Presidente
Bernardes (SP – Brasil) não é Winston Parva, mas poderia ser..:
Contribuição
ao estudo das relações socioespaciais em uma pequena
cidade
Eda
Góes
Resumo:
Buscando contribuir com o debate acerca da correlação entre crescimento real da
violência (os fatos) e o recrudescimento da sensação de insegurança (percepção)
em pequenas cidades do interior, nesta pesquisa, nos dedicaremos ao estudo de
Presidente Bernardes (Estado de São Paulo – Brasil), com base, prioritariamente,
no referencial produzido por Elias e Scotson (2000), acerca das estratégias de poder desenvolvidas por um grupo, os
estabelecidos, em relação a outro, os outsiders, numa pequena localidade, cujo
nome fictício é Winston Parva. Deste modo, busca-se, também contribuir para uma
teoria abrangente das microfísicas do poder, conforme proposta desses dois
autores. Localizada no Oeste Paulista, Presidente Bernardes começou a
ganhar notoriedade nacional a partir da implementação de uma nova política
penitenciária estadual (1992 – 2006) que possibilitou a construção da segunda
penitenciária da cidade, considerada a mais segura do país, portanto, destinada
a presos perigosos, e, em 2002, a transferência de um conhecido
traficante de drogas carioca para esta unidade. É neste contexto contraditório,
marcado por discursos que hora valorizam os empregos decorrentes da nova
política penitenciária, hora enfatizam a insegurança por ela trazida para o
interior, antes pacato, que identificamos nos
estabelecidos, os próprios moradores de Presidente Bernardes, e nos outsiders,
os presos, seus familiares, suas visitas, segundo referência presente no
livro “Os estabelecidos e os outsiders: Sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade” (ELIAS & SCOTSON, 2000), e
buscamos compreender as relações recentemente estabelecidas entre eles.
Palavras-chave:
relações
socioespaciais; questão penitenciária; representações sociais; papel da mídia;
Presidente Bernardes (SP – Brasil); Winston Parva.
Presidente Bernardes (SP – Brasil) não é Winston Parva[1], mas poderia
ser...:
Contribuição
ao estudo das relações socioespaciais em uma pequena
cidade
Eda Góes[2]
Na
História do Brasil, a violência tem sido uma questão presente desde os seus
primórdios, mas adquiriu características específicas em diferentes contextos.
Nas duas últimas décadas, a violência também passou a caracterizar-se
eminentemente como violência letal, visível e cotidiana, graças à abundância de
armas de fogo, ao papel desempenhado pela mídia, e como fenômeno urbano, a
despeito da violência no campo não ter desaparecido.
O
tratamento conferido ao tema da violência pela mídia garante que nós nos
reportemos, freqüentemente, mais a uma violência representada que a uma
violência real. O que não significa que não haja uma relação entre o real e o
representado, embora as relações entre ambos sejam variáveis, de acordo com o
grau de sensacionalismo empregado, por exemplo. Esse conjunto de representações
da violência contribui para criar ou reforçar um ritual moderno da violência,
que age sobre as práticas cotidianas (IMBERT, 1992, p.15).
Buscando
contribuir com o debate acerca dessa correlação entre crescimento real da
violência (os fatos) e o recrudescimento da sensação de insegurança (percepção)
nessas que, do ponto de vista da mídia, continuam a ser as outras cidades, menos
visíveis, as pequenas e médias cidades do interior, uma vez que a presença
global, poderosa e midiática das metrópoles é cotidianamente reiterada, nesta
pesquisa, nos dedicaremos ao estudo de uma pequena cidade do interior paulista,
Presidente Bernardes (Estado de São Paulo –
Brasil).
Localizada no Oeste Paulista, essa cidade começou a ganhar
notoriedade nacional a partir da implementação de uma nova política
penitenciária pelo governador Mario Covas (1992 – 2001)[3], que teve
continuidade no governo de seu sucessor, Geraldo Alckmin (2002 – 2006). Tal
política objetivava principalmente a diminuição da superlotação dos
Distritos Policiais paulistanos e a desativação da Casa de Detenção[4], também localizada na
capital paulista, mediante a construção simultânea de 21 novas penitenciárias no
interior paulista. Dessas, 13 penitenciárias foram construídas no Oeste
Paulista, implicando, portanto, em enorme impacto na
região.
Presidente
Bernardes, cidade que contava em 2000, com 14.662 habitantes, e já abrigava uma
penitenciária, recebeu então uma nova unidade, por sua vez caracterizada como de
regime especial – o Centro de Readaptação Penitenciária de Presidente Bernardes
- com capacidade para receber 160 presos, os mais perigosos, que ali seriam
submetidos a condições especialmente rígidas de isolamento, visita, banho de
sol, contato com agentes penitenciários e, sobretudo, a bloqueador de celular.
Seria, por tudo isso, a mais rígida e segura do país. Os números, relativos a
2003, são bastante significativos:
Nome
da Penitenciária |
Capacidade |
População
Carcerária |
Funcionários |
População
da Cidade |
Centro
de Readaptação Penitenciária de Presidente
Bernardes |
160 |
85 |
132 |
|
Penitenciária
de Presidente Bernardes |
731 |
920 |
314 |
|
Total
em Presidente Bernardes |
891 |
1005 |
446 |
14.662 |
Dados:
Coordenadoria das Unidades Prisionais da Região Oeste do Estado de São Paulo
(2003) e IBGE - Censo Demográfico 2000.
