Participação Popular na Política Municipal Brasileira: Plano
Diretor Participativo e Orçamento Participativo
Thiago Augusto Domingos
thiago.a.d@pop.com.br
Tânia Maria Fresca
fresca@uel.br
Resumo
Pelo menos desde a década de 1960, movimentos populares
brasileiros buscam maior equidade social nas cidades e após passarem por um
período nebuloso, na época do governo militar (1964-1985), na década de 1980,
voltaram a ganhar força e os ideais da reforma urbana conquistaram espaço na
Constituição de 1988. As cidades ganharam maior autonomia de planejamento e
gestão com os novos Planos Diretores, agora influenciada a participação popular
em sua elaboração. Mesmo não sendo realidade em todas as cidades brasileiras,
com a criação dos Orçamentos Participativos, os munícipes conquistaram maior
poder de atuação nas políticas públicas locais, sendo possibilitado deliberar e
debater a prioridade de investimentos em cada local da
cidade.
Palavras-chaves
Participação Popular, Plano Diretor, Orçamento Participativo,
Estatuto das Cidades.
Abstract
At least since the 1960’s,
brazilian’s popular movements searchs for a bigger social equity in the
cities, and after passing through a nebulous period, in the epoch of militar
govern (1964-1985), in the 1980’s, these movements recovered power, and the
ideals of the urban reform conquered space in the 1988’s Constituion. The cities
gained more autonomy on planning and managing with the new Director Plan, which
is now influencied by the popular participation on it’s elaboration. Even though
it does not happen in all brazilian cities, with the creation of the
Participatory Budgeting, the citizens conquered a bigger power on the local
public politics, being able to lead and contest the priority of investiments in each locality of the
city.
Keywords
Popular participation, Director Plan, Participatory Budgeting,
City’s Statute.
Introdução
O objetivo deste trabalho é discutir aspectos de como tem sido o
caminho da participação da população no planejamento e na gestão das cidades
brasileiras. Para tanto é necessário que examinemos como, nas últimas décadas
(pelo menos desde os anos de 1960), a população brasileira conquistou,
paulatinamente, maior poder de atuação junto ao poder
público.
Atualmente alguns instrumentos de planejamento e gestão das
cidades têm diretrizes que apontam, legalmente, a participação popular como
mister nas cidades, como o Plano Diretor e o Estatuto das Cidades. Mesmo que o
governo tenha desempenhado um papel fundamental para que a participação popular
se concretizasse nas cidades brasileiras, os movimentos populares também tiveram
presença ímpar para a conquista desse direito.
Podemos destacar que o Orçamento Participativo, em especial o
modelo portalegrense, hoje é o modelo mais expressivo de participação popular no
país, tendo sido adotado como modelo em outras cidades até mesmo fora do Brasil,
como em Montevidéu ou em algumas cidades francesas.
1 - Participação dos movimentos populares: a luta pela Reforma
Urbana
A Luta pela Reforma Urbana no Brasil não é recente, iniciada, pelo
menos, durante o Governo de João Goulart (1961-1964) (CASTILHO, 2000, p.8;
SOUZA, 2000, p.274). No ano de 1963 ocorreu um importante encontro em
Petrópolis/RJ, no Hotel Quitantinha, para discutir uma reforma que teria como
escopo o “enfrentamentamento do problema da falta de moradias” (COELHO apud SOUZA, 2000, p.274). Nessa época a
luta camponesa atingia seu auge e até hoje é, com veemência, destaque dos
movimentos populares brasileiros pela reforma agrária, principalmente no tocante
ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), mas pouco é dito sobre os
movimentos que buscam maior equidade social no ambiente urbano.
Mesmo que ambos sejam difíceis de equiparar é necessário que, ao
menos, realizemos uma distinção entre eles.
A concepção de reforma urbana está imbricada, na sua origem, à de
Reforma Agrária e (de)marcou uma grande movimentação, no Brasil, no início da
década de [19]60. Explicitam-se, assim, propostas de setores populares e de
esquerdas, que buscam transformar as relações de poder econômico e político na
sociedade brasileira (RODRIGUES, 1993, p. 110).
