhadores em São
Paulo, um recorde desde 1980) e por uma queda do nível de
produção (de 453 bilhões de dólares em 1989, o Produto Interno Bruto/PIB caiu
para 433 bilhões de dólares em 1990). No setor industrial, a queda da produção
foi de 5,8% em 1990 (um recorde desde 1982). A inflação atingiu 1 198,54% em
1990 (Vlach, 1997). Do ponto de vista econômico, as medidas neoliberais
estabeleceram uma crise sem precedentes na História do
Brasil.
Paralelamente, uma grave
crise política ocorreu, levando ao impeachment do presidente Collor. Seu
sucessor, Itamar Franco, definiu, em julho de 1994, um novo plano econômico: o
Plano Real, elaborado por uma equipe de economistas, sob a responsabilidade do
então Ministro da Economia, Fernando Henrique Cardoso, para reverter um quadro
balizado por uma inflação que, de 1 157,94% em 1992, havia atingido 2 708,55% em
1993, e uma dívida externa de quase 125 bilhões de dólares (Vlach, 1997). Seus
objetivos: diminuir o déficit público e a inflação, acelerar a privatização das
empresas estatais, facilitar as importações, modernizar o setor produtivo e
prosseguir a abertura da economia brasileira. Para combater de maneira eficaz a
inflação, que ameaçava a coesão do tecido social, esse plano se apoiou em dois
elementos: valorização da moeda nacional em relação ao dólar e elevação das
taxas de juros. A moeda, mais uma vez, mudou: o cruzado novo foi substituído
pelo real; logo, Plano Real.
Por fim, o socialismo
real ruiu ao término dos anos 1980. Na difícil transição de uma economia
planificada para uma economia de mercado, alguns dos governos dos Estados da
Europa oriental, pelo menos no início da década de 1990, não hesitaram em
implantar as medidas neoliberais, mesmo ao preço de uma ampliação das
desigualdades sociais sem termo de comparação com a Europa ocidental.
Assim, compreende-se
porque, mais tarde, as lideranças que haviam se estabelecido sob a lógica do
partido único, reganharam a cena política na Europa oriental. Ou seja, a
população que, inicialmente, abraçou o neoliberalismo para se libertar do
controle da antiga União Soviética, lhe ofereceu resistência.
No Brasil, a
redemocratização, iniciada em 1985 (após 21 anos de regime militar), havia
provocado um desencanto muito forte com a política, o que, no momento em que a
hiperinflação se instalou, foi decisivo na atitude de não questionamento de tais
medidas por parte da população, ainda mais que o Plano Real apresentou
resultados positivos: a estabilidade monetária, a diminuição espetacular das
taxas de inflação (10% em 1996, contra 46,56% em junho de 1994), o retorno de
investimentos consideráveis dos maiores centros econômicos mundiais.
Nesse contexto, o
neoliberalismo não conseguiu acabar com a História, como queriam seus arautos.
Explicite-se, ainda que de maneira muito resumida: não conseguiu acabar com a
visão linear da História, que eliminaria a política da dinâmica das relações
humanas. Pelo contrário: seja porque suas medidas obtiveram êxito ou porque
fracassaram, o ideário neoliberal e seu programa
...solapou uma grande
instituição, até 1945 praticamente universal: o Estado-nação territorial, pois
um Estado assim já não poderia controlar mais que uma parte cada vez menor de
seus assuntos. Organizações cujo campo de ação era efetivamente limitado pelas
fronteiras de seu território, como sindicatos, parlamentos e sistemas públicos
de rádio e televisão nacionais, saíram portanto perdendo, enquanto organizações
não limitadas desse jeito, como empresas transnacionais, o mercado da moeda
internacional e os meios de comunicação da era do satélite, saíram ganhando. O
desaparecimento das superpotências [EUA e URSS], que podiam de qualquer modo
controlar os Estados-satélites, iria reforçar essa tendência. (Hobsbawn, 1997,
p. 413)
Lembrando que o
Estado-nação alia territorialidade e redes, cumpre avançar no sentido de que,
porque solapado pelo neoliberalismo, a democracia que presidia a maioria dos
governos da Europa ocidental e dos EUA, entrou em crise. Porque a
conquista de direitos havia incluído parte considerável da população, o que
entrava em choque com a defesa do princípio neoliberal da desigualdade.