A
polêmica transferência de parte importante da população penitenciária do Estado
para o Oeste Paulista envolveu múltiplos e contraditórios elementos, dentre os
quais destacamos:
1. A oferta de grande quantidade de empregos públicos[5], mediante concurso e
regidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), foi vista como muito
atraente frente ao quadro de crise econômica experimentado, sobretudo pelas
pequenas e médias cidades da região. Isso implicou no deslocamento de moradores
de uma cidade a outra, conforme as necessidades do sistema penitenciário, e na
oferta de cursos preparatórios, por parte de prefeituras interessadas em
aumentar as chances dos candidatos da própria
cidade.
2.
Eleição de Agripino Lima para prefeito de Presidente Prudente (SP – Brasil),
Presidente Prudente destaca-se pelo seu nível elevado de centralidade
intra-urbana, definida pela relevância de seus papéis comerciais e de serviços e
por sua situação geográfica que a notabiliza como única cidade desta importância
e tamanho, na região. Caracteriza-se, assim, como cidade média, não apenas por
sua população de 185.229 habitantes (IBGE, Censo de 2000), como pelos papéis que
desempenha no conjunto da rede urbana (conforme definição de Spósito, 2005,
p.107). A partir do período eleitoral, esse candidato do PSC (Partido Social
Cristão), partido de oposição ao governo do Estado (do PSDB) desencadeou ampla
campanha contra a vinda dos presídios na mídia local[6]. Na base da sua
argumentação estava a insegurança que eles teriam trazido, da capital “violenta”
para o interior, até então “tranqüilo”, ainda que números que comprovassem tal
correlação não tenham sido apresentados. Era o “fim da paz”, conforme lema
apelativo empregado, que reverteu, quase completamente, a ênfase anterior, na
abertura de milhares de postos de trabalho.
3.
Alguns prefeitos procuraram articular-se politicamente com o Governo Estadual
(PSDB), com objetivo de atrair uma unidade penitenciária para o seu município,
com vistas a amenização da sua estagnação econômica, enquanto outros buscaram
articulação semelhante, com objetivo oposto, ou seja, impedir a vinda dessas
unidades, como ocorreu com Presidente Prudente.
Nesse
contexto, eivado de contradições, Presidente Bernardes ganhou notoriedade quando
a mídia nacional deu grande destaque à polêmica transferência de um conhecido
traficante de drogas do Estado do Rio de Janeiro para o CRP. Nessa cobertura, um
dos recursos mais radicais empregados foi o uso da charge, em função do seu
potencial, ou seja, do
artifício
formador/transformador
das representações sociais, da sua comicidade, passível de assimilação por todos
os níveis de conhecimento.
Dois chargistas foram analisados durante a pesquisa, mas nesta
comunicação, abordaremos apenas o trabalho de Clauro, do jornal O
Imparcial[7], que não possui
vínculo empregatício, caracterizando-se suas relações com o jornal como
meramente comerciais, isto é, suas charges são mercadorias que podem ser
adquiridas por qualquer jornal. Disso decorre, segundo nossa
interpretação, o recorte territorial mais amplo das temáticas abordadas em seus
trabalhos.
Embora
as charges frequentemente limitem-se a reproduzir discursos comuns sobre a
temática abordada, no entanto, sua capacidade ilimitada de radicalização
manifestou-se, no caso estudado, através de imagens caóticas de presídios,
sempre presentes, associando-os à violência, numa postura crítica que teve como
alvos freqüentes, representantes do governo, como nos exemplos apresentados em
seguida.
Não
por acaso, nas duas charges estão presentes telefones celulares, representados
como disponíveis ao personagem de “Fernandinho Beira-Mar”, o famoso traficante
de drogas carioca. Como o espaço e o tempo da cena não são definidos, ela pode
sugerir que não se trata de fato real, mas apenas idealizado, de uma perspectiva
cômica. Mas pode ser interpretada também como manifestação de descrédito frente
à capacidade do governo de manter controle sobre presos perigosos, mesmo em seu
presídio mais seguro, no qual grande investimento em equipamentos deveria
garantir justamente o bloqueio das ligações feitas por telefone
celular.
Na
primeira charge, ao tratar de um encontro que nunca existiu, o chargista se
permite retratar o Presidente da República, Luís Inácio “Lula” da Silva (do PT),
ironicamente, vestindo uma touca, símbolo comum neste tipo de representação
gráfica para designar marginalidade. Como a marginalidade do outro personagem é
amplamente conhecida, a charge sugere, cognitivamente, a conivência ou
identificação do presidente com o marginal, numa provável referência à prática
real, anteriormente criticada pela mídia, do Presidente da República, de vestir
o boné de entidades ou personalidades que o visitam. Através dessas mescla entre
ficção e realidade, o discurso cômico possibilita que o leitor conclua acerca de
uma inversão da ordem estabelecida, praticada não pelo notório marginal, mas
pela autoridade máxima do Estado, resultando, portanto, em perspectiva muito
mais ameaçadora e grave - subversão, de quem?
Jornal:
O Imparcial |
08/07/03 |
Charge |
|
|
|

|
14/09/03 |
Charge |
|
|
|

|
Uma
das mais radicais representações desse caos aparece na charge do dia 14 de
setembro de 2002, na qual o personagem “Fernandinho Beira-Mar” literalmente
monta sobre o Estado, simbolizado pela personagem da Governadora do Estado do
Rio de Janeiro, na época, Benedita da Silva (também eleita pelo PT). Os dois
objetos mais representados, armas e celulares, reaparecem, evidenciados, desta
vez, tanto pela sua disposição, como pelo desenho da arma escolhida (um míssil).
O celular ainda parece tocar no momento em que a personagem da governadora
proferia o seguinte discurso: “Não há com o que se preocupar, esta tudo sob
controle”, sugerindo uma contradição radical entre o discurso do Estado e o fato
representado.