A partir da década de 1960, após a tomado do poder pelos
militares, a economia no campo brasileiro passou por profundas modificações,
sendo conhecido por modernização
conservadora (período que compreende os anos de 1965 a 1979). Parafraseando
George Martine (1991, p.9), foi um período em que
[…] a agricultura
atravessou um processo radical de transformação em vista de sua integração à
dinâmica industrial de produção e da constituição do complexo agroindustrial.
Foi alterada a base técnica, desenvolvida a indústria fornecedora de meios de
produção para a agricultura e ampliada, em linhas modernas, a indústria
processadora de alimentos e
matérias-primas.
As transformações no campo acarretaram em um enorme êxodo do rural
ao urbano (de quase 30 milhões de pessoas entre 1960-1980, segundo Martine
(1991, p.10)), fazendo com que em poucos anos a população urbana brasileira se
tornasse maior que a população do campo. Face as dificuldades impostas pelo
governo ao pequeno agricultor (visto que os governos ditatoriais influenciava a
mecanização do campo e a criação de complexos agro-industriais), movimentos de
pequenos agricultores começaram a buscar um direito constitucional, com um
expressivo número de pessoas: a Reforma Agrária.
Na década de 1960, nas cidades, o movimento pela reforma urbana
também ganha corpo, tendo como principal reivindicação acesso à moradia. A luta
no campo busca a terra, que é, para o agricultor, um meio de produção, o que não
pode ser considerado no caso urbano. É necessário destacar que apenas uma
reforma no campo onde se mude a estrutura fundiária não é suficiente, a reforma
só será concreta com implicações diretas de mudança no tocante à estrutura
agrária. Conquistar terras urbanas, diferentemente do campo, não possibilita
capacidade produtiva ao beneficiado, pois mesmo que a terra recebida pelo
integrante da luta pela da reforma agrária contenha poucas amenidades, é um meio
que esse utiliza para a produção, o que não é possível com o solo urbano.
Destarte, os beneficiados pela reforma urbana não possuem um meio produtivo caso
obtenham acesso à moradia. E assim como apenas uma redistribuição fundiária não
é suficientemente capaz de promover uma reforma agrária, o acesso à moradias é
também um aspecto relevante da reforma urbana, mas não o único. “[…] para o
pobre urbano, diferentemente do agricultor pobre e sem terra, o solo será, via
de regra, um substrato essencial, uma condição para sua existência, mas não um
meio de produção” (SOUZA, 2000, p. 286).
Com o golpe militar em 1/04/1964, teve início um planejamento
urbano que ficou conhecido como planejamento da acumulação “como norte
da ação do Estado brasileiro durante o período autoritário” (RIBEIRO, 1993,
p.116) e o movimento pela Reforma Urbana foi abafada.
“[…] o desenvolvimentismo […] do regime militar ‘amorteceu’ a
proposta de reforma urbana. Este amortecimento ocorreu tanto pela ‘antecipação
das necessidades’ como pela repressão aos movimentos populares, impedindo a
organização e a movimentação da sociedade civil, mesmo para reivindicações
aparentemente mais simples, como direito de acesso à água, luz esgotamento
sanitário, saúde, educação, etc.” (RODRIGUES, 1993,
p.110).
O tecnocracismo, durante o governo militar, foi muito criticado
pelos movimentos que defendiam os ideais da reforma urbana. Durante a década de
1970, no governo do General Ernesto Geisel, “associações de moradores se foram
multiplicando nas cidades brasileiras e federações municipais e estaduais de
associações de moradores foram sendo fundadas ou retiradas do limbo” (SOUZA,
2000, p.274). Passou a ser ambicionado
“retirar a cidade do controle dos especialistas, para acabar com o monopólio
tecnocrático sobre a cidade. Em outras palavras, a luta para democratizar a
cidade.” (VEINER, 2005, p.137).