Ao final dos 10 anos que
se seguiram ao Consenso de Washington, ficou claro que o “novo regime
político-social” era um fracasso, que pode ser exposto nos seguintes termos:
O enorme aumento da
polarização dos rendimentos e dos níveis de riqueza, com o seu efeito devastador
sobre a reprodução dos modos de subsistência de populações inteiras; o aumento
generalizado da corrupção; os efeitos perversos da conjugação da lei do mercado
com a democracia não-distributiva, conducente à implosão de alguns Estados e a
guerras civis inter-étnicas – são, todos eles, factos com uma disseminação
demasiado ampla e profunda para serem descartados como meros desvios anômalos.
Foi nesta conjuntura que a governação surgiu, enquanto matriz social e política
nova. (Santos, 2005, p. 13)
Apesar da tentativa de
solapamento do Estado-nação, deve-se registrar que este se mantém, embora
desprovido do poder coercitivo e da soberania, os princípios que o definiram
quando surgiu, isto é, desde os Tratados de Paz de Westfália (1648). Os Estados
se mantêm “pois não há nada além deles no campo da política. Atualmente, é
simplesmente inexistente a possibilidade de que uma única autoridade global
desempenhe um papel político e militar efetivo” (Hobsbawn, 2000, p. 51).
A democracia, certamente
um pilar do processo de constituição dos Estados-nações territoriais, e
testemunho do caráter político desta forma de organização da sociedade moderna,
“tornou-se completamente compatível com o capitalismo” (Santos, 2005, p. 19)
quando as medidas neoliberais diminuíram consideravelmente a redistribuição
social. A desigualdade, como vimos anteriormente, foi alçada à condição
indispensável de reprodução do sistema capitalista.
O fato é que a governação
se impôs, a partir da década de 1970. De um lado, explicitando e promovendo a
privatização, a desregulamentação e a abertura de economias nacionais ao mercado
mundial (o Consenso de Washington); de outro, escamoteando seu significado
político, por meio de conceitos definidos
...por oposição aos
conceitos de legitimidade: em vez de transformações sociais, a resolução de
problemas; em vez da participação popular, participação dos titulares de
interesses reconhecidos (stakeholders); em vez do contrato
social, a auto-regulação; em vez da justiça social, jogos de soma positiva e
políticas compensatórias; em vez de relações de poder, coordenação e parcerias;
em vez de conflitualidade social, coesão social e estabilidade dos fluxos.
(Santos, 2005, p. 14)
Alguns desses conceitos,
como as parcerias, atenderiam às aspirações de classes sociais cujas condições
de vida se deterioravam em função da privatização de empresas ou setores
públicos. Porém, na medida em que a governação rejeita a participação popular
propriamente dita, isto é, determinada pelos interessados, as lideranças desse
regime político escolhem os atores que podem participar das decisões.
O Estado-nação é um
desses atores. Como sua participação ocorre em uma conjuntura de perda do poder
coercitivo e da soberania que o fundaram, a desigualdade aumenta sensivelmente,
o que contribui para a exclusão social, crescente também em Estados do Norte (a
exemplo do malaise français: a
irrupção de Le Pen, na década de 1980, já traduzia o esvaziamento do espaço
político-ideológico, agravado pela desarticulação dos partidos políticos mais
importantes). Aparentemente, todos participam desse “novo regime
político-social”, o que dá a impressão de que só há poder no interior da
governação. Nesse sentido, “como obter poder para lutar pela inclusão no círculo
da governação, quando todo o poder que há decorre de se pertencer a esse
círculo?” (Santos, 2005, p. 15)
Os fenômenos políticos,
geopolíticos, econômicos, religioso-culturais, militares, ecológicos ou
ambientais que se desenrolam ao longo da primeira década do século XXI, permitem
afirmar que a História não acabou, sobretudo porque a utopia conservadora da
globalização neoliberal – a lei do mercado resolvendo todos os problemas do
mundo – não se realizou. Não só não se realizou como ensejou o surgimento de uma
contra-hegemonia, algo que se podia e devia antever, mas que se ignorou dado o
papel hegemônico que a racionalidade científica ocupa em nossa sociedade. Em
duas palavras: por meio da instrumentalização da razão, a ciência moderna é tida
como o único saber válido, de sorte que a sabedoria humana, que permitia aliar
razão e emoção, subjetividade e objetividade, respeitando o homem como ser
contraditório, complexo e, por conseguinte, como Ser indiviso que é, foi sendo
descartada na medida em que o capitalismo se impunha na superfície terrestre.