Através
desses exemplos radicais, se objetiva demonstrar o impacto da transferência
desse traficante de drogas carioca para CRP de Presidente Bernardes, um caso,
dentre os muitos transferidos, porém do próprio Estado de São Paulo, mas também
indicar a importância adquirida pela questão penitenciária na cidade e na
região, a partir de 1993. Reconhecendo-se, portanto, o poder dessas imagens
diariamente divulgadas pela mídia, cuja influência materializa-se no cotidiano
dos moradores dessas cidades, ao transformar-se em relações e práticas sociais,
que ainda precisam ser melhor compreendidas pelos pesquisadores, é que
pretendemos desenvolver nossa análise.
Partimos
do questionamento da relação estabelecida entre a transferência dos presos,
particularmente daqueles diretamente ligados ao crime organizado, e a sensação
de insegurança que se generalizou pela região, de modo geral, a partir do estudo
do caso dos moradores de Presidente Bernardes, em função de sua situação
particularmente suscetível.
Com esse intuito, retornamos a caracterização de cidade média, já
referida, para propor a hipótese de que os papéis de centralização e mediação
exercidos por Presidente Prudente e representados pela presença de inúmeras
agências bancárias, shoping centers, órgãos públicos, etc., particularmente em
relação às pequenas cidades da região, mas também em relação a capital paulista,
sediando a Vara de Execuções Criminais[8], por exemplo, também
influenciam na atenção despertada pela transferência dos presos para o interior
paulista. Ou seja, sem desconsiderar o preconceito que sustenta as percepções
acerca das visitas recebidas pelos presos, segundo o qual as mães, esposas e
crianças que costumam fazer filas nas portas dos presídios desde a madrugada de
domingos e feriados, seriam potencialmente criminosas, formulamos a hipótese de
que as cidades médias teriam passado a atrair uma atenção proporcionalmente
maior, porém de difícil mensuração, em relação às metrópoles, por parte do crime
organizado, inclusive.
Isso
também significa, que o impacto das novas unidades penitenciárias deve ser
avaliado a partir de uma perspectiva regional e não apenas municipal, como a
mídia e os políticos da região sempre procederam, sob influência, inclusive do
ideário neoliberal que tende a imprimir forte tom de disputa entre os municípios
envolvidos. A exceção a essa regra se limita aos casos em que a disputa se
transfere para a relação interior x capital paulista, ou em relação aos outros
estados da federação.
Ao
mesmo tempo, como indicam tanto as estatísticas policiais, como entrevistas
feitas com alguns moradores de Presidente Bernardes, o fato de sediar duas
penitenciárias, uma das quais em regime especial, voltada à contenção dos presos
considerados mais perigosos, sobretudo por seu papel de liderança em
organizações criminosas, não alterou o cotidiano da cidade, exceto pelo tema dos
presídios e da insegurança que passou a fazer parte das
conversas.
No
que refere às estatísticas policiais, os baixos índices de criminalidade
constatados na Delegacia de Polícia de Presidente Bernardes e nos dados da
Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo destacam-se pela vigorosa
confrontação com os discursos de outros moradores acerca do aumento da violência
na cidade, muitas vezes referenciados a boatos e, sobretudo, a dramatização da
violência promovida pela imprensa regional e atribuída à vinda dos presídios. Os
primeiros parâmetros adotados foram os dados disponíveis no site da Secretaria
de Segurança Pública, sobre Presidente Bernardes:
Tabela
4: Dados
da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São
Paulo |
Ano
|
Homicídio
Doloso |
Furto |
Roubo |
Furto
e Roubo de Veículo |
2.000 |
4 |
69 |
4 |
0 |
2.001 |
1 |
48 |
1 |
0 |
2.002 |
1 |
60 |
1 |
2 |
2.003 |
0 |
64 |
0 |
1 |
Fonte:http://www.ssp.sp.gov.br/estatisticas/_pormunicipio.aspx?codigo=465,
acesso em 17/01/06.
A análise dos
dados reflete a pouca intensidade e/ou variação dos índices criminais,
permitindo mesmo especulações de que tais índices tem tido uma ligeira queda, a
partir de 2.002, ano de inauguração do CRP.
Outras importantes constatações foram feitas durante pesquisas na única
delegacia da cidade, quando foram colhidos dados referentes à criminalidade
local e, sobretudo, foi observado o seu cotidiano, inclusive com coleta de
depoimentos do delegado, de policiais e de outros funcionários. Foram então
consultados dois livros de inquérito dessa delegacia, sob o argumento[9] de que os inquéritos diziam
respeito aos crimes mais graves, sendo, portanto, mais significativos que os
Boletins de Ocorrência. Dessa consulta, resultaram os dados organizados nas
Tabelas 5 e 6.
Tabela 5: Crimes registrados nos livros de inquéritos 04/17 e
04/18
(período:
22/10/01 a 13/12/04) |
Crimes |
Indiciado
Natural de Presidente Bernardes |
Indiciado
Natural da Região de Presidente Prudente |
Indiciado
Natural de Outras Localidades |
Não
Consta Naturalidade do Indiciado |
Não
Consta Indiciado |
Total
|
Furtos
e Roubos |
11 |
16 |
12 |
6 |
25 |
70 |
Tráfico |
5 |
1 |
0 |
1 |
1 |
8 |
Crimes
Sexuais |
1 |
0 |
0 |
41 |
1 |
6 |
Lesão
Corporal |
7 |
0 |
32 |
2 |
1 |
12 |
Tentativa
de Homicídio |
0 |
0 |
0 |
0 |
1 |
1 |
Posse
de entorpecentes |
2 |
0 |
0 |
0 |
0 |
2 |
Suicídio
|
1 |
0 |
0 |
0 |
0 |
1 |
Total |
27 |
17 |
15 |
13 |
29 |
101 |
1)
Em
dois dos casos o indiciado possuía residência fixa em Presidente
Bernardes.