Com o início da reabertura democrática no país,
no começo da década de 1980, o movimento da reforma urbana reemerge,
conquistando maior espaço no debate político nacional. É bom frisar que o Brasil
passara por um período em que a população urbana cresceu de modo muito acentuado
e, mediante falta de infra-estrutura básica, empregos, segurança, etc., os
problemas nas cidades também aumentaram.
Em 1986 a Assembléia Constituinte, que visava a preparação de uma
nova Carta Magna do país, foi um catalisador para os Movimentos da Reforma
Urbana (SOUZA, 2000, p.275) e “a emenda
popular sobre reforma urbana foi a terceira em número de assinaturas recolhidas,
comprovando a força dos movimentos urbanos que reivindicavam moradia,
saneamento, transporte, urbanização – enfim, o direito à cidade.” (VEINER, 2005,
p. 137). Mesmo assim o número de assinaturas recolhidas foi muito menor que
sobre a reforma agrária (“ ‘apenas’ 133.068 assinaturas, contra mais de um
milhão de eleitores que subscreveram a emenda pela reforma agrária (GUIMARÃES apud SOUZA, 2000, p.275)).
Mesmo com toda expressividade dos movimentos populares na
Constituinte, na Constituição da República, outorgada em 1988, restaram apenas
dois artigos referentes à política de desenvolvimento urbano, os artigos 182 e
183.
Mesmo que nesses artigos seja notória a presença de reivindicações
dos movimentos populares (como maior autonomia ao Plano Diretor, exigência do
cumprimento da função social da propriedade urbana, construção ou parcelamento
compulsório, Imposto Predial Territorial Urbano progressivo no tempo e usucapião
urbano) Marcelo Lopes de Souza (2000) considera que, na outorga da Carta Magna
de 1988, os defensores da reforma urbana sofreram uma derrota estratégica com o
“enxugamento” sofrido desde a Assembléia Constituinte de
1986.
Havia o receio que, a partir da Constituição de 1988, os Planos
Diretores se tornassem meios tecnocratas de planejamento das cidades. Mas o que
se observou foi uma maior autonomia das cidades para poder desenvolverem tanto
seu planejamento quanto sua gestão.
Isso devido aos Planos Diretores não ficarem mais restritos as
formulações impostas de ”cima para baixo”, isto é, um receituário escrito pelo
Governo Federal que deva ser seguido pelos municípios, assim como era realizado
anteriormente, onde os planos
municipais acabavam por não condizerem com a realidade das
cidades.
Legalmente
os Planos Diretores são obrigatórios para cidades “com
mais de 20 mil habitantes; integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações
urbanas; com áreas de especial interesse turístico; situados em áreas de
influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental
na região ou no país”. (SCHASBERG; PINHEIRO, 2004, p.14).
2 - Instrumentos de Planejamento e Gestão
Democrática
2.1 - Planos Diretores
De 1946 a 1964 os Planos Diretores eram
iniciativas de governos locais e trabalhavam basicamente o físico-setorial,
alienando-se dos demais componentes da problemática urbana. Na época do
militarismo (1964-1985), o governo federal, encarregava o extinto SERFHAU
(Serviço Federal de Habitação e Urbanismo) de promover e difundir a elaboração
de planos diretores por todo o país. Segundo a SEPLAN (1996, p.01) nesse
período, houve uma padronização dos Planos Diretores, devido à metodologia única
que fora imposta a todo país. A visão tecnocrata acarretou na falta de
referência com a realidade das cidades, inviabilizando a realização dos projetos
do planejamento. Desse modo muitos planos diretores acabaram sendo
esquecidos
Os
Planos Diretores clássicos estão
diretamente
ligados ao planejamento modernista corbusuiano, isto é, marcados por forte
tendência tecnocrata e racionalista.