É, também, a partir da
hegemonia da ciência que se tenta descaracterizar a natureza política das
relações que os homens estabelecem entre si e com a natureza. Historicamente,
isso foi possível apenas com a constituição da sociedade capitalista e moderna. Da gradativa defesa da lei do
mercado no século XIX, desde meados do século XX, passou-se ao seu primado, pois
a referida lei permitiria eliminar o conflito social, as contradições sociais,
fundamentalmente políticas, por meio da técnica, da administração das relações
entre pessoas, entre grupos, entre sociedades, como se pessoas, grupos,
sociedades, ao serem esvaziados de seus valores culturais, nada mais fossem que
mercadorias.
O surgimento de uma
contra-hegemonia à globalização neoliberal não é, se entendemos a sociedade
capitalista como “uma sociedade inteiramente histórica, isto é, destinada a um
transtorno contínuo de suas instituições, destinada a dar à luz o novo e a ter a
experiência explícita do real como história” (Lefort, 1979, p. 308), uma novidade.
O que é novo, talvez, é o
fato de que, ao defender uma redistribuição dos frutos do viver/conviver, vai
ficando claro que vivemos em uma sociedade complexa, porque tecida entre
oposições, contradições, complementaridades entre o Norte e o Sul, no interior
do Norte e do Sul, entre os saberes não reconhecidos e a ciência, entre razão e
emoção, entre corpo e espírito, entre o global e o lugar, entre o fragmentado e
o mundo, entre o sistema econômico e o sistema político, entre a esfera pública
e a esfera privada, entre a autonomia e a coerção, entre ideologia e ciência,
entre teoria e práxis, entre o indivíduo e o grupo social, entre o sujeito e o
objeto, entre a natureza e a política, entre o novo e o tradicional, entre a
identidade individual e a identidade coletiva, entre o mundo e a representação
do mundo, entre o ambiente e a cultura, entre o mito e a ciência, entre o tempo
geológico e o tempo histórico, entre a instantaneidade das bolsas de valores e o
tempo lento de outros fenômenos históricos, entre o direito e a política, entre
a epistemologia e a política, entre o real e o utópico, entre aparência e
realidade, entre os humanos e os não-humanos, entre direitos e deveres, entre
Estado e sociedade, entre violência e poder, entre inclusão e exclusão, entre
Estado e mercado, entre democracia e autoritarismo, entre globalização
neoliberal e globalização contra-hegemônica etc.
Contudo, mais do que
tecida entre oposições, contradições e complementaridades, é uma sociedade
tecida com e por meio de oposições, contradições,
complementaridades, de sorte que uma tensão social se apresenta, e nos permite
entender a ordem-desordem de nosso mundo nos termos de uma “ordem subversiva”,
nas palavras de Fourier (1967). Tais palavras expressam mais do que um convite
para fazermos avançar a globalização contra-hegemônica. Com base nos princípios
da igualdade e do reconhecimento da diferença, ela está construindo o que Santos
denomina de “política e legalidade cosmopolita subalterna”.
Essa alternativa política
subalterna pode ser caracterizada como algo novo, na medida em que,
simultaneamente, descarta os partidos políticos e os sindicatos como fontes
exclusivas da transformação histórica, e propõe “um novo modelo de emancipação
social assente no reconhecimento da diversidade dos agentes da emancipação
social e dos objectivos da transformação social” (Santos, 2005, p. 23). Por isso
mesmo, o Fórum Social Mundial (FSM), que é o seu lócus, vai além da via da
reforma e da via da revolução, ainda hoje apontadas por muitos como caminhos
para a mudança social.
No início do século XXI,
o FSM anuncia uma utopia crítica de natureza democrática na perspectiva da
pluralidade, o que se constata inclusive na maneira de olhar o espaço
geográfico: no local, apreende o global; no global, apreende o lugar,
considerando tudo o que é próprio do Ser humano e do ambiente em que ele vive,
que ele transforma, degrada e/ou preserva. Mas, aqueles que apóiam a alternativa
política subalterna, no FSM ou fora dele, compreendem a necessidade de se
conhecer as especificidades de cada lugar, para não se incorrer no equívoco de
se negar o lugar enquanto tal.