2)
Constando nos relatos dos acidentes de automóvel. |
Fonte: Delegacia
de Presidente Bernardes, consulta em 06/09/05.
Apesar
dos registros do livro de inquéritos não estarem organizados por ano, ou sequer
em ordem cronológica, mas apenas por número de inquérito, o que os diferencia
dos dados da Secretaria de Segurança Pública, ainda assim, a partir da consulta
aos dois foi possível obter informações detalhadas sobre a criminalidade na
cidade de Presidente Bernardes.
A
naturalidade dos indiciados foi um dos dados que mereceram maior atenção. A
maioria dos indiciados é natural de Presidente Bernardes e região, o que fornece
cada vez mais subsídios para a derrubada da tese acerca do suposto
redirecionamento da criminalidade, da capital, para o interior.
A Tabela 6
foi elaborada com base na mesma fonte de dados, mas se refere apenas aos crimes
relacionados à penitenciária e/ou praticados pelos visitantes dos presos. São,
principalmente, casos de posse de entorpecentes e, em número muito menor, de
casos de tráfico de drogas, homicídios e alguns casos de suicídio de
presos.
Tabela
6: Crimes relacionados às penitenciárias locais registrados nos livros de
inquéritos 04/17 e 04/18 (período: 22/10/01 a
13/12/04) |
Crimes |
Indiciado
Interno da Penitenciária |
Indiciado
Familiar e/ou visitante |
Total |
Tráfico
|
6 |
6 |
12 |
Homicídio |
2 |
0 |
2 |
Posse
de Entorpecentes |
64 |
4 |
68 |
Suicídio |
3 |
0 |
3 |
Porte
de Arma1 |
2 |
0 |
2 |
Total |
77 |
10 |
87 |
1) Constando
nos registros apenas apreensão de armas “brancas” (facas, estiletes,
etc.). |
Fonte:
Delegacia de Presidente Bernardes, consulta em
06/09/05.
Embora fique evidente que o principal crime praticado por
visitantes dos presos é a tentativa de entrada de entorpecentes nas
penitenciárias locais, é preciso assinalar que se trata de prática sem qualquer
repercussão sobre a cidade, já que esses entorpecentes são trazidos das cidades
de origem das visitantes e destinados ao universo penitenciário. Mesmo assim, as notícias de prisões de familiares e
visitantes de presos geram especulações sobre o aumento do tráfico de drogas nas
cidades da região. Tal relação também pode ser contestada a partir dos dados
gerados nas Tabelas 5 e 6, que identificam a grande maioria dos indiciados por
tráfico de drogas como natural da cidade de Presidente Bernardes.
Além
das duas fontes pesquisadas, uma terceira revelou-se igualmente rica, a
observação do cotidiano da delegacia. Assim, pequenos indícios, foram
interpretados como indicativos de ausência de mudança e, sobretudo, de pressões,
sobre a principal instituição encarregada do controle social na cidade, para
além das muralhas penitenciárias. O fato da delegacia fechar para o almoço, por
exemplo, foi interpretado como mais uma indicação contrária à tese de que a
vinda das novas penitenciárias teria tornado violenta e insegura a vida na
cidade.
A
observação e o convívio com funcionários da delegacia local favoreceram também à
coleta de depoimentos orais, informais, por isso mesmo, muito importantes devido
à metodologia utilizada, pautada na compreensão do convívio entre os visitantes
hostis, por um lado, e, de outro, a ordem e os valores estabelecidos pelos
moradores. Mesmo sobre a consonância da vivência profissional não foram
raros os depoimentos acerca da apreensão de drogas e relatos de pequenos roubos
em supermercados locais, além de outras informações que depois se revelaram de
difícil comprovação, como foi o caso de um provável auxílio dado pela
penitenciária local para a implantação de pensões e residências para os
familiares/visitantes de presos.
Um escrivão sugeriu possíveis impactos econômicos, a partir da
implantação dos presídios locais: estímulo ao mercado imobiliário proporcionado
pela transferência de famílias de presos e aumento da atividade comercial devido
aos gastos dessas famílias, como residentes e durante as visitas. Como exemplo,
citou o maior supermercado da cidade, que teria aumentado suas vendas. Mas
apontou para outros aspectos relativos a tais ganhos econômicos, acrescentando que nos fins de semana, o supermercado montou
um “esquema especial” para receber estes visitantes, baseado principalmente, no
aumento de funcionários para coibir pequenos furtos. Estes fatos foram
relacionados com o início dessas visitas, possivelmente em 2.000, mas, a partir
da continuidade desses contatos, estes pequenos incidentes teriam diminuído.
Um
outro fato relatado pelo escrivão se refere à apreensão de entorpecentes numa
pensão descrita como ocupada por parentes dos presos, que teria ocorrido várias
vezes e envolvido diferentes pessoas. Mais uma vez, tal relato foi passível de
questionamento a partir dos próprios registros dos livros de inquérito
apresentados anteriormente, uma vez que os principais indiciados por tráfico e
posse de entorpecentes são naturais de Presidente Bernardes e, como a tabela 6
demonstra, as prisões de visitantes dos presos por tráfico ocorreram apenas
mediante revista realizada na entrada da penitenciária local.