[…] os arquitetos-urbanistas, inspirados no pensamento modernista,
cuja expressão mais importante foi o pensamento e a obra do francês Le
Corbusier, consolidados na Carta de Atenas. A cidade agora é pensada como lugar
da produção e da reprodução. O fundamental é assegurar sua funcionalidade. Os
homens e mulheres devem estar a serviço da cidade e ela deve estar a serviço da
produtividade. O modelo, no fundo, é a própria oficina fabril: racionalidade e
funcionalidade […] a cidade dos especialistas, a cidade dos técnicos. (VEINER,
2005, 136)
Com o fim do militarismo o planejamento urbano brasileiro começou
a seguir uma nova tendência, voltado ao mercado, e ficou conhecido como
Mercadófila (SOUZA, 2004, p.136) ou então como Modelo de Cidade Empresa
Mercadoria. “Desde o final dos anos 80 e ao longo dos anos 90, cada vez mais
ouvimos falar que a cidade deve ser competitiva. Produtividade e competitividade
apareciam progressivamente como as principais qualidades a serem buscadas pelas
cidades.” (VEINER, 2005, p. 137).
Se anteriormente o planejamento ficava circunscrito aos técnicos
ou as tendências de mercado, onde a participação de populares era desprezada, o
tipo de planejamento urbano que vem se desenhando no Brasil hoje, conhecido por
planejamento urbano alternativo, prioriza a participação popular como mister
para que se alcance objetivos mais concretos de igualdade social e melhoria de
condições de vida aos pobres urbanos.
Veiner (2005, p. 139-140) acredita que vivemos atualmente um
embate entre duas formas de planejar o urbano.
De um lado, a
utopia da cidade-empresa, cidade-mercadoria, cidade-negócio. Com essa utopia
afirma-se a cidade do marketing, a cidade consensual que repudia qualquer debate
aberto e teme o conflito. De outro lado, tem-se a utopia da cidade democrática.
Ao invés de dominada pela (sic) mercado e pela mercadoria, é dominada pela
política. Nela, o conflito, ao invés de ser temido, é desejado, pois é visto
como elemento fundamental de transformação. Nela, os citadinos não são vistos
nem como espectadores das realizações de um prefeito iluminado, nem como simples
consumidores da mercadoria urbana, nem como acionistas de uma empresa. Nesta
utopia, os citadinos são pensados como cidadãos em construção que, ao se
construírem, constroem também a
cidade.
A defesa da participação popular não se trata de desvincular o
papel dos técnicos ao planejamento, nem de tampouco apenas ouvir a opinião
popular para que caminhos sejam seguidos pelo poder público, mas sim de que a
participação efetiva da população no planejamento e também na gestão das
cidades, juntamente ao poder público, acarreta em melhorias substanciais para a
cidade. Nem devemos considerar que a participação da população junto ao poder
público solucionará todos os problemas das cidades e nem que as ações tomadas
sempre resultarão em acertos na melhoria das cidades, mas mesmo os erros devem
ser considerados importantes para que não se repitam e que possam, em um segundo
momento, ser revistos e buscado o acerto.
Desse modo ressalta-se a importância da elaboração de Planos
Diretores condizentes com a realidade local de cada município, não havendo uma
fórmula para a elaboração de planos iguais em cidades diferentes. Alguns pontos
em comum, logicamente, todos os planos devem conter, como a realização de um
levantamento/diagnóstico e um prognóstico, levantamento dos problemas (com a
participação popular) para que então seja realizado o conjunto de leis que é o
Plano Diretor.
De acordo com a Constituição de 1988, artigo 182, § 1. º “O Plano
Diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de
vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de
expansão urbana”, destarte, é possível que reafirmemos a descentralização do
planejamento, pois o Plano Diretor é um conjunto de leis municipais elaborado
para cada cidade/município.
Mesmo a Constituição de 1988 ter alcançado um ponto importante no
tocante ao planejamento e gestão urbanos, de acordo com reivindicações de
movimentos populares pela reforma urbana, os dois artigos precisaram de um
conjunto de leis que os regulamentassem. Desse modo, durante mais de uma década,
tramitou no governo brasileiro a votação do conjunto de leis que regulamentaria
os artigos supracitados, até que no ano de 2001 foi aprovada a Lei nº 10.257,
conhecida como Estatuto da Cidade.