Como uma rede local/global, a “política e legalidade cosmopolita
subalterna”, assentada nos princípios da igualdade e do reconhecimento da
diferença,
... inclui
um vasto campo confrontacional de política e direito em que distingo dois
processos fundamentais de globalização contra-hegemónica: a acção colectiva
global, que opera através de redes transnacionais de ligações
locais/nacionais/globais; e as lutas locais ou nacionais, cujo êxito induz a
reprodução noutros lugares ou o funcionamento em rede com lutas paralelas em
curso noutras paragens. (Santos, 2005, p. 8)
O que
expusemos até o momento permite insistirmos em que, tanto na ação coletiva
global quanto nas lutas locais (ou nacionais), o Estado também pode (ou ainda
pode) desempenhar um papel importante, traço que assinala uma proximidade entre
a globalização neoliberal e a globalização contra-hegemônica. A alta tecnologia
(ou tecnologia de ponta) é outro fenômeno em que a globalização neoliberal e a
globalização contra-hegemônica se aproximam. E a diferença, onde estaria?
No lócus da
política cosmopolita subalterna, as redes estão presentes de fato, a partir da
organização dos próprios interessados, contrastando com a presença/ausência do
Estado na governação. Na ótica da globalização neoliberal, já na década de 1960,
era perceptível que o poder político se legitimava igualmente pela tecnologia e
como tecnologia. A partir do Consenso de Washington, essa tecnologia permitiu,
àqueles que o combatiam, organizarem suas próprias redes, de sorte que, por meio
da tecnologia on line, fugiram do
controle da governação. A internet, ao possibilitar a organização de redes
baseadas nos princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença, viabiliza
a pluralidade e a experiência da democracia. Aqui está a diferença entre uma
globalização que mantém o status quo e outra que busca uma
experiência política fundamentalmente democrática, como se vê no FSM. Esse fórum
é uma experiência radical porque foge da definição e/ou imposição de uma hierarquia, e porque seu raio de ação
interliga, simultaneamente, as escalas local, nacional e global. Ainda que
distintas, a ação coletiva global e as lutas locais ou nacionais, podem se
articular, a exemplo do movimento indígena e de seus descendentes em 1994, na
região de Chiapas, como anteriormente mencionado.
O
desenvolvimento de uma política cosmopolita subalterna demanda seu entendimento
na relação de subalternidade e fora dela, de maneira que os movimentos sociais
que a constroem possam se articular entre si, o que exige um “trabalho de
tradução”, isto é, o exame das possibilidades e limites de uma articulação. Por
isso mesmo, é um trabalho que alia, ao mesmo tempo, práticas múltiplas e saberes
diversificados, caracterizando-se como segue:
O trabalho
de tradução visa esclarecer o que une e o que separa os diferentes movimentos e
as diferentes práticas, de modo a determinar as possibilidades e os limites da
articulação ou agregação entre eles. Dado que não há uma prática social ou um
sujeito colectivo privilegiado em abstracto para conferir sentido e direcção à
história, o trabalho de tradução é decisivo para definir, em concreto, em cada
momento e contexto histórico, quais as constelações de práticas com maior
potencial contra-hegemónico. Para dar um exemplo recente, em Março de 2001, no
México, o movimento indígena zapatista foi uma prática contra-hegemónica
privilegiada e foi-o tanto mais quanto soube realizar trabalho de tradução entre
os seus objectivos e práticas e os objectivos e práticas de outros movimentos
sociais mexicanos, do movimento cívico e do movimento operário autónomo ao
movimento feminista. Desse trabalho de tradução resultou, por exemplo, que o
comandante zapatista escolhido para se dirigir ao Congresso mexicano tenha sido
a comandante Esther. Os zapatistas pretenderam com essa escolha significar a
articulação entre o movimento indígena e o movimento de libertação das mulheres
e, por essa via, aprofundar o potencial contra-hegemónico de ambos. (Santos,
2003, p. 772).
O excerto acima resume bem o avanço que
representa a possibilidade de uma articulação entre movimentos sociais que
contribuem para a globalização contra-hegemônica. Esta não conta apenas com a
atuação de movimentos sociais procedentes do Sul, como o FSM explicita muito
bem. Considerando a realidade do Sul, não há como negar, porém, a necessidade de
se reconhecer que as possibilidades de suas culturas foram interrompidas com a
imposição da colonização e/ou do imperialismo europeu, o que praticamente apagou
a sua História. O resgate de tais
possibilidades culturais poderia abrir caminho para uma transformação social que
vai além de uma resistência às imposições do Norte. As resistências não foram,
nem são inócuas, mas, em grande medida, levaram o Sul “...a afastar as suas
energias da busca positiva de uma
transformação social definida por si próprio para o objetivo negativo de resistir ao domínio
cultural, político e econômico do Ocidente” (Banuri, 1990, p. 66, grifos do
autor).