Outro
policial expressou opiniões mais radicais quanto aos presídios e seu impacto
sobre a cidade. A despeito de sua familiaridade em relação às informações que
questionam qualquer aumento da criminalidade decorrente da presença de
familiares de presos na cidade, seu discurso caracteriza-se pela hostilidade,
ainda que certa valorização sutil do papel desempenhado pela instituição
policial, que representa, possa ser identificada: “Isso aí foi uma merda para a
cidade, porque vêm muitos familiares de presos para cá. Só que crimes grandes
eles não vêm fazer nada por aqui, não... “
Nota-se
que a suposta fixação de muitos dos familiares de presos na cidade é elemento
importante da construção discursiva sobre a insegurança atribuída aos presídios.
As preocupações decorrem da caracterização deste grupo como agente de práticas
criminais, a despeito da ausência de indicações concretas que sustentem
tal caracterização, como estatísticas criminais, por exemplo .
Num
esforço de compreensão de tais relações, recentemente estabelecidas, recorremos
ao trabalho de Elias e Scotson, “Os Estabelecidos e os Outsiders” (2000),
identificando nos estabelecidos, os próprios moradores de Presidente Bernardes,
e nos outsiders, os presos, seus familiares, suas visitas. Isso não implica em
desconsiderar certas diferenças, ou seja, é importante constatar que Presidente
Bernardes não é Winston Parva, assim, embora o “princípio da antiguidade”, seja
um elemento comum de diferenciação empregado nas duas localidades, outra
estratégia de depreciação dos grupos sociais, que no estudo de Elias e Scotson
se expressava espacialmente, se diferenciando de um bairro para outro, assume
em Presidente
Bernardes caráter diverso, uma vez que a depreciação baseia-se
na rede de relações das famílias e visitantes dos presos que cumprem pena nas
penitenciárias locais. Daí a importância dos estudos sobre a representação
social dos presídios para o Oeste Paulista.
Mas
como o trabalho de Elias e Scotson (2000) trata das estratégias de poder
desenvolvidas por um grupo, os estabelecidos, em relação a outro, os outsiders,
numa pequena localidade, detendo-se aos discursos sobre a violência e à
identificação das práticas criminosas, fornece interessantes subsídios para o
entendimento das relações pautadas na comunicação, enquanto elemento central
para diagnosticar a situação social da localidade. Contribuindo para uma teoria
abrangente das microfísicas do poder, Elias e Scotson (2000, p.26) assim
descrevem os dois grupos analisados:
Os
outsiders, tanto no caso de Winston Parva quanto noutros locais, são vistos –
coletiva e individualmente - como anômicos. O contato mais íntimo com eles,
portanto, é sentido como desagradável. Eles põem em risco as defesas
profundamente arraigadas do grupo estabelecido contra o desrespeito às normas e
tabus coletivos, de cuja observância dependem de status de cada um dos seus
semelhantes no grupo estabelecido e seu respeito próprio, seu orgulho e sua
identidade como membro do grupo superior.
Levando
em conta tal contribuição, procuramos estudar o caso de Presidente Bernardes,
explorando suas semelhanças com Winston Parva, sem perder de vista as outras
cidades brasileiras que vivenciaram experiências semelhantes envolvendo tais
microfísicas do poder, ou seja, o que nos desafia, permanentemente, é a busca
pelo estabelecimento de relações entre o particular e o geral. No caso em
estudo, considera-se que o diferencial centra-se na presença das duas
instituições penitenciárias.
Mas
como os presos são personagens presentes, porém também ausentes do cotidiano da
cidade, já que escondidos atrás das altas muralhas dos presídios, a
representação da violência, ou da criminalidade, de modo geral, daí decorrente
não se refere diretamente a eles, mas às suas visitas, responsáveis, em última
instância, pelo estabelecimento de relações entre essas duas realidades, a
interior e a exterior às referidas muralhas. Duas características importantes, e
contraditórias, desses estranhos, forasteiros, são, por um lado, o fato de serem
provenientes de outras cidades e, muitas vezes, da região metropolitana de São
Paulo, e, de outro lado, o fato de serem, em sua imensa maioria, mulheres, ou
seja, mães, esposas e filhas dos presos que para lá se deslocam, sobretudo
em dias de visita.
Uma
interpretação possível para tais representações conflitivas que passaram a
caracterizar o cotidiano da cidade, seria de que essas relações seriam extensões
daquelas estabelecidas entre presos e agentes, esses últimos responsáveis por
outra via de contato entre o interior e o exterior das penitenciárias. Desse
modo, e por essa via, as disputas de poder, que pautam a vida no interior das
penitenciárias, estariam adquirindo contornos mais amplos, extrapolando as
muralhas e se refletindo na estigmatização dos familiares dos presos. Como
indício para a confirmação de tal hipótese, constatamos que é comum, ao
perguntarmos aos moradores da cidade se eles possuem parentes, amigos ou
conhecidos que trabalham em presídios da região, obtenhamos resposta positiva.
Isso se explica pelo fato de muitos se conhecerem numa pequena população, pela
abundância de penitenciárias na região e pela exigüidade de opções de
trabalho.
Nessa
pesquisa, além da carga representacional das relações sociais envolvendo essas
pessoas estigmatizadas, notamos elementos diferenciais dos discursos dos jornais
regionais e dos moradores que podem ser identificados como novas estratégias de
manutenção de um status social. As mais acentuadas foram às descrições dos
costumes e hábitos dos visitantes que acabaram se fixando na cidade,
demonstrando um deslocamento do olhar dos observadores, da rua para suas casas,
do público para o privado, onde revelariam seu comportamento diferente,
favorecendo assim sua representação como pessoas desajustadas. Neste caso, mais
uma vez, as semelhanças em relação a Winston Parva podem ser identificadas a
partir do seguinte comentário de um de seus moradores:
Oh.