[…]
a Constituição de 1988 veio mudar o panorama da disciplina urbanística no Brasil
ao prever, em capítulo próprio e inédito na história de nossas constituições,
institutos e instrumentos da reforma urbana. Ela precisava ser regulamentada e é
disso que se cuida presentemente. O atual estatuto da cidade
(o
projeto se autodenomina como tal), portanto, vincula-se diretamente ao texto
constitucional em vigor, ainda que não apenas aos artis. 182 e 183, como indica.
(CASTILHO, 2000, p.8 – Grifo do autor).
As leis em vigor, são uma vitória dos movimentos
populares, que conquistaram maior poder para atuarem juntamente ao poder
público. Tanto a Constituição Federal quanto o Estatuto da Cidade estabelecem o
direito dos citadinos participarem da elaboração do Plano Diretor e ao prefeito
sanções se, segundo o estatuto (BRASIL, 2004, p. 154;
152):
ART. 52 Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos
envolvidos e da aplicação de outras sanções cabíveis, o Prefeito incorre em
improbidade administrativa, nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992,
quando:
VI - impedir ou deixar de garantir os requisitos contidos nos
incisos I a III do § 4º do art. 40 desta Lei;
ART. 40 O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o
instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão
urbana.
§ 4º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização
de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais
garantirão:
I - a promoção de audiências públicas e debates com a participação
da população e de associações representativas dos vários segmentos da
comunidade;
II - a publicidade quanto aos documentos e informações
produzidos;
III - o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações
produzidos.
O vigor destas leis não garante,
necessariamente, que as mesmas
serão cumpridas, pois assim como enfatiza Marcelo Lopes de Souza (2004),
no Brasil há leis que “pegam” e leis que “não pegam”, destarte, o papel popular
juntamente ao poder público é ressaltado também para que haja a fiscalização das
ações da prefeitura.
As ações populares com o governo seguem
atualmente uma tendência que extrapola as diretrizes legais contidas nas leis
supracitadas. Um modelo autóctone de planejamento e gestão das cidades, que
recebeu grande destaque é o Orçamento Participativo, que começou a ganhar corpo
ainda na década de 1970.
2.2 - Orçamento
Participativo
O Orçamento Participativo teve seu embrião na
cidade de Lages/SC, na gestão de “Dirceu Carneiro (eleito prefeito […] em 1976,
pelo MDB) e sua equipe [que] atua[ra]m como ‘animadores sociais’, procurando
conscientizar o povo da força que
tem e não conhece, de sua capacidade construtiva, afinal, da idéia de que tudo é
construído pelo trabalho” (TRAGTENBERG, 1988,
p.7).
A participação popular em Lages, em pleno período
de ditadura militar, foi um ato ousado da administração local, onde a democracia
deixou de ser apenas uma palavra quase que desconhecida para fazer parte do
cotidiano dos citadinos. Os êxitos conquistados começaram a chamar a atenção de
outros administradores, pois na cidade catarinense foi conseguido melhoras
significativas no tocante à justiça social.
A idéia central desse tipo de administração visa
ter como escopo o pobre urbano, isto é, o foco das ações do governo está em
tentar amenizar as condições de vida dos menos favorecidos
socialmente.
Mas não foi simplesmente o fato das ações do
governo local estarem voltadas para os menos aquinhoados que recebeu tamanho
destaque. A ousadia e a coragem da administração de Carneiro de dar voz ao povo
e agir conjuntamente é que trouxe à tona não somente uma nova discussão, mas um
novo caminho administrativo no Brasil.
A defesa da democracia participativa há bastante
tempo vem sendo criticada por diversos autores, por na verdade, não passar de
uma maquiagem de participação. Mas o modelo que começara a ser desenvolvido em
Lages, e foi aprimorado em outras cidades, como Porto Alegre, por exemplo, e
acabou conhecido como Orçamento Participativo, não apenas pode ser reconhecido
como uma real participação democrática da população, mas podemos até extrapolar
e considerar um modelo de co-gestão da sociedade e poder público. Anterior à
capital sul-rio-grandense, outras cidades de destacaram, a saber: Pelotas/RS,
Vila Velha/ES, Boa Esperança/ES, Piracicaba/SP e
Diadema/SP.