Sem dúvida
alguma, buscar “uma transformação social definida por si próprio” é algo muito
promissor em todo o Sul, inclusive porque dá voz e lugar àqueles que, cientes de
estarem dentro e fora do “circuito” da modernidade ocidental, vêem como é
possível articular saberes diversificados e práticas múltiplas nos movimentos
sociais que aspiram à utopia crítica da democracia e da pluralidade. Talvez seja
preciso explicitar que a utopia crítica da democracia depende da pluralidade.
Por sua vez, o desenvolvimento da pluralidade depende de uma razão que não a
instrumentalizada pelo capitalismo. Porque esta nos reduziu à condição de
mercadoria, e nos separou de nós mesmos, Seres humanos
indivisos.
Sob o
neoliberalismo, esse processo se acentuou: a lei de mercado atua no espaço
geográfico mundial olhando o lugar (aqui como sinônimo de local) a partir das
“lentes” do global, o que reduz o primeiro a um fragmento do mundo, e nega as
suas especificidades.
Na luta por
uma globalização contra-hegemônica, a Geografia pode e deve aprofundar o estudo
dos lugares (escala local e/ou nacional) a partir da perspectiva dos
interessados, isto é, daqueles grupos subalternos que resgatam as suas vivências
culturais, políticas, econômicas para nelas buscar o que e como transformar a sociedade em que
vivem, cientes de que não vivem sós, mas são, cada grupo social, uma parte do
mundo – a Terra, o planeta vivo e da
vida – e, enquanto grupo social específico, uma totalidade, com práticas
múltiplas e saberes diversificados.
De qualquer
maneira, impõe-se o estudo das especificidades de cada lugar. Este é mais um de
nossos desafios, ainda mais que
No hay
suficientes geógrafos en Latinoamérica, y los que hay no han dispuesto de un
ambiente propicio para el desarrollo de sus contribuciones al conocimiento
universal. Muy pocas instituciones disponen de los medios y recursos materiales
y humanos que les permitan efectuar tareas de investigación científica y de
educación superior acordes con las exigencias de conocimientos de la sociedad
contemporánea. Por el contrario, los escasos departamentos de geografia
existentes se debaten en general en un ambiente de pobreza, carentes de
laboratórios, bibliotecas especializadas y accesos a sus inmensos territorios de
preocupación (Romero, 2001, p. 189).
É claro que
essa situação varia muito no interior da América Latina. Mas o excerto acima não
deixa de ser fiel ao que acontece nesse conjunto desigual e desarticulado, que
reclama o conhecimento das especificidades de cada lugar e, inclusive, a
circulação de informação a respeito de suas diferentes realidades. Do contrário,
a realização de uma articulação entre os seus diferentes atores e/ou movimentos
sociais, nos diferentes territórios, entre outros, fica gravemente prejudicada.
E isso compromete a situação da América Latina no mundo, e seu papel no contexto
de uma mudança social contra-hegemônica.
Como partes
e totalidades do mundo, simultaneamente, os grupos subalternos promovem
atividades locais e globais tendo em vista a emancipação humana de cada
indivíduo, a emancipação social de cada grupo local/nacional, porque é assim que
os princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença se realizam, ainda
que gradativamente. E a educação pode contribuir, fazendo da sala de aula
...um local
de aprendizagem do debate argumentado, das regras necessárias à discussão, da
tomada de consciência das necessidades e dos procedimentos de compreensão do
pensamento do outro, da escuta e do respeito às vozes minoritárias e
marginalizadas. Por isso, a aprendizagem da compreensão deve desempenhar um
papel capital no aprendizado democrático (Morin, 2002, p. 112-113).
Respeitando o princípio
da igualdade e colocando em prática o princípio do reconhecimento da diferença,
a educação é decisiva na construção de uma política cosmopolita
subalterna.
Ao Ensino
de Geografia, por sua vez, cabe um papel de primeira importância, que, em poucas
palavras, é o da formação de um cidadão crítico, criativo e atuante na escala
local/regional/nacional. No Brasil, é o que denominamos de cidadania plena, algo
em processo.
Este cidadão crítico deve se tornar um cidadão cosmopolita,
comprometido com a articulação de práticas múltiplas e saberes diversificados em
todo o mundo, para fortalecer os movimentos sociais contra-hegemônicos, na
perspectiva de uma transformação social.
A formação
desse cidadão é inseparável da democracia, a começar pelo fato de que o
pensar/agir nessa direção é plural, ou seja, não há uma única direção. E o
aprendizado democrático nos conecta com o pensamento de outros grupos sociais,
sobretudo os subalternos (mas não apenas eles).
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