Eu não iria lá, não! (referindo-se a casa de um novo morador da Zona 3). Vá ao
número 15, eles são gente boa, mas lá, não, ela é leviana, só está aqui há um
ano. Vá à casa dos Sewel, eles são boa gente. (
)
Em
Presidente Bernardes,
moradores entrevistados insistiram na referência a uma das residências desses
visitantes que se fixaram como “corticinho”, devido a grande quantidade de
pessoas que viveriam na casa. Pelo que apuramos, estes moradores temporários já
deixaram a cidade, mas a forma como era chamada sua residência incorpora muitas
características da descrição da residência de outra nova moradora, que ainda se
encontra na cidade: “Moram umas trinta pessoas lá”,
“Dorme
gente até nas varandas em dia de visita”, “Teve um dia que eles armaram até uma
barraca no quintal para acomodar as famílias”.
Um
terceiro fator diz respeito a superestimação feita pelas assistentes sociais da
prefeitura, em relação tanto ao número de famílias de presos que permanecem na
cidade, quanto às suas carências. Apenas três casos, dentre os muitos
genericamente relatados, foram confirmados. Neste caso, parece haver tanto uma
forte identificação desses recém-chegados à pobreza, quanto um esforço para
justificar solicitações de ajuda financeira, dirigidas ao Governo do Estado, que
expressariam, sobretudo, um anseio por compensações, frente a transtornos de
difícil comprovação decorrentes da convivência com os presídios.
A
conclusão preliminar a que podemos chegar é que a identificação representacional
- família de presos igual a criminosos - pertence à mesma rede de conexões que
associa a criminalidade à pobreza e a famílias desajustadas. Do mesmo modo, os mecanismos que impõem barreiras afetivas e incentivam a
rejeição a essas novas moradoras e as visitantes podem encobrir problemas
relacionados tanto à criminalidade, quanto a carências dos próprios munícipes,
além dos referidos esforços pela manutenção de um
status social. Seriam, então, em última instância, reforços à tendência
de identificar o perigo no outro, personificado freqüentemente no aidético, no
negro, no favelado, no homossexual, no criminoso, ampliando-se tendência que não
é nova na História do Brasil, de identificação de bodes expiatórios para os
problemas sociais (CHAUÍ, 1998).
Observações
feitas pelo proprietário da única pousada que hospeda visitantes dos presos, que
pernoitam na cidade, ou mesmo buscam repouso por algumas horas, são
particularmente significativas, a esse respeito. Referindo-se à possível inveja
causada pelo sucesso de seu estabelecimento comercial e contrapondo-se a tese de
que os presídios teriam trazido problemas para a cidade, ele
desabafou:
Bernardes
é uma cidade filha da puta, gente safada, eles tem até inveja que eu tenho isso
daqui, porque nunca teve batida policial aqui e eu nunca vi negócio de droga
aqui, se tiver alguma droga aqui... porque eu fico de olho, porque se tiver...
Esses dias atrás deram batida lá perto do Sucão, revistaram o carro, tudo... era
a mulher do ‘Marcola’ e do ‘Carambola’ (presos conhecidos, identificados ao
crime organizado). Agora droga tem é na cidade, é maconheiro, aqui, que está uma
desgraça.
Tudo indica que a rede de relacionamentos de familiares de presos
foi criada, paulatinamente, a partir da fila que se forma na entrada das
penitenciárias de Presidente Bernardes. Nesse contato íntimo de realidades que
se aproximaram, as familiares visitantes acabaram por conseguir um ponto de
apoio que fortalece os sentidos dessa identificação.
Durante a pesquisa, foram localizadas duas familiares de presos que se fixaram
na cidade. Ambas caracterizam-se pela oferta, informal, de hospedagem para
outras familiares de presos.
A
partir desses contatos, organizam-se também de acordo com as possibilidades
financeiras de cada família e com a disponibilidade de vagas na única pousada da
cidade, para hospedá-los. Desse modo, os visitantes dividem-se entre os 32
quartos da pousada (em processo de ampliação, para disponibilizar 42 quartos)
que são alugados por valores entre R$12,00, R$15,00 e R$20,00, espaços
improvisados nas residências de duas famílias já referidas, que também cobram
por isso, porém valores mais modestos, e, por último, um único quarto com
banheiro disponível na entrada da Penitenciária de Presidente Bernardes,
gratuito.
Não
dispomos do número de visitantes para avaliar até que ponto a rede de apoio que
foi montada na cidade é suficiente ou condizente com a realidade
dessas famílias. Mas o que se evidencia é a importância dos vínculos de
confiança estabelecidos com responsáveis pelos locais de hospedagem, tratando
diretamente com eles das reservas e lotando todos estes espaços durante os fins
de semana.
As
famílias que se fixaram cobram pela estadia que fornecem, diferenciando-se pela
alimentação também incluída, a despeito do caráter de improviso de suas
instalações. Isso se constitui, simultaneamente, num fator determinante para sua
própria permanência na cidade. Assim, diferenciam-se também de outras famílias
que passaram pela cidade, mas não permaneceram, seja pelas dificuldades
enfrentadas, seja porque continuaram a acompanhar parentes, em geral maridos,
novamente transferidos, em prática comum do sistema penitenciário. Sugere-se, a
partir dessas trajetórias, que cada um desses fatores pode ter pesos diferentes,
conforme a situação. Assim, as duas famílias que permaneceram, o fizeram, a
despeito dos maridos, a quem acompanharam até Presidente Bernardes, já terem
sido transferidos para instituições penitenciárias de outras cidades.