O
orçamento participativo pavimenta o terreno para que se rompa com os
pressupostos de funcionamento da democracia representativa […], os quais não
passam de pressupostos ideológicos ao encobrirem diversos problemas e atuarem
como peças legitimatórias da arrogância tecnocrática e da separação estrutural
entre dirigentes e dirigidos. O orçamento é encarado, nos marcos do pensamento e
da prática conservadores, como algo puramente neutro, quando na verdade, ele
possível em imenso conteúdo político, um vez que se trata de decidir sobre fins,
e não apenas sobre a otimização dos meios: isto é, trata-se de gerir os
recursos públicos que serão investidos (ou não) para satisfazer as necessidades
da população (grifo do autor) (SOUZA, 2004, p.
342).
A diferença maior entre a participação
democrática defendida por autores clássicos do pensamento político moderno e o
Orçamento Participativo é que no primeiro, o papel do técnico é muito relevado,
enquanto que no segundo a população não é simplesmente ouvida pelos técnicos,
mas participa ativamente das ações da
prefeitura.
A população é muito bem capacitada a reconhecer
os problemas que existem em suas cidades e opinar a respeito de quais seriam os
melhores meios para soluciona-los e os técnicos atuariam em conjunto, pois a
população sozinha não teria a capacidade mesma dos especialistas para atuarem em
questões de nível técnico. Então, a defesa é de uma co-gestão entre poder
público e população.
O orçamento municipal deve ser considerado como
um instrumento de gestão prioritariamente e não de planejamento devido a escala
temporal que se vincula o orçamento, que é de um ano, desse modo, o planejamento
ficaria circunscrito a no máximo a médio prazo, enquanto que “ao longo da
execução orçamentária, permitem que o orçamento seja encarado, primordialmente,
como um instrumento de gestão, mais do que de planejamento” (SOUZA, 2004,
p.339).
Não há fórmula nem tampouco receituário de
aplicação do orçamento participativo, cabendo ao município reconhecer sua
realidade e então buscar aplicar medidas que condizem com as possibilidades
locais.
Mas
existe uma característica que é comum a todos […] Orçamentos Participativos, que
define os contornos dessa inovação democrática como uma política pública
generalizável para administrações municipais: ‘(…) Uma estrutura e um processo
de participação baseados em três princípios e em um conjunto de instituições que
funcionam como mecanismos ou canais que asseguram a participação no processo
decisório do governo municipal. Esses princípios são (1) participação aberta a
todos os cidadãos sem nenhum status especial atribuídos a qualquer organização,
inclusive as comunitárias; (2) combinação da democracia direta e representativa,
cuja dinâmica institucional concede aos próprios participantes a definição das
regras internas e (3) alocação dos recursos para investimentos baseada na
combinação de critérios gerais e técnicos, ou seja, compatibilidade entre as
decisões e regras estabelecidas pelos participantes e as exigências técnicas e
legais da ação governamental, respeitando também os limites financeiros’
(AVRITZER, apud SÁNCHEZ, 2002,
p.29).
O orçamento participativo é uma maneira de poder
fazer o povo atuar na política pública municipal e se sentir mais cidadão, mais
integrado à cidade. Em um país como o Brasil, onde a grande maioria da população
não tem interesse ou vontade de participar da política, é necessário que se
estude muito bem meios de fazer com que a população tenha, de alguma forma, um
estímulo para participarem.
Cabe ao poder público municipal organizar eventos
que chamem a atenção das pessoas para fazerem parte da política e posteriormente
é de se imaginar que sendo atuantes em ações da prefeitura os participantes se
sentirão mais cidadãos e deverão continuar participando. A natureza e o perfil
dos orçamentos participativos são caracterizados pela concretização dos
princípios de (SÁNCHEZ, 2002, p.44)
1)
decisão e soberania popular, materializada na noção de deliberação pública, com
o governo assessorando e promovendo de forma ativa a execução da política
participativa; 2) a decisão sobre o conjunto do orçamento da prefeitura; 3) accountability ou de prestação de contas e transparência para
a efetivação do controle social das decisões; e 4) delimitação de um processo de
decisão, por parte da sociedade e do Estado, de um corpo de representantes
especialmente eleitos para deliberar a alocação dos recursos públicos, que além
de tudo se auto-regulamenta.
No tocante ao funcionamento do orçamento
participativo, é necessário algumas observações. A população deve ser organizada
em unidades territoriais definidas (em uma cidade com poucos habitantes, por
exemplo, o bairro é um princípio, mas em grandes cidades as unidades devem
abarcar diversos bairros), debater e deliberar, em assembléias, a respeito da
prioridade de investimento em cada local, sendo que o poder Executivo tem a
responsabilidade de informar anualmente a disponibilidade de recursos para
investimentos, assim como prestar contas de gastos anteriores; o setor de
funcionamento do orçamento participativo também deve ser bem definido, isto é,
se caberá ao gabinete do prefeito, na Secretaria de Planejamento, Secretaria de
Finanças ou se é conveniente a criação de uma Secretaria para trabalhar com o
OP; eleição de delegados em assembléias populares das unidades territoriais, a
quem cabe organizar e discutir a prioridade de investimento local; e
encaminhamento da proposta
orçamentária para a Câmara Municipal (SÁNCHEZ, 2002, p.39-42; SOUZA, 2004,
p.344-347).
O Orçamento Participativo trouxe bons resultados
no tocante a democracia participativa, mesmo que tenha sido alvo de inúmeras
críticas, como apontado por Sánchez (2002, p.52-53) e Souza (2004, p.348-350): a
participação aumenta a lentidão na tomada de decisões, aumenta os custos na
tomadas de decisões, não incorpora
valor agregado à decisão, provoca um excesso de particularismos, somente leva em
conta o curto prazo e provoca a erosão de instituições e partidos. As críticas
são sempre relevantes para que possam ser reavaliadas a pertinência e
aplicabilidade das ações, mas o que se observa é que, mormente, muitas são
realizadas por ideólogos que são contrários a participação da população em ações
governamentais.
Porém vivemos sob a égide da democracia, onde a
população é considerada capacitada em atuar para escolha de seus representantes.
Contudo, observa-se, infelizmente não raro, que os vencedores do pleito muitas
vezes não condizem suas ações com seus discursos, destarte, é pertinente que a
população participe ativamente para garantir que esse quadro não seja
freqüentemente repetido. A participação da população no destino do orçamento
tende a coibir também a corrupção.
Considerações
Finais
A democracia é uma forma de governar amplamente
defendida em várias esferas da sociedade, mas muitas vezes essa defesa fica
circunscrita apenas na liberdade do povo em escolher seus representantes e não
na tomada de ações dos mesmos.
Através de ampla participação popular, através de
lutas que se arrastaram por mais de 40 anos, no Brasil se inovou a forma de
planejamento e gestão das cidades, através de instrumentos como o Orçamento
Participativo e Plano Diretor.
Desde a Constituição de 1988 até a elaboração do
Estatuto da Cidade os municípios foram ganhando maior autonomia para atuarem
localmente e o Ministério das Cidades influencia enfaticamente a participação
popular nas tomadas de decisões dos municípios. Porém ainda há muita resistência
por parte de reacionários, que vêem com maus olhos a co-gestão
governo/população.
Cabe então aos mais diversos seguimentos da
sociedade discutirem e lutarem por seus direitos de participarem da política de
suas cidades, pois melhorias já podem ser percebidas onde a participação foi
realizada de forma séria e concreta.
Utopias também sempre fizeram parte da história
humana, e por que não acreditar que a participação democrática nos países
conhecidos por terceiro mundo não seja uma forma real de averiguar melhorias
para a população? Logicamente muitas críticas ainda hão de ser realizadas sobre
essa forma de planejamento e gestão, mas é a partir de então que melhoras
substanciais poderão ocorrer.
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