Durante
todas as entrevistas com essas famílias, chamou a atenção o receio demonstrado,
que foi interpretado como evidência de necessidade, por elas identificada, de
não se expor, evitando, nas suas palavras, “as distorções corriqueiras de
fatos”, principalmente pela imprensa. Enfim, evitando o assédio da imprensa, mas
também possíveis boatos entre moradores da cidade.
Mesmo
assim, uma dessas entrevistas se revelou uma importante contribuição para o
diagnóstico da vinda das famílias de presos. Natural de São Paulo, a
entrevistada se transferiu para Presidente Bernardes com o objetivo de cortar
despesas, naturalmente, sem deixar de visitar o marido preso. Tendo como
perspectiva, o custo de vida mais baixo e o fim dos gastos com passagens de
ônibus, ela resolveu “ariscar” a mudança. Mas sua permanência só se viabilizou
com o fornecimento da hospedagem a outros familiares que vem para a visitação,
opção favorecida pela carência de opções de hospedagem da cidade, e pelo
fornecimento de “jumbos”, refeições encomendadas por presos das penitenciárias
locais, que podem pagar por uma alimentação diferenciada.
Tal
trajetória pauta-se em razões práticas, ainda que outros fatores, como a
fidelidade e a dedicação ao marido preso, a solidariedade e os laços de
confiança engendrados a partir de afinidades com outras familiares de presos
estejam subjacentes. De maneira semelhante, nenhuma das duas famílias mencionou
problemas com a vizinhança ou algum tipo de preconceito que sofreram,
confrontando-se, porém, com vários depoimentos colhidos de outros moradores mais
antigos da cidade, que se referiram, sobretudo a segunda residência, com
descrições depreciativas sobre a atividade lá desenvolvida e sobre seu modo de
vida, nada convencional. Mesmo sobre aquelas que já deixaram a cidade, ainda foi
possível colher relatos que indicam permanências sobre as representações dessas
“estranhas”, confirmando-se sua perenidade.
As
representações, como as que descrevem os modos de vida das famílias que se
fixaram, são compartilhadas, possibilitando a interpretação do empenho na
difusão da imagem depreciativa dessas visitantes como uma luta pela manutenção
de um status social que diferencia e cria os espaços e classes de cada um dos
envolvidos. Nesse sentido, não pertencer a um grupo anômico, estranho ou de
fora, devido ao caráter depreciativo dos discursos que predominam, implica
também em fortalecer formas discursivas arcaicas e apreciadas na sociedade
brasileira. As descrições das suas residências, seus hábitos e costumes reforçam
e sustentam a representação de grupos desajustados e, ao mesmo tempo, esses
discursos não deixam de remeter a uma comparação presente, mas ausente na fala,
de um modelo de conduta e ordem social baseada na
família.
Mais
uma diferença em relação a Winston Parva, nossa referência para análise, foi
assim a partir daí identificada. Naquele caso, os novos habitantes se
surpreendem com o tratamento recebido, ou seja, esperavam uma camaradagem,
provavelmente típica das classes inferiores. No caso agora estudado, além de não
assumirem as dificuldades de relacionamento com os antigos moradores da cidade –
seus vizinhos – esses familiares tendem a justificar certos problemas, com base
no estabelecimento de diferenças dentro do próprio grupo com o qual são
identificados. O depoimento, transcrito em seguida, é
significativo:
Eu sou
sossegada... Meus vizinhos são ótimos, eu tenho a maior amizade, inclusive aqui
mora um policial, eu tenho amizade com todos eles, não tem nada haver. Apesar
que tem bastante preconceito, no começo tem preconceito. Tem algumas que
aprontam, nem todas são corretas, tem algumas que sempre... e por causa disso,
as outras levam... Às vezes tem uma que aluga uma casa, não paga, vai embora,
esse tipo de coisa. Porque mulher de preso é mal vista, então não é todo mundo
que trata bem, mas eu nunca tive problemas. Eu, graças a Deus, aluguei essa
casa, o senhor que mora aqui me ajudou, nunca tive problemas com
nada.
Como
desdobramento dessa diferença, outra pode se explicitada. Em Presidente
Bernardes, não há sinal de revolta por parte dessas mulheres,
vistas como estranhas, pelos antigos moradores, enquanto Elias e Scotson (2000)
abordam o sentimento de revolta que atinge principalmente os
jovens.
Também
identificamos representações sociais que idealizam a vida na cidade pequena do
interior. Tal imagem não incorpora o aspecto econômico, visto como problemático
em função da falta de perspectivas, sobretudo no que se refere à oferta de
empregos, mas enfatiza o distanciamento dos problemas das grandes cidades,
caracterizando a existência de um círculo vicioso, contraditório e imaginário,
cujos opostos se situam entre o caos das grandes cidades e a calma e
tranqüilidade das pequenas cidades do interior. Nas conversas informais, muitos
dos esforços de reelaboração da realidade cotidiana, feitos pelos antigos
moradores de Presidente Bernardes, se pautaram nesse recurso à velha e
contraditória imagem de cidade pacata, que encobre certo incômodo frente à
estagnação a ela relacionada.
Buscando
apreender as representações sociais da cidade e, em particular, da “sua” cidade,
produzida por seus moradores, nos baseamos em Jovchelovich (2000, p.32 e 40),
para quem “as representações sociais são saberes sociais construídos em relação
a um objeto social, que elas também ajudam a formar”, mas também são “fenômenos
simbólicos produzidos na esfera pública, espaço no qual elas se incubam, se
cristalizam e são transmitidas”.
Um
dos inúmeros aspectos que podem explicar essas diferenciações entre as
representações sociais de pequenas e médias cidades, diz respeito as diferentes
temporalidades que caracterizam o cotidiano de cada uma delas. Mas é preciso
considerar que essa leitura do urbano implica, sem dúvida, no reconhecimento da
sua complexidade, uma vez que uma das características do cotidiano das cidades é
definida por formas peculiares de emprego do tempo, que por sua vez, se traduz
em diferentes formas de uso do espaço (SEABRA, 2004,
p.190).
A
despeito das diferenças em relação às metrópoles ainda serem inquestionáveis, a
vida nas cidades médias parece ter se acelerado suficientemente para agravar a
sensação de insegurança de seus moradores. Como se a superação de sua antiga
condição de pequenas cidades ainda não tivesse sido suficientemente assimilada.
Assim, resta a imagem saudosista e algo idealizada da “cidade pacata”,
contrapondo-se a um presente muitas vezes reivindicado, inclusive a partir da
“vitrine” representada pelas metrópoles, quando transformam seus shoping centers
e condomínios fechados em símbolos da vida moderna, portanto em objetos do
desejo da população de pequenas e médias cidades.
Nas
pequenas cidades, sem shoping centers e outras vitrines atraentes, o tempo mais
lento ainda parece prevalecer, a despeito da convivência contraditória com o
tempo hiper-acelerado e cada vez mais hegemônico da televisão. É a essa
realidade contraditória que seu morador procura dar sentido, quando fala da
“sua” cidade.
Nesse
esforço de elaboração, o Estado aparece como interlocutor central. No Oeste
Paulista, neste novo contexto pós-anos 1990, além do evidente descrédito no
Estado e nas suas instituições de controle social frente ao desempenho de sua
função de garantir segurança à população, o que os diferentes discursos
evidenciam é a representação de uma sociedade cada vez mais cindida, não apenas
entre ricos e pobres, mas também entre capital e interior, entre metrópole e
pequenas e médias cidades, entre estados da
federação.
Concluindo,
identificamos Winston Parva a Presidente Bernardes, a despeito do papel chave
desempenhado pelos presídios no caso da última, como cenários empíricos que
propiciam um novo olhar para relações do “macrocosmo social em larga escala”,
ainda que a partir de uma pequena escala, ou seja, da “microfísica” do
poder.
Referências
Bibliográficas
CHAUI,M.
Ética e violência. Teoria e Debate, São Paulo, p. 32-41,
1998.
ELIAS,
Norbert & SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders:
Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de
Janeiro: Zahar Ed., 2000.
IMBERT, G.
Los escenarios de la violência. Barcelona: Icaria,
1992.
JOVCHELOVITCH,
S. Representações sociais e esfera pública. A construção simbólica dos
espaços públicos no Brasil. Petrópolis: Vozes,
2000.
SEABRA,
O. C. de Lima. Territórios
do uso: cotidiano e modo de vida. Cidades. v. 1, n. 2, 2004, p.
181-206.
SPOSITO,
Maria Encarnação Beltrão . “A produção do espaço” em dez anos de GAsPERR:
reflexão individual sobre uma trajetória coletiva. In: SPOSITO, E. S. (org.).
Produção do espaço e redefinições regionais: A construção de uma
temática. Presidente
Prudente, Unesp – FCT – GAsPERR, 2005, p. 85-115.
Notas
[1] Nome fictício dado a uma pequena comunidade
situada no interior da Inglaterra, por Norbert Elias e John L. Scotson, no livro
“Estabelecidos e outsiders: Sociologia das relações de poder a partir de uma
pequena comunidade” (2000).
[2] Doutora em
História, professora dos Cursos de Graduação em Geografia e de Arquitetura e
Urbanismo, e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UNESP – Universidade
Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente – SP – Brasil. Membro do
GAsPERR - Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais – junto
ao qual esta pesquisa é desenvolvida.
[3] Em 2001, o
governador Mario Covas faleceu, durante seu segundo mandato, e foi substituído
pelo vice-governador Geraldo Alckmin, do mesmo partido político, o PSDB, que por
sua vez foi eleito governador no final do mesmo ano, tomando posse em
2002.
[4] Desativada em
2002, a
Casa de Detenção de São Paulo era considerada um verdadeiro barril de pólvora,
em função da superlotação crônica e do histórico de motins violentos, entre os
quais se destaca o massacre da Detenção (outubro de
1992).
[5] Segundo dados de
2003, da Coordenadoria das Unidades Prisionais da Região Oeste do Estado de São
Paulo, havia 6.835 funcionários trabalhando nos presídios da
região.
[6] Agripino Lima,
atualmente em seu segundo mandato na prefeitura de Presidente Prudente, e sua
família, são proprietários de uma grande universidade, de um jornal e de um
canal de televisão que detém os direitos de retransmissão da Rede Globo, todos
em Presidente
Prudente.
[7] Jornal publicado
em Presidente
Prudente, cidade que desempenha papéis centrais na rede urbana
do Oeste Paulista.
[8] Na Vara de
Execuções Criminais são tomadas decisões que afetam diretamente o cotidiano dos
presos, como concessão de benefícios, direito a visita íntima, transferências,
etc.
[9] Argumento
utilizado pelo próprio Delegado de Polícia, que não opôs resistência à pesquisa,
desde o início. O argumento foi considerado convincente.
Ponencia presentada en el Simposio Urbanismo y Sociedad.
Octavo Encuentro Internacional Humboldt. Colón, Entre Ríos, Argentina. Jueves 28
de setiembre de 2006.